Por Vinnicius Almeida

Antes de ir para o cinema, o Pantera Negra fez diversas aparições em programas de televisão, séries e desenhos animados. No filme, entre o belíssimo elenco composto por Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Letitia Wright, Forest Whitaker, o Pantera Negra é interpretado por Chadwick Boseman (in memoriam). E esse é um texto em sua homenagem…

As primeiras estatuetas do Oscar para a Marvel Studios são frutos da produção de Pantera Negra. O filme atingiu a marca de três premiações na conhecida cerimônia de gala e venceu nas categorias de Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte. Embora não seja o primeiro filme de um herói negro como protagonista — valendo lembrar que Blade vem das HQ’s do universo Marvel — Pantera Negra incorpora uma autêntica representatividade, quando a sociedade contemporânea (ainda) é afetada por múltiplas expressões de violência, desigualdade e racismo (infelizmente, essas palavras se repetem na sociedade e neste texto).

Com isso, torna-se compreensível o fenômeno que influenciou uma geração de seguidores da cultura pop, que responde com empenho o sucesso atingido por assistir a um filme de herói, que para além do protagonista ser negro (e o herói), possui uma profunda trama que envolveu um elenco de negros, combinando um roteiro que concentrou aspectos deslumbrantes da cultura e estética africana. Faz todo sentido a devida visibilidade.

Pantera Negra: Dos quadrinhos para a tela, sem deixar de lado a realidade

Com a mudança na lei para o fim do regime de segregação racial, os primeiros heróis negros surgem nos universos Marvel e DC. Então, Pantera Negra (1966), Falcão (1969), Lanterna Verde (1971), Luke Cage (1972), Tempestade (1975), Tyroc (1976) e Raio Negro (1977) começaram a aparecer nas histórias em quadrinhos, a princípio na condição de papéis coadjuvantes ou em parceria de outros heróis já conhecidos. Posteriormente, estes personagens passam a protagonizar e conquistam suas próprias séries e histórias.

“O Pantera Negra!” Fantastic Four #52-53, 1966, por Stan Lee e Jack Kirby

T’Challa, que foi o primeiro super-herói negro a adentrar o universo dos quadrinhos teve sua versão criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1966, meses antes da fundação do grupo militante Partido Pantera Negra[1]. Evidentemente, o personagem e o partido terem o mesmo nome tecem uma interessante relação nas edições que seguem após a surpreendente coincidência. Aliás, seus criadores tentaram evitar tal acontecimento. Temendo problemas, alteraram o nome do herói para Leopardo Negro. No entanto, em função da popularidade que atingia o Partido dos Panteras Negras, a desaprovação dos leitores fez com que fosse retomado e mantido o título original do quadrinho.

A estreia do personagem Pantera Negra veio como coadjuvante nas edições 52 e 53 de Fantastic Four[2], em 1966. Novamente sobre coincidências ou genialidade dos quadrinhos, o herói surge em meio ao cenário político da época e isso ocorre exatamente um ano depois da morte de Malcolm X.

Neste quadrinho, a estreia do herói cooperando nas páginas de Quarteto Fantástico no ano de 1966 com a equipe de Lee e Kirby, onde a dupla elabora um personagem africano, rei de uma nação próspera e altamente tecnológica e que em momento algum, se mostra inferior aos heróis da aventura. A estreia e o enredo do Pantera Negra, parece tão atual como nunca. Assim que a história de T’Challa, líder do reino de Wakanda que ganha os poderes de Pantera Negra para proteger o seu povo, conquistou elogios do público e da crítica especializada não somente pela trama, mas também pela excelência estética.

O filme aborda a trajetória do príncipe T’Challa  —  incrivelmente interpretado por Chadwick Boseman —  à sua terra natal, a secreta e próspera nação de Wakanda. Situada no continente africano, o reino fictício é o mais avançado da Terra, possuindo altíssima tecnologia, ciência, poder militar e organização social em razão de possuir um recurso exclusivo, o metal Vibranium, que possibilitou à Wakanda se manter escondida e protegida do resto do mundo, evitando dessa forma, a intervenção dos povos europeus, que acontecia em larga escala pelo resto do continente.

Com a morte do rei T’Chaka, vítima de um atentado terrorista – retratado no terceiro filme do Capitão América em 2016 – agora T’Challa está de volta ao lar para ser coroado o novo soberano. A cena pós-créditos de Guerra Civil se passa em Wakanda e uma escultura gigantesca de uma Pantera Negra é vista no local. Detalhe: as imagens do país africano liderado por T’Challa foram filmadas em terras brasileiras, a saber, nas Cataratas do Iguaçu.

