Por Daniel Theodoro

Maria Durvalina – 27 anos, negra, mãe de Júnior, Ismael e Davi, ex-prostituta, liberta da Lei do pecado há 10 anos e sob proteção da Lei Maria da Penha atualmente – transborda de alegria e quase acorda a sonolenta casa com um sonoro “Glória a Deus!” quando, ainda de madrugada, recebe no celular pré-pago a confirmação da seleção para a vaga de empacotador temporário em abril, em uma fábrica de chocolates, na Zona Leste de São Paulo. Não é mentira. No primeiro dia do mês, a mensagem de texto ressuscita em Durvalina a expectativa por uma efetivação, embora ela tenha aprendido a não contar com o resoluto carimbo da empresa na Carteira de Trabalho ao final de um curto período de contratação.

Experiente na rotina de fazer bicos, ela sabe como será o mês. Verá pouco as crianças, trabalhará muito e dormirá menos. Pensa que perderá a cantata de páscoa porque não terá tempo para os ensaios – se o anúncio da vaga não deixava claro o plantão aos sábados e domingos do mês, a recrutadora fará questão de tirar a dúvida logo no primeiro contato com os aspirantes. Na verdade, muitos novatos são antigos visitantes do quadro rotativo de funcionários temporários nos meses em que a produção exige mais mão-de-obra. Da última vez em que esteve na fábrica, um ano atrás, Durva – como é chamada pelos efetivos – aprendeu um nome novo para a função: freelancer, palavra cujo significado não sabe, mas ela gosta porque é inglês e dá maior de dignidade ao trabalhador.

Empregada, sabe que passará a gastar, pelo menos, quatro horas no transporte público todos os dias de abril. Na viagem, observará algo novo: ficará para depois o compensatório cochilo no banco gelado do trem, que sai ainda de madrugada da estação Grajaú, zona sul da capital. Perceberá que os vendedores informais, que eram poucos nos vagões meses atrás, se multiplicaram – talvez reflexo da tal recessão de que ela escuta falar no rádio – e aproveitam para promover uma verdadeira gritaria sobre trilhos, vendendo pen drives, porta-cartões, água e chicletes, antes que o fiscal recolha tudo e determine um ponto-final onde todos descerão. Impossível estender o sono no trem barulhento.

Quase sonâmbula de cansaço, tentará trocar novamente o turno de trabalho no domingo de páscoa. Depois de escutar alguns ‘nãos’, se arriscará abandonando o expediente uma hora mais cedo e chegará à igreja a tempo de assistir ao final da apresentação do coral. Do último banco da igrejinha localizada no periférico bairro Cantinho do Céu, pontuará a divisão das vozes, chorará com o solfejo harmonioso suas crianças, achará lindo o soprano e notará que seu pesado contralto fez falta pelo quinto ano seguido. Acostumada ao anonimato do fundo da congregação, prestará atenção à prédica pastoral que condenará o viés mercadológico da páscoa secular, guardará um pouco de vergonha por ter empacotado três mil ovos só naquele dia de trabalho, não terá vontade de tomar a ceia.

Indigna à porta da igreja na saída do culto, será mais uma vez afrontada por alguns irmãos que voltarão a criticá-la por ter trocado a obra do Senhor pelo trabalho na fábrica. Cansada, evitará discussão. Pegará as crianças pelas mãos, uma de cada lado, caminhará para casa, esperará dobrar a esquina para então tirar da bolsa as brilhantes embalagens com ovos de páscoa que o novo patrão deixou trazer para elas. Se emocionará com a festiva reação dos filhos mais novos, dirá que eles só poderão abrir quando chegar em casa, depois de agradecer a Jesus pelo presente da páscoa. Curiosas, as duas crianças notarão que a bolsa da mãe permanecerá volumosa, mas Maria Durvalina não lhes dirá nada. Dentro está o ovo de páscoa do Júnior. Mas ele só poderá abri-lo em maio quando a mãe desempregada terá o fim de semana livre para visitá-lo no Complexo Brás da Fundação Casa.

  • Daniel Theodoro, 32 anos. Cristão “em reforma” e membro nascido na Igreja Presbiteriana Maranata de Santo André (SP). Casado com a Fernanda. Formado em Jornalismo e estudante de Letras.
  1. Uau, ia apenas ler a primeira frase, mas não consegui para até última! Excelente conto que expressa a realidade de alguns que acaba sendo ignorada. Traz reflexões sobre vários temas, mas para mim, principalmente o valor de uma vida que deve ser maior que questões religiosas. Parabéns! Que Deus os abençoe.

  2. Emocionante e verdadeiro, embora seja ficção. Um retrato da nossa sociedade e da nossa religiosidade também. Obrigado por escrever Daniel. Abraços!

  3. Paulo Cesar Villanova Ruiz

    Tremenda lição que, nas entrelinhas nos ensina: a amar mais e criticar nada; buscar perceber as necessidades das pessoas à nossa volta, quando estamos com a barriga cheia e nossos filhos conosco e bem, e a perseverar, sempre esperando no Senhor novas possibilidades e oportunidades, nem sempre para nós próprios, mas para aqueles que amamos. AMAR SEMPRE SEM NUNCA QUESTIONAR.

  4. Muito bom real…duro enxergar nossa religiosidade “sem noção”, que desconsidera a desigualdade que está do lado de dentro e de fora da igreja. Misericórdia!!

  5. Parabéns, ótimo conto, traduz a nossa realidade religiosa que​ tem enorme dificuldade de entender a dificuldade e sofrimento do outro. Caminhemos em direção a uma religiosidade sadia.

  6. Antonia Leonora van der Meer

    Amei esse conto, que apresenta a luta, a dor, a fé, a coragem, a humildade e o amor dessa jovem mãe, não compreendida nem apoiada pelos irmãos da igreja. Escreveu com sensibilidade.

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