Por Daniel Theodoro

“Deus me pôs nesta rede a olhar a noite.”
Rubem Braga, em O Fiscal da noite

O domingo na quarentena tem sido silencioso. Sem sacramentos, sem sermões, sem assembleia dos santos. Em meio à ausência de ruído santo, uma indagação dentro de mim fala alto, uma suposição quase profana, mas honesta: talvez Deus tenha se cansado do nosso culto prestado e decidiu nos desigrejar por um tempo.

Não sou teólogo, portanto tenho direito a evasivas. Ao contrário de bacharéis em teologia, convivo em paz com minhas dúvidas, além de não ter compromisso em propagar a verdade absoluta. Escrevo apenas o que tenho visto por aí nas esquinas da vida. E no momento, noto que fomos jogados numa encruzilhada das piores, ameaçados por um inimigo invisível que nos impede de congregarmos porque pode nos roubar o ar e a fé.

Pouco me desespera imaginar que talvez Deus tenha se cansado do nosso ajuntamento temporariamente. Pelo contrário, me faz respeitá-lO mais ainda, porque é coerente com Sua aversão à performances religiosas enviesadas.

Não seria a primeira vez que Deus se cansa do culto prestado a Ele. A história mostra que isso acontece quando predomina a encenação religiosa, um tipo de falsidade doentia que pode possuir o adorador de tempos em tempos, levando-o a viver de aparência. Nos casos mais comuns, o sujeito transforma-se num zeloso defensor dos bons costumes enquanto corrompe-se moralmente à medida que manipula Deus, reduzindo-O a leis e tradições.

Imagino que para Deus é cansativo assistir a atores religiosos que se vestem de pureza ao domingo, mas desfilam pecados nos outros dias da semana; é cansativo ver o palco da vida tomado por doutrinas associadas à segregação racial; é cansativo observar uma estrutura eclesiástica que rouba da mulher seu papel; é cansativo olhar para o trágico espetáculo onde pastores fantasiam-se de políticos. Considerando-se tudo, é compreensivo pensar que talvez Deus esteja cansado do ajuntamento solene associado à hipocrisia.

Quem sabe a quarentena exista para gerar verdadeiros adoradores em casa, gente humilde que se encaixa no sermão do monte e no samba de Chico Buarque. Um tipo de plebeu maltrapilho iletrado de teologia emoldurada, um cidadão que vive o Evangelho na residência e no mundo da mesma forma. Faz do barraco um templo, onde a comunhão acontece a cada refeição. Para ele, o banho de chuveiro depois de um dia de trabalho é o batismo para remissão de pecados. Em sua casa, existe diálogo e confissão sincera entre esposa, marido e filhos. Lá não há distinção, apenas gentileza, lá se vive e se adora em espírito e em verdade.

Dentro desse pequeno reino de quatro paredes, o verdadeiro adorador olha pela janela à noite, contempla o céu com suas muitas estrelas, e vê que elas manifestam a glória do Criador mesmo distantes umas das outras, em silêncio, sem encenação.

  • Daniel Theodoro, 33 anos. Cristão em reforma, casado com a Fernanda e pai do Matteo. Formado em Jornalismo e Letras.

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