O vilão Killmonger, de Michael B. Jordan, apresenta uma interpretação convincente acerca de seus propósitos e ideais, que leva o público às principais reflexões do filme, despertando a  atenção para o drama real, afinal, seu personagem é oriundo das violentas ruas de Oakland e sofre todas o conjunto de desigualdades e expressões da questão social que afetam os negros dos Estados Unidos, sobretudo os mais pobres. Sendo essa a primeira cena do filme, a escolha do local é profundamente significativa. Oakland, é uma cidade localizada no estado da Califórnia e foi o berço do movimento do Partido dos Panteras Negras, que emerge como uma resposta diante da repressão policial contra a população negra (Parece até 2020, não?).

Por este prisma, o personagem apresenta uma revolta fundamentada na realidade. Em meados do século 20, diversos estados norte-americanos sustentaram as leis de discriminação racial, semelhantes às praticadas pelo regime branco sul-africano do Apertheid ou das primeiras leis segregacionistas da Alemanha nazista. Nesse período, até os anos 1960, as salas de aula, os assentos do transporte coletivo e bebedouros públicos eram divididos para a população branca e para a população negra[3].

Desta forma, o longa mesmo possuindo a dinâmica Marvel, possui um aspecto positivo ao articular o enredo com um dilema sociopolítico contemporâneo, pois trata-se de um vilão não apenas em busca de uma vingança per si, mas que almeja através da força, revolucionar e promover a transformação dos povos negros.

O grande desafio é posto no filme quando Wakanda na condição de nação mais rica e próspera se mostra cada vez mais ameaçada. O povo e suas lideranças se subdividem entre os que consideram necessário se defender para tentar manter as tradições e a segurança de um lado, e os que compreendem ser necessário sair das bases fechadas e intervir diante dos acontecimentos que oprimem os povos negros nos demais países do mundo.

Justapostas, as perspectivas entre T’Challa e Killmonger são lançadas. Não apenas o trono e o poder o Pantera Negra, mas projetos societários para a cidade a partir do que é considerado sagrado para o herói ou o vilão. Inclusive, uma referência à espiritualidade africana tradicional, que tem a ancestralidade como um traço marcante, na qual torna constitui a jornada dos personagens de aspectos como a força e a sabedoria. A sociedade da informação precisa recuperar as virtudes antigas e a sabedoria que não se encontra num tutorial.

Para Killmonger, Wakanda deve usar seu poderio com a finalidade de intervir nas demandas dos negros através de sua superioridade tecnológica e militar. Contrário senso, T’Challa, já com o poder do Pantera Negra, articulando o papel de guerreiro e rei, compreende que a atuação de Wakanda deve ser benéfica para todas as nações.

Com isso, e, aos da fé, indagamos que o filme levanta a seguinte pergunta: qual a perspectiva de “teologia pública” para a cidade, visto que a dinâmica da fé convive num espaço-tempo e implica projetos humanos, como o do pantera Negra e o de Killmonger para a mesma Wakanda. Temos as nossas preferências… mas, qual é o projeto de Deus para a cidade?

Wakanda como modelo da justiça e shalom

A cidade de Wakanda possibilita uma perspectiva para recuperar a relação entre a espiritualidade judaico-cristã, a constituição da vida urbana e as tecnologias, a partir do conceito de justiça e shalom (Schuurman, 2016, p.7). A justiça bíblica, compreendida enquanto a condição e ação necessárias para garantir o bem viver, frutificar e florescer toda a criação de Deus.

No Antigo Testamento, a palavra hebraica traduzida como justiça é a palavra mishpat. O termo é associado frequentemente com a palavra tsedeqa, que é traduzida como “retidão”. Juntas, mishpat e tsedeqa são traduzidas como “justiça e retidão” no Antigo Testamento e simplesmente como “retidão” no Novo Testamento (KELLER, 2013, 30-31). Logo, a shalom é a palavra hebraica para a paz e plenitude, de maneira que, onde houver justiça, haverá shalom.

A narrativa da criação presente no livro de Gênesis fornece aspectos complementares em relação a Deus e a humanidade. No mandato cultural, o ser humano é criado à imagem e semelhança de divina tem a ordenança de seu criador para desenvolver a cultura. Wright (1991, p. 71) lembra que Deus é senhor e definitivo de todas as coisas criadas, de tal forma que a posse econômica do ser humano, seja ela coletiva ou individual está subordinada ao direito divino, do qual deriva uma proposta ética e social.

