Se houvesse ouvidos abertos para ouvir, Deus pegaria hoje o microfone e diria com voz bem pausada à Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo e aos seus teólogos, reformadores, missiólogos, missionários, avivalistas, estrategistas, historiadores, pastores-presidentes, apóstolos, patriarcas, bispos, arcebispos, cardeais e papas: “Há gente demais, dinheiro demais, pompa demais, estratégias demais, métodos demais, poder demais, força demais, valentia demais, patrocinadores demais, consultoria demais, tecnologia demais, televisão demais, internet demais, celular demais, espalhafato demais”.

Ao final de suas palavras, poucas pessoas diriam “amém”.

Deus não seria original. Porque ele já fizera esse mesmo discurso há mais de três milênios, quando Gideão reuniu 32 mil homens para obter vitória sobre os midianitas, os amalequitas e os povos do deserto. Eles eram tão numerosos “como os grãos de areia da praia do mar” e enchiam o vale “como uma nuvem de gafanhotos” (Jz 7.12). Deus interferiu e disse à pessoa livremente escolhida por ele para romper aquela barreira que oprimia o povo eleito: “Você tem gente demais, e por isso não posso deixar que vocês derrotem os midianitas” (Jz 7.2a).

Em seguida, o próprio Senhor fez dois cortes. No primeiro, retiraram-se 22 mil soldados assumidamente medrosos, quase 70% de todo o exército. No segundo corte, mais uma leva de 9.700 soldados voltaram para casa. Gideão ficou com apenas trezentos homens. Em resumo, aproximadamente 99,1% da tropa inicialmente convocada de 32 mil soldados foi dispensada. Não poderia haver algo mais estranho e mais ridículo, porém Gideão obteve a desejada vitória e a terra ficou em paz por quarenta anos (Jz 8.28). Ele e seus trezentos (0,9%) derrotaram 125 mil dos soldados dos exércitos inimigos (Jz 8.10).

A razão dessa providência absurda era para evitar que Israel pensasse e dissesse que o sucesso acontecera por sua própria mão, sem a ajuda de Deus. Gideão não precisava ir para o extremo oposto, negar a sua instrumentalidade, mas, ao mesmo tempo, deveria usar o raciocínio de Paulo: “Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação” (Fp 4.13).

Quando a igreja e sua liderança se exaltam, Deus volta a dizer: “Há gente demais, há poder demais, há dinheiro demais, há pompa demais…”. É preciso trazer à lembrança o que Jesus afirmou à liderança da igreja primitiva na reunião de despedida, realizada no Cenáculo de Jerusalém, de quinta para sexta-feira da Semana da Paixão: “Eu sou a videira, e vocês são os ramos. Quem está unido comigo e eu com ele, esse dá muito fruto porque “sem mim” vocês não podem fazer nada” (Jo 15.5).

Nós nascemos, crescemos, vivemos e trabalhamos no meio de uma cultura que valoriza tudo aquilo que projeta a pessoa e lhe dá segurança e poder. A lógica do mundo é uma e a lógica de Deus é outra. Na lógica de Deus o que conta não é o número ou a abundância de recursos, mas a sua presença, o seu poder, a sua sabedoria, a sua bênção. Trocar a lógica da modernidade pela lógica de Deus é tão difícil quanto nadar contra a correnteza e correr contra o vento. A intromissão da lógica humana está tão arraigada que são poucos os servos de Deus que conseguem enxergar, entender e abraçar sua lógica, sobretudo nos dias de hoje. Embora a tendência seja ridicularizar a história de Gideão, ela deve ser lida e relida no gabinete pastoral e em todas as assembleias de autoridades religiosas!

Publicado originalmente na edição 342 da revista Ultimato.

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