“Amantes Eternos” ou a permanência (ou persistência) das coisas
O último filme de Jim Jarmusch é uma grata surpresa. Talvez uma das maneiras de entender melhor “Amantes eternos” seja fazendo uma arqueologia do diretor e de suas influências.
Jarmusch é obcecado pela mesma ideia/temática há três décadas. Parece estranho, mas é verdade: as ideias nos habitam, mais que nós as habitamos, e elas duram muito mais tempo que esperamos. Foi assistente de Wim Wenders (Asas do Desejo, Paris,Texas), Nicholas Ray (Juventude Transviada, Johnny Guitar) e dirigiu, durante sua carreira, uma lista impressionante de atores e músicos, todos com características fortes em comum. Uma lista breve: Johnny Depp, Tom Waits, Bill Murray, Roberto Benigni, Steve Buscemi, Iggy Pop, Screamin’ Jay Hawkins, John Lurie, Gena Rowlands (mulher de John Cassavetes, o pai do cinema independente americano), Winona Ryder, Jack White, entre outros, mais, ou menos, conhecidos.
Se nenhum nome dessa lista faz algum sentido, basta você saber que todos esses relacionam-se com o cinema (quase) independente. Quase, pois Jarmusch migrou aos poucos para o mainstream. Nasceu no independente, legítimo independente, e migrou, economicamente e (o que é mais significativo) em termos estéticos, para o mainstream. É difícil enquadrá-lo como cineasta independente, cabendo talvez chama-lo de um cineasta autoral, separando-o de Hollywood. Talvez o que o enquadre em um “outro” cinema seja a escolha por personagens e histórias fora do escopo, da ordem social. Jarmusch conta histórias de gente marginal, na sociedade, na alma, no corpo…
Seus filmes versam sobre o universo marginal. É lá que, emprestando de Kerouac, estão seus vagabundos iluminados. (Talvez um bom modo de entender melhor Jarmusch seja ouvir Tom Waits, figura recorrente em seus filmes…)
Após essa introdução um pouco longa (perdoem-me), creio podermos abordar o filme de modo adequado. “Amantes Eternos” é a tradução meia boca de “Only Lovers Left Alive”, algo como “Os únicos amantes vivos”. Trata-se da história de Adam e Eve, um casal de vampiros casado há séculos, literalmente. Ele vive em Detroit, em um bairro abandonado, em uma casa meio abandonada, em clausura, compondo suas canções e colecionando instrumentos antigos. Ela em Tânger, no Marrocos, em um bairro aparentemente periférico e longe do centro.
Adam é “herdeiro” da tradição dos poetas “malditos”, como Byron e Baudelaire e durante os séculos foi encontrando ressonâncias em diversos artistas. Em uma cena simbólica, podemos identificar em sua parede retratos como o de Nicholas Ray, Jack White, Tom Waits, William Blake, Oscar Wilde, Emily Dickinson, Bach, Rimbaud, Poe… Adam despreza os humanos (chama-os de zumbis) por temerem a imaginação e por enredarem-se em caminhos que os distraem da arte e da beleza (e do amor, da paixão…). Em uma cena paradigmática, Adam olha para uma instalação elétrica na parede, cheia de fios e conexões, e reclama da estupidez dos homens ao complicar aquilo que é simples. Apesar de compor música mesclando elementos clássicos e com um tom meio pós punk, anda deprimido pelo estado do mundo e das pessoas. (Também importante é a cena em que ele mostra a Eve a casa em que Jack White, ex-vocalista do The White Stripes, cresceu, o sétimo irmão de uma família pobre.) É um ser que despreza as prioridades mundanas, apesar de ter conseguido assimilar o presente de diversas maneiras, e assim isola-se, considerando até o suicídio.
Eve, por sua vez, é uma vampira mais branda, apesar de também rejeitar a ordem das coisas. É versada em diversas línguas e profunda conhecedora da literatura mundial em todas as épocas. A diferença entre os dois é clara: Eve utiliza um iphone para conversar com o marido, enquanto Adam utiliza um telefone dos anos 60 e uma televisão de tubo conectada ao seu laptop antigo. Enquanto Adam veste um roupão de mais de um século, Eve veste-se de modo adequado aos nossos tempos. Ao saber que Adam não está bem, ela decide ir visitá-lo.
Algo os une de modo irremediável, ambos se amam de maneira perpétua e apaixonada, sendo impossível estarem separados pela distância. A imagem é interessante: vampiros são imortais, e o casal mantém a relação há séculos, um necessitando do outro, vivendo como um. Ambos vivendo e amando-se fora das regras e das demandas do mundo. Os únicos amantes na terra, como o título sugere.
Mas o embate é eminente, Adam está à beira do desespero e precisa achar outro modo de viver, de manter o amor por Eve e continuar a levantar-se quando o sol se põe. Precisa encontrar outra maneira de encontrar mágica no mundo, já que os homens abandonaram a paixão e a imaginação. E contra os ímpetos suicidas de Adam, Eve vem lhe mostrar que, apesar das mudanças, as coisas que realmente importantes persistem, a paixão, o amor, a originalidade, a arte: essas coisas não morrem, jamais. As ideias persistem e se renovam, nós que desistimos de procura-las, julgando-as mortas. Como Eve diz a Adam: “Você sempre coloca a culpa de seus problemas nos homens”.
É quase um filme autobiográfico, em certo sentido. Jarmusch é conhecido por não ter celular, e-mail, por escrever seus roteiros a mão e por rodar todos seus filmes em película. Esse é seu primeiro filme em formato digital, acerca de um ser deprimido e enfatuado dos modos da sociedade e, no decorrer da história, mostra a jornada de amor entre Adam e Eve em busca das coisas que persistem.
As coisas se renovam, reaparecem, nós teimamos em permanecer no mesmo lugar. Não sei se Paulo entrevia a real dimensão do problema quando recomendou aos crentes de Roma que renovassem seu entendimento para que entendessem a perfeita e agradável vontade de Deus (Rom 12:2).
Talvez exista, sim, um mistério de difícil compreensão: é no fundo que encontra-se a saída, é nas ruínas que encontra-se a nova vida. A lógica da ressureição atua no mundo de modos imperceptíveis.
Certa vez pediram a Neil Gaiman para que resumisse a história de Sandman (esse fica pra outra hora), uma de suas publicações mais famosas, em poucas palavras. Depois de pensar bem, ele disse: “O Mestre dos Sonhos aprende que uma pessoa deve mudar ou morrer, e toma sua decisão”. Mudar ou morrer. Talvez seja preciso mudar para continuar a ser o mesmo.
• Gabriel Brisola tem 24 anos, é formado em jornalismo e fotógrafo.
Eduardo
Afinal, assiste-se ou não o filme?