A compreensão do Pantera Negra acerca da espiritualidade é encontrada no personagem de Zuri (no filme, interpretado por Forest Whitaker), que serve como o homem santo, cuja presença sacerdotal é necessária para a legítima transferência de poder do rei Tchaka para o rei T’Challa, porque entende o mundo espiritual articulado com o mundo político. (E nós ainda falando de dualismo rs). O papel do xamã, sacerdote e mágico, ou ainda curandeiro, é comum na cosmologia africana, porque essas pessoas podem exercer funções de cronistas e os guardiões da história e da memória comunal.

Agora, se o rei T’Challa consultasse ou um cristão da Etiópia (porque lá o cristianismo é milenar) e este lhe apresentasse os textos dos profetas do Antigo Testamento bíblico, encontraria nesse profetismo bíblico o entendimento de que “o rei é justo quando intervém para socorrer os mais fracos, os pobres que não têm ninguém para fazer respeitar seus direitos” (FERRY, 2007, p. 43). Todavia, o rei não é o único a realizar a justiça e os relacionamentos corretos na vida diária. O livro do profeta Isaías estende esse dever a todo israelita (Is 5.1-7).

Sobre o dilema levantado em Wakanda em mantê-la em segredo ou sair em missão com o vibranium para auxílio de outros povos, Wright (1991, p. 72) mostra como a terra e seus recursos são compreendidos na ética bíblica: “considerando que a terra foi dada a toda a humanidade, o acesso a ela e o uso dos seus recursos devem ser partilhados por todos e devem estar disponíveis a todos”.

Goudzwaard (2019, p. 258), que produz uma crítica sobre as potencialidades e limitações do modo de produção da economia vigente, apresenta uma alternativa valendo-se de uma filosofia cristã, onde a responsabilidade humana demanda empenho de cidadãos, políticos, empresários, gestores e outras lideranças que busquem, para além de uma lógica utilitarista e egocêntrica, encontrar sentidos no trabalho, na economia e no progresso, um novo horizonte de felicidade. Tanto em Wakanda como nas cidades da Bíblia, é possível perceber a relação entre tecnologia, arquitetura e artes (Gn. 4; 11).

Outro ponto que pode responder os desafios e que são condizentes com os princípios de Wakanda é o entendimento bíblico de que cidade significa maior diversidade, como rememora Keller (2014, p. 164) que no Novo Testamento, a igreja de Antioquia, registrada no capítulo 13 do livro de Atos dos Apóstolos, possuía lideranças de diferentes grupos étnicos. Assim, quanto mais o evangelho era compartilhado nas cidades, mais as igrejas e as cidades tornavam-se plurais em termos raciais e culturais.

No Apocalipse de João (22.19) é feito um contraste entre a Babilônia, que é a grande cidade, e a cidade de Deus, Jerusalém. Enquanto uma recebe o julgamento divino porque promove opressão, violência e morte, a outra é acolhida pela bênção e a salvação, com o dom da vida eterna.

Considerações Finais

Considerando que há uma relação dialética entre a teologia, a cidade e as decisões de Wakanda, fundamentadas inicialmente na HQ, mas também sustentadas no longa, pode-se afirmar que a opção em servir à cidade revela amor, mas também a identidade constituída da missão. Aqui, é possível eclipsar tal compreensão não somente na jornada do Pantera Negra e do povo de Wakanda que partilha do vibranium às outras nações, mas também na Igreja de Cristo, que leva a mensagem da boa nova ao mundo.

No personagem de Killmonger, há um anseio existencial por um lugar de retorno, um desejo de pertencimento, na condição de como um afro-americano que só conheceu a vida sob a opressão, a violência e a injustiça, que geram marcas tão profundas e reais por um racismo que permanece até os nossos dias. Killmonger faz sua jornada espiritual à Wakanda, um lugar ao qual ele pertence, em razão de seu sangue real, mas também um lugar que é estranho para ele, porque seu projeto – diferente da Cidade de Wakanda – é da “Cidade dos Homens” [lembrando aqui de Agostinho], baseado em outro propósito. Disto, há uma tensão em Wakanda que o qualifica como forasteiro, aquele que instrumentaliza do sagrado para outros fins. Os capítulos de 4 a 11 do livro de Gênesis falam dos edificadores da cidade como aqueles que são os descendentes de Caim. Por outro prisma, assim como a cidade pode ser o território, o lugar e o espaço que mostram a rebelião humana, é também o lócus da história da redenção.

Dessa forma, enquanto a Babilônia é construída nos valores individualistas, da violência e da opressão, Wakanda se aproxima da cidade de Deus, em que o rei T’Challa, sendo o próprio Pantera Negra, todos os cidadãos, seus recursos e tecnologia são convocados a buscarem a paz, fazer o bem, e, nesse sentido, abençoar seu povo e as nações promovendo a justiça. Isso envolve também combater o racismo que oprime, violenta e mata a população negra.

