Sonhei. A casa era simples, paredes de madeira, coberta com palha, chão de terra. Contei quatro adultos e sete crianças. No meio, uma senhora deitada na rede. Ao lado dela, na cadeira de palha, um simpático velhinho, com uma Bíblia desbotada e rasgada na mão. Sentei-me no chão, ao lado dele. Ao sentar, vi meus pés descalços, suados, cheios de poeira grudada. As calças dobradas até o joelho. Do outro lado, as crianças me olhavam, dando risadinhas e empurrando-se umas às outras.

Como acontece nos sonhos, onde rapidamente compreendemos as coisas, percebi o que acontecia ali. Sentadas em círculo, as pessoas esperavam o culto começar. Uma jovem abriu a Bíblia e leu algo sobre comunhão. O senhor ao meu lado passou sua Bíblia rasgada para mim e pediu para cantar algo. Será que eu sei cantar? Folhei o velho livro, como que por instinto, fui para as últimas páginas. Encontrei um antigo hinário cristão. Deixei-o escolher. “O número 15”, disse. Pensei em pegar o violão e tocar, mas, às vezes, os sonhos nos traem – você já deve ter passado por isso. Esqueci todas as notas. Porém, guardada na minha caixa de lembranças, achei a melodia. Cenas da minha infância apareceram. Numa pequena igreja, as pessoas reunidas em contrição, cantando com muita força “Quão ditoso então, este meu coração, conhecendo o excelso amor! Que levou meu Jesus a morrer lá na cruz pra salvar este pobre pecador! Foi na cruz, foi na cruz, onde um dia eu vi, meu pecado castigado em Jesus…”. Abri os olhos e Seu Santo cantava comigo, as lágrimas descendo livremente em seu rosto. Como só acontece nos sonhos, enquanto cantávamos, conheci sua história. Cresceu alcóolatra e o foi até depois dos cinquenta. Há quinze anos uns missionários vieram à comunidade para falar de uma nova vida em Jesus. No mesmo momento, abraçou esta vida. Raimundo foi apelidado de “Santo” quando deixou de frequentar os bares e trocou os domingos de bebedeira pela igreja. Acabamos de cantar. Ele pediu outra. Antes, quis falar. Com a mão em meu ombro, reforçou o quanto minha presença o deixava feliz. Olhei pela porta da casa: um enorme rio logo ali. Sim! Era uma comunidade ribeirinha de algum lugar no meio da Amazônia. Como fui parar naquela casa? Não importa, queria ouvir Seu Santo. Ele agradeceu a Deus o privilégio de ter pessoas com a mesma fé, dispostas a se reunir numa tarde de domingo, mesmo com aquele sol de mais de quarenta graus, e falar de Jesus e de coisas boas. “Na comunidade não há mais igreja”, contou. Ele sente falta de ter com quem cantar e ler a Bíblia, de compartilhar como Jesus o ajuda nas fraquezas do dia a dia. Logo ele, tão pobre pecador. Todos os dias, quando se levanta, entrega sua vida a Deus e pede para ser diferença, demonstrando amor aos vizinhos.

Nos sonhos, sou muito mais emotiva – você também deve ser. Lágrimas brotaram em meus olhos. Senti uma alegria sem tamanho, daquelas que não se pode descrever. Só a sentimos quando não estamos acordados. Chorei. Ali, esquecida pelo mundo, mas não por Ele, a igreja de Cristo! Não mais de dez ou doze pessoas, gratas por Seu imenso amor, pela graça demonstrada na cruz. “Oh Senhor, Tu és tão grande e bondoso! Obrigada!”, orei em silêncio.

