O incômodo da solidão
Ficar sozinho é bom e necessário — mas só de vez em quando, por um curto período de tempo e por razões bastante justas.
Deus não é o responsável pelo incômodo da solidão. São célebres as palavras proferidas por ele no início da história humana: “Não é bom que o homem fique sozinho. Farei alguém que o ajude e faça companhia a ele” (Gn 2.18).
Aí está a primeira providência para livrar o ser humano da insuportável solidão: a companhia permanente de uma pessoa ao seu lado. O ser humano do sexo masculino teria a companhia de um ser humano do sexo feminino e vice-versa. Embutidos dentro dessa providência, estavam outros companheiros da existência. O homem e a mulher unidos entre si dariam origem a outros seres humanos de ambos os sexos, formando, então, a menor e mais importante sociedade humana da história: a família. Com a companhia do esposo ou da esposa, dos filhos e dos pais, dos filhos dos filhos (netos) e dos avós, dos filhos dos filhos dos filhos (bisnetos) e dos bisavós, a solidão seria totalmente impossível. O apoio de que todo indivíduo reciprocamente precisa pode e deve ser achado primeiramente no seio de um lar saudável.
Por uma questão de prazer, convivência, segurança e proteção, famílias começam a agrupar-se e a formar povoados, aldeias, vilas, cidades e metrópoles. E a solidão vai se tornando cada vez mais difícil — a não ser que o relacionamento familiar e urbano se torne impossível, devido à natureza egocêntrica e soberba do homem.
Ao enviar os doze apóstolos e os setenta pregadