Sobre “A Palavra”, de Carl Theodor Dreyer, e nós, homens de pouca fé
“Meu nome é Jesus de Nazaré”, irrompe Johannes, o pálido e lânguido Johannes de olhos parados e fala carregada.
O filme é “A Palavra” (Ordet, no original) de 1955, dirigido por Carl Theodore Dreyer, um dos ícones do cinema mundial. Assistir ao filme me trouxe grandes surpresas.
“Jesus. Mas como você pode provar?”, pergunta o pastor luterano. “Tu homem de fé, a quem próprio falta fé! As pessoas acreditam no Cristo morto, mas não no vivo. Elas acreditam nos meus milagres de dois mil anos atrás, mas não acreditam em mim agora! Eu retornei para dar testemunho de meu Pai, que está nos céus, e operar milagres.”
“Milagres não acontecem mais”, o pastor pontua. Johannes finaliza: “Assim fala minha igreja na terra, essa igreja que me faltou, que me assassinou em meu próprio nome…”. O pastor fica estarrecido. Como pode alguém falar tais palavras em uma época como a nossa? A pergunta nada deve a Nicodemos.
O irmão mais velho entra na sala. O visitante, ainda em estado de choque, pergunta o que havia acontecido com Johannes. Havia ficado assim depois de estudar teologia, explica o irmão. Fora algo que o havia abalado, um caso amoroso talvez? Não, responde o irmão mais velho, fora Søren Kierkegaard.
Kierkegaard, o mal fadado teólogo dinamarquês! Talvez você tenha ouvido falar de seu existencialismo, de suas crises emocionais, de seus questionamentos sem resposta. Foi ele quem me ensinou sobre fé. Alguns usam o termo para vender artigos religiosos sob a marca de um escudo, outros para efetuar atos de grande proveito monetário ou “atos proféticos”. A fé é usada, mas nada é tão equivocado quanto usar a fé.
Ter posse da fé é a coisa mais absurda que alguém pode querer. Ela se recusa a ser usada. É como água, que ao tentarmos pegar escorre pelos dedos. Mas é fato que nossas igrejas, há tempos, tentam tornar a fé artefato de explicação e manuseio. E é triste que nossas denominações tenham substituído a incerteza de Kierkegaard por modelos fechados de entendimento da fé e de Deus.
A fé, segundo a própria Bíblia, foi o motor para que um pai levasse seu filho ao sacrifício, em obediência a uma ordem de Deus. Um pai que em inúmeros momentos orou em aflição a um deus ainda desconhecido, pedindo pela vida de seu único filho, ao qual fora feita a promessa de um povo mais numeroso que as estrelas no céu. Um pai que subiu calado o monte, engolindo sua própria dor, raiva e tristeza, ouvindo o filho perguntar qual seria o sacrifício. Abraão obedeceu à ordem de maneira cega, passando por cima de multidão de sentimentos e pensamentos. O sacrifício seria suprido pelo próprio Deus. Abraão, o pai da fé.
Jeremias, mesmo tendo acusado Deus de enganá-lo e traí-lo, levantava cedo todos os dias e ia à porta da cidade, acusar o povo de ter abandonado o Deus de seus pais e ter esquecido a causa do órfão, da viúva e do estrangeiro. Jeremias foi jogado em poços, preso, espancado e finalmente exilado. Pela fé, ele foi entregue ao abatedouro, dia após dia, e expôs-se ao ridículo no meio do povo. Jeremias, o profeta angustiado, viveu só e foi exilado por fé.
Um grupo de figuras eclesiásticas vai abençoar manifestantes na linha de frente na Ucrânia, um pastor decide largar os vícios do mercado religioso, um pai decide abandonar seus preconceitos e reconciliar-se com a filha que engravidou durante a adolescência, Martin Luther King, Gandhi, Dostoievski, Carl Theodor Dreyer… Fé.
Como diria um professor da faculdade, em que fomos nos meter? Entregar-se à fé é precipitar-se em um abismo. Ela exige que nos precipitemos, de uma vez por todas. Em tempos de manuseio e engessamento, a fé, essa sim, é muito perigosa para nossas vidas seguras e estáveis.
• Gabriel Brisola tem 24 anos e é formado em jornalismo.