Seu Santo ainda falava comigo, alguém cantava “porque Ele vive posso crer no amanhã”. De repente, ele ficou muito longe e fui puxada para outro lugar. Sonhos são assim mesmo. Logo estamos num lugar e já vamos para outro. Imagino que também seja assim com você. Durante a noite, as imagens se misturam na cabeça e não se pode controlá-las. Espreguicei-me na cadeira estofada, olhei ao redor e entendi: o culto ia começar. Procurei meu amigo de pés descalços entre eles. Seu Santo não estava lá. Reconheci várias pessoas, homens de gravata, mulheres em trajes sociais. Uau! Que viagem! Lembrei-me de onde tinha saído. Fiquei constrangida. O que diriam de mim, com uma roupa velha, descalça e com os pés sujos? Rapidamente, conferi minha aparência. Tudo sob controle: era a roupa certa, salto alto, cabelo escovado, unhas feitas, perfume importado. Ufa! Agora o louvor podia começar. Eu era parte daquele corpo. Sorri, pensando em Seu Santo. Como queria que estivesse ali para celebrar com tantos cristãos! É claro, teria de levá-lo antes à minha casa. Poderia tomar um banho, trocar as roupas e tal. Alguém começou a cantar. Afastei o homem de meus pensamentos. Queria adorar a Deus, erguer as mãos, bater palmas, cantar o amor do Pai! A música era estranha, não reconheci a melodia. Fiquei em silêncio enquanto cantaram de inimigos vencidos, provas passadas, pessoas no pódio mostrando sua vitória, outras embaixo, arrependidas e humilhadas. Tentei me concentrar nas crianças alegres na casa de Seu Santo. Não consegui. A música enchia minha mente. Fez-me pensar em quantas coisas me faltam. Olhei para cima, o teto branco, com luzes bonitas. Será que minha roupa era mesmo adequada? Ou devia ter vindo com outro vestido? Não estava amassada, afinal? Passei a mão no cabelo, colocando os fios no lugar. Olhei meus pés, orgulhosa. Estavam limpos. Assim é que deveria ser. “Oh Deus, quando mesmo vai chegar minha vez? Já está na hora do Senhor fazer de mim uma pessoa abençoada, próspera e bem sucedida. Afinal, te sirvo. As pessoas devem ver uma diferença em mim. Sou cristã, fiel, bem que o Senhor podia melhorar um pouquinho as coisas. Que tal?”. Terminei a oração quando os músicos pararam de tocar. Ao microfone, um homem cheio de ousadia, falou de como Deus é bom e o encheu de vitórias. Para os que ainda não chegaram lá, como eu, contou seu segredo: “Você precisa determinar, porque tudo o que você pedir, Deus vai ter que assinar embaixo!”. Longe, muito longe, alguém cantou “Foi na cruz, foi na cruz, onde um dia vi meu pecado…”. A mulher deitada na rede, lá na Amazônia, chamou-me para lá, quis contar-me de um Deus simples, das coisas do dia a dia, da sabedoria de olhar para a criação, sentar numa roda e dar graças, ser contente e satisfeito, crer na vida eterna, um céu cheio de paz, alegria… “Não, não!”, gritei, mandando a mulher embora. “Deus, por favor, olha pra mim! Você já abençoou todos eles. E eu? Você não é bom? Eu quero agora!!!”.

Acordei. Paralisada na cama, meu corpo suado, os olhos arregalados contemplando o teto. Onde estava? Tentei me acostumar com o ambiente. Identifiquei a porta de meu quarto, o guarda roupa, a janela no lugar de sempre. Que sonho estranho! Quase podia ouvir o homem da Amazônia cantando. Devia atribuir a este sonho algum significado? Senti cheiro de terra. Via as crianças no chão, sorrindo. Fiquei incomodada. Olhei no relógio. Quatro horas. As seis ia levantar para trabalhar. O sonho tirou minha paz. Oras, sou uma cristã de primeira linha! Vivo meus dias como Jesus os viveria. O que mais posso fazer? Vou à igreja todos os domingos. Oro e o Senhor me abençoa. Moro no país mais cristão do mundo! Por que deveria me preocupar? Respirei aliviada. Foi apenas um sonho. Virei-me na cama. Dormi. Um sono tranquilo, sem sonhos.

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Eliceli Bonan24 anos, é jornalista, missionária de JOCUM na base em Curitiba (PR). Gosta de ler, ver filmes, tocar instrumentos musicais…

  1. A simplicidade em servir a Deus se perdeu em meio a conquista de cargos e títulos dentro das igrejas. Ser pastor virou uma profissão e muito bem remunerada em alguns locais, diga-se de passagem. Até quando vamos olhar para Deus e “trocar” nossas ofertas e cultos por bençãos, muitas vezes materiais???
    Pois digo e repito que prefiro mil vezes a cia de pessoas como o “seo” Santo do que estar ao lado de hipócritas engravatados pregando um Deus que age por barganha. Ótima sensibilidade e descrição no texto Eliceli. Acredite que eu tbm pude sentir o cheiro da terra quando o lí. Deus a abençõe minha irmã.

    • Oi Jeanine,
      Obrigada pelo incentivo!
      Às vezes sinto que deixamos o Cristo dos evangelhos para servir a um “Sr. Gentilezas”, como escreve Bráulia Ribeiro, um Deus que é amado e valorizado na medida em que nos abençoa. Realmente, depois de conhecer esta pequena igreja no meio da mata, é um choque cultural entrar em algumas de nossas igrejas.
      Continue por aqui, acompanhando outras publicações. Abraços!!!

  2. Quantas verdades num mesmo texto! E quanta sutileza, leveza e talento para ministrar coisas tão profundas… Ah, Eliceli, nessa madrugada vc me ministrou! Obrigado, querida!

  3. a simplicidade da vida refletida a traveis do inconsciente para o mundo consciente e a real retribuição, o sofrimento de JESUS CRISTO na cruz e sua definição para nossa salvação, a criação perfeita de DEUS para nossa sobrevivencia tudo isso por amor ao seres humanos . os hinos são as respostas do oculto mundo revelado a vc ,.cada um, DEUS o trata de modo diferente, aceitar e confessar que JESUS CRISTO é o unico salvador das nossas vidas faz a diferença .um abraço e feliz ano novo 2013

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