A resposta da misericórdia (João 8.1-11)
Por Leandro Duarte
Tudo era céu, areia e calor. Lembro-me de haver passado a noite na rua, perambulando, pensativo, tentando responder as perguntas de todos nós. Não havia muita atividade naquela hora do dia e apenas alguns mercadores montavam suas tendas de trocas aos arredores do Templo.
Um marco em Jerusalém era essa construção, que havia demorado mais de 40 anos para ser terminada. Sempre me senti intimidado diante do tamanho e do movimento que o Templo produzia na cidade, além do impacto que trazia em nossa vida: “você está errado, independentemente do que estiver fazendo, e estou aqui para lembrá-lo disso” parecia sempre ser a mensagem.
Essa mensagem não era interpretada espontaneamente por qualquer um de nós na época. Era simplesmente ensinada por aqueles homens que se vestiam diferente falavam diferente em nome de Yahweh, a quem era dedicada a construção.
Lembro que me sentia profundamente incompetente e vazio diante de Yahweh: como posso me relacionar com o dono do Templo se a mensagem que ouço é que jamais vou conseguir satisfazer suas eternas exigências?
Mas apareceu um homem no pátio enquanto todo esse devaneio acontecia. Era o homem de sempre, que enfurecia os doutores que passavam a mensagem para nós. Não havia ouvido o que ele tinha a dizer até aquele dia, quando o vi se aproximar, vindo do Monte das Oliveiras. Realmente aquele homem não descansava. Parecia sempre tão comum e identificado a qualquer um de nós, mas ao mesmo tempo tão distante e tão diferente de qualquer outro homem…
Não havia nada em seu aspecto que pudesse atrair quem quer que fosse. Falavam que seu ofício era a carpintaria, mas ele possuía uma clareza de raciocínio e um discurso tão fora do comum que arrebanhava multidões. Lembro-me que naquele mesmo dia, o homem, sentado, se pôs a ensinar umas poucas pessoas na parte de fora do Templo e, claro, como sempre acontecia, aquelas pessoas logo se transformaram em outra multidão.
É claro que havia lugar dentro do Templo para esse tipo de reunião, mas o homem nunca o utilizava. Sempre deu prioridade para ensinar o que quer que fosse em lugares públicos, de fácil acesso a qualquer um que passasse, e quase sempre assentado, na mesma posição dos grandes professores de Jerusalém. Esse era outro motivo pelo qual os doutores se enfureciam com ele.
De longe, tudo era massa e silêncio para ouvir o que o homem tinha a dizer.
Como um vaso de barro seco quando cai no chão, o silêncio foi repentinamente quebrado por uma agitação e gritos que, se me lembro bem, vinham de encontro ao centro da multidão. Havia uma mulher sendo arrastada. Lembro-me como se fosse ontem de suas roupas: seda transparente e pinturas que revelavam para quem quisesse ver onde estivera e o que estivera fazendo.
– Adultério! Esta mulher foi pega em adultério! – dizia a turba olhando fixamente ao homem no centro da multidão. Ora, se ele se revelava como um grande professor, talvez tentando concorrer com os mestres do Templo, que resolvesse o caso dessa mulher adúltera.
– Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério. Moisés, que recebeu a Lei de Yahweh, nos ordena apedrejar mulheres adúlteras. E o senhor, que diz? – disse um dos homens ensandecidos que traziam a mulher arrastada.
Lembro-me que de onde eu estava era possível distinguir as vestes e o vocabulário deles: os mestres do Templo. Com certeza, estavam tentando apanhar o homem que ensinava em uma armadilha, a fim de desacreditá-lo diante daquela multidão que insistia em ouvir o que ele tinha a dizer. Humilhá-lo publicamente talvez fosse uma boa ideia e, quem sabe, um passo mais próximo de um propósito maior: calá-lo de uma vez por todas.
Era perceptível para nós a tensão entre os sacerdotes de Yahweh e o carpinteiro. Era quase possível tocar a intenção que eles tinham de matá-lo, a fim de impedi-lo de interferir nos negócios de Deus. Quem era ele, um mero artesão, para ir contra todos os ensinamentos de homens que passavam a vida estudando os escritos de Moisés?
O carpinteiro, calado, ouvindo o que eles tinham a dizer sobre a mulher humilhada, permaneceu guardando silêncio. Talvez este tenha sido o primeiro dos grandes golpes que estavam por vir sobre os sacerdotes. O homem sabia bem o que nenhum de nós jamais soube: o momento correto para falar e o momento correto para calar.
Lembro que vi terror nos olhos da moça de pé no centro da multidão, enquanto a própria multidão se voltava aos sacerdotes. O apedrejamento em Jerusalém era comum e extremamente doloroso. Para mim, uma das piores formas de morrer, tirando o método aplicado frequentemente pelos romanos. Esses mesmos olhos suplicavam uma segunda chance. Havia arrependimento genuíno nela, e a turba que a trazia só conseguia enxergar competição e assassínio.