Quem é de Wakanda ou da Cidade de Deus, assim como Chad ou T’Challa, está alinhado com essa perspectiva de cidade.

——————————————————————-

Agradecimentos ao belíssimo trabalho de Chadwick Boseman, por nutrir o imaginário de crianças e jovens que se viram representados em tempos onde o racismo ainda é um mal a ser aniquilado; ver beleza, arte e esperança no Pantera Negra, protetor de Wakanda nos faz lembrar o projeto de cidade de Deus.

Sigamos até o amor e a verdade se encontrarem e a justiça e a paz se beijarem (Salmo 85.10).

Chad, descanse e corra alegre no Vale Verde…

Wakanda para sempre!

——————————————————————-

Referências:

[1] Cf.: The Black Panthers: Vanguard of the Revolution. Direção de Stanley Nelson. EUA: NETFLIX, 2014. Documentário (159 min.). Disponível em: http://www.netflix.com.

[2] O Fantastic Four traduzido por Quarteto Fantástico, também é criação de Stan Lee e Jack Kirby em 1961. O grupo é formado por Reed Richards (Senhor Fantástico), Sue Storm (Garota Invisível), Ben Grimm (Coisa), e Johnny Storm (Tocha Humana).

[3] É vasta a filmografia que aborda a situação da segregação racial nos EUA. Acerca do que foi mencionado, Cf. o filme HISTÓRIAS CRUZADAS. The Help (original). Direção de Tate Taylor. EUA: produzido pela DreamWorks Pictures, 2011.

Referências Bibliográficas:

FERRY, Joëlle. Há justiça econômica nos profetas? In: MIES, Françoise [org.]. Bíblia e economia: servir a Deus ou ao dinheiro. Tradução de Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Tradução de Leonardo Ramos. Viçosa: Ultimato, 2019.

HUDLIN, Reginald; ROMITA JR, John. Black Panther: who is the Black Panther?. Tradução de Caio Lopes, Dorival Vitor Lopes & Helcio de Carvalho. São Paulo: Ed. Salvat, 2014.

KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Tradução: Eulália Pacheco Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014.

KELLER, Timothy. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. Tradução: Eulália Pacheco Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2013.

LEE, Stan; KIRBY, Jack. Fantastic Four: the Black Panther. Ed: Marvel comics, v. 1, #52,1966.

MARVEL STUDIOS, 2018. Disponível em: https://www.marvel.com/movies/black-panther.

WRIGHT, Christopher, J. Povo, Terra e Deus. Tradução de Yolanda Mirdsa Krievin. São Paulo: ABU, 1991.

SCHUURMAN, Egbert. Cristãos em Babel. Tradução: Breno Oliveira Perdigão e Pedro Felipe Gonçalves Silva. Brasília, DF: Monergismo, 2016 (E-book).

Publicado originalmente no Medium do Coletivo Tangente. Reproduzido com permissão.

  • Vinnicius Almeida é assistente social e teólogo, membro do Projeto 242 em São Paulo. Casado com a Ale, anda de skate quando pode e tem trocado uma ideia no Manifeste Podcast, da Missão Steiger Brasil.
  1. Um bom texto ao menos no que diz respeito as informações sobre a criação do personagem e ao contexto político e social que contribuiu para o surgimento do herói, fora isso tem mais utilidade como pano de fundo para uma pregação em alguma igreja, voltada para um público que não conheça nada sobre África. Quanto a relação de Wakanda com a teologia judaica, ou cristã, achei uma tremenda forçação de barra. O texto estava indo bem até o momento onde se lê: “Agora, se o rei T’Challa consultasse ou um cristão da Etiópia”. O “se” é uma coisa muito, mas muito vaga, que demonstra claramente o esforço em fazer uma conexão entre o Pantera Negra e a teologia judaico-cristã. As mensagens transmitidas no filme abordam questões raciais e a riqueza do continente africano. Riqueza cultural e material, que ao longo do tempo foi explorada pelos colonizadores europeus, especialmente no final do século XIX. Já o filme, apresenta referências com base em dados históricos e busca construir uma imagem de África como berço da humanidade, como berço de impérios ricos e poderosos como o Egito, a Núbia, o Mali, o Reino do Congo, e a riqueza dos povos da África subsariana e das culturas bantu, que muito contribuíram para a formação do povo brasileiro. Se é para ir na direção do “SE”, acredito que seja mais relevante acreditar que “SE” existiu um lugar chamado Éden, esse lugar era na África, bem antes e bem longe do imperialismo europeu e judaico-cristão.
    Wakanda para sempre!

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *