Por Cássia de Oliveira

Quando os casos de violência policial nos EUA contra negros como George Floyd ganharam repercussão mais uma vez, revelando que a barbárie teima em persistir mesmo em 2020, me lembrei do avivamento que movimentou a Rua Azuza em Los Angeles, na Califórnia, lá por 1906.

Considerado um dos maiores avivamentos do século 20, o que mais impressionou na época não foi o caráter efervescente dos cultos pentecostais com o falar em línguas. O que mais chamava atenção era o caráter multiétnico dos seus participantes; nos encontros do prédio de madeira da Rua Azuza reuniam-se negros, brancos, hispanos, asiáticos e imigrantes europeus.

Aquela pequena e simples igreja pastoreada por William Seymour, filho de ex-escravos, era um dos poucos lugares na América segregada que reunia amistosamente brancos e negros. Ali não havia espaço para discriminação racial. Até os jornais da época noticiaram com grande espanto o fato de brancos e negros congregarem juntos.

Para os participantes do movimento pentecostal da Rua Azuza, a mistura étnica era mais uma prova que o avivamento era genuíno e provinha de Deus. Em um artigo do jornal A Fé Apóstólica, fundado por Seymour, da edição de novembro de 1906, afirmava o que aquela comunidade eclesiástica acreditava: “Nenhum instrumento que Deus possa usar é rejeitado por motivo de cor, vestuário ou falta de cultura”.

E assim, lembrando da história do Avivamento da Rua Azuza, refleti que a primeira esfera da sociedade a se levantar contra o racismo deve ser a igreja, porque, afinal, quebrar com os agrilhões da discriminação racial está na sua própria raiz. O início da Igreja, através da descida do Espírito Santo no Pentecostes, uniu todos os povos. Cada apóstolo falou em uma língua diferente em Jerusalém, onde judeus e convertidos ao judaísmo de diversas nacionalidades estavam presentes para a festa de Pentecostes, dando um pequeno vislumbre de como seria o corpo místico de Cristo: formado por toda língua, povo e nação.

Entretanto, a igreja primitiva, em sua maioria formada por judeus convertidos, ainda não tinha entendido que o evangelho era universal e que Israel era a nação missionária responsável por anunciar as boas novas às demais nações. Embora já houvesse gentios se convertendo à mensagem da cruz – como o caso do eunuco etíope que foi evangelizado e batizado por Filipe e provavelmente era negro -, os apóstolos eram resistentes à pregação do evangelho aos gentios.

Deus precisou dar a visão dos animais no lençol para Pedro conseguir entender que seu plano de redenção era para todos os que cressem em Jesus e não apenas para o povo judeu. E o Senhor foi tão estratégico que usou também Cornélio, que era um comandante romano, para ensinar que o Senhor detestava a discriminação. Quando o apóstolo Pedro chega à casa de Cornélio, onde já estavam outros gentios reunidos o esperando, ele compreende o que Deus está lhe falando e recusa o gesto de reverência do comandante romano ao se ajoelhar perante ele: “Fique de pé, pois eu sou apenas um homem como você”.

Foi nesse exato momento que os olhos de Pedro foram abertos para a igualdade e o preconceito se desfaz; aquele romano diante dele também era a imagem e semelhança do criador. Enfim, o pai da Igreja primitiva compreende que Deus trata a todos de modo igual e aceita todos os que o temem, seja qual for a sua raça.

Quem sabe, em algumas vezes, Deus terá que tratar com nós, a noiva de Cristo, da mesma forma que fez com Pedro. Ainda temos resquícios da cultura escravista deixada em nós e o velho homem cheio de iniquidade e orgulho que, de vez em quando, teima em ressuscitar, querendo nos convencer que a supremacia branca é real e aceitável.

Ou talvez, nos trate como Saulo, um judeu legalista que foi inquirido pelo próprio Jesus acerca de sua perseguição contra aqueles que ele considerava inferiores, fora do alcance de Deus e de sua “religião pura”. Talvez o Senhor nos transforme, ironicamente, em “apóstolos dos gentios” para distantes viagens missionárias fora da Judeia e de Samaria.

A Igreja começou integrada, deixando bem claro que Deus não faz acepção de pessoas, abomina a discriminação étnica e espera que sua Igreja faça o mesmo.  Nossa ética cristã nos impele a condenar o racismo em qualquer época em que ele se manifestar, desde a igreja primitiva, passando por Azuza em 1906 até os dias de hoje quando ainda, inacreditavelmente, temos que gritar que vidas negras importam.

“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar o outro
de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.”

Gabriel García Márquez

  • Cássia de Oliveira, Jornalista pela UFRGS e repórter da AD Guaíba. Atua na área de comunicação cristã e como colunista. Noticiando boas novas.
  1. Olá, Cássia de Oliveira. Parabéns pela o seu texto e por tratar de uma assunto de tamanha relevância.
    Na matéria você fala sobre jornais da época de William Seymour…haveria alguma forma de ter acesso as esses jornais? Sou professor, e pesquiso sobre os movimentos pentecostais e neopentecostais e tenho tido certa dificuldade em encontrar fontes de informação do início do século XX. Se puder compartilhar algo, será de grande valia.
    Grande abraço!

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