O tempo havia congelado e a cena, logo cedo, era digna das tragédias gregas. A multidão ao redor do homem prendia a respiração com a mesma intensidade que os sacerdotes guardavam sentimentos de triunfo. Inesperadamente, sentado, o carpinteiro se inclinou um pouco mais perto do chão de areia batida e começou a escrever com o dedo, igual as crianças de Jerusalém faziam em suas brincadeiras. Era impossível para qualquer um ver o que ele sentia. Era impossível ver seus olhos ou desvendar sua expressão.
– Esta mulher foi pega em adultério! Adultério! A quebra do sétimo mandamento!
– O terceiro rolo da Torah nos diz que ela deve ser apedrejada!
– Por que se cala, carpinteiro? Onde foi parar toda a sua eloquência? – E os gritos dos acusadores continuavam, se aproveitando do silêncio.
Ficar velho é refletir. Quantas vezes não interpretamos de forma correta o silêncio? Talvez este seja o motivo pelo qual estamos tão cercados de ruídos. O silêncio nos confronta de uma forma que qualquer barulho jamais vai fazer, seja ele com sentido ou sem. As repetições dos homens de Yahweh só confirmaram tudo isso: o silêncio constrange e exige.
Engraçado, pensando e escrevendo agora com calma sobre aquele dia, também gostaria de fazer algumas perguntas àquela turba de sacerdotes, do mesmo modo como eles incitavam o homem a tomar alguma atitude: “esta mulher não foi apanhada em adultério sozinha! Onde está o homem com o qual ela estava?”, “a punição não deveria cair sobre o casal adúltero, de acordo com o que está escrito?”, “por que o homem também não está aqui?”.
Da mesma forma que o carpinteiro havia abaixado para escrever no chão, continuando a ouvir enquanto gritavam, ele se endireitou, fixando neles os olhos. Muitos foram os que fitaram aqueles olhos: a ponte que ligava o que havia dentro do carpinteiro com o que aparecia por fora. Quão dóceis e quão terríveis eram os olhos daquele homem!
– Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela. – disse, abaixando logo em seguida e continuando a escrever no chão batido.
Já estou idoso. Passei por muitas estações em minha vida e hoje, depois de muito aprender sobre o que o carpinteiro ensinou, percebo a profundidade dessas palavras e que elas mesmas são a resposta para as perguntas que fiz logo acima. Parece-me muito claro agora o motivo pelo qual o adúltero não estava aparentemente presente, mas não quero contaminar a história com as conclusões e as reflexões de um velho.
Lembro-me ainda que a resposta do homem foi um choque para todos: para a multidão que o escutava atentamente, para a turba de sacerdotes já não tão ensandecidos depois de mais um golpe, para mim que estava ao longe observando e, principalmente, para a mulher. Quem iria prever que a pergunta que exigia uma resposta direta seria respondida dessa maneira?
Para mim, somente hoje faz sentido o motivo pelo qual o adúltero não estava lá, mas para os mestres, a resposta trouxe imediatamente o sentido e hoje percebo o porquê de um a um os grandes sacerdotes terem saído de perto do carpinteiro, desde o mais velho até o mais moço, abandonando suas pedras que, ao caírem ao chão, respondiam a pergunta melhor do que qualquer palavra. Todos eles saíram, abandonando a mulher ainda trêmula, não sabendo o que o homem que emudecera os sacerdotes havia de fazer com ela.
De longe, o vi se levantar devagar, olhá-la longamente nos olhos e, enfim, perguntar:
– Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou? – a voz era terna, mas firme.
– Ninguém, senhor – veio a resposta, aos borbotões.
– Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado – disse, consistente com tudo o mais que ensinava.
Não me lembro o que aconteceu à mulher, nem mesmo qual foi sua postura ao terminar de ouvir a sentença, mas uma coisa era certa, talvez uma das pessoas que mais foram impactadas pela cena, tenha sido eu, por isso gosto de lembrá-la sempre. Como podia isso? As respostas às minhas perguntas de antes mesmo do homem chegar estavam respondidas de uma forma que nunca ouvira antes! Ele não a condenara, e isso trazia um profundo significado e uma relação ainda mais estreita com o que estava escrito na Torah. Somente um podia condenar ou absolver alguém: o próprio autor da Lei!
Ainda lamento muito não ter visto o que o homem escreveu na areia, mas tenho minhas convicções particulares. Esta, segundo dizem, foi a única coisa que o carpinteiro escreveu em toda a sua vida, nada mais foi escrito por suas próprias mãos. Suspeito que o carpinteiro simplesmente tenha escrito uma palavra curta ali. Uma palavra que havia muito sido esquecida pelos homens nas roupas bonitas e que continua sendo esquecida por nós até hoje. Talvez o que a areia trazia em si era a palavra checed. Era misericórdia em hebraico.
- Leandro Duarte, 26 anos. Teólogo e bacharel em ciência da computação, é fã de literatura, música e design. É mineiro e tem profunda consciência da própria situação, permanecendo escondido à sombra da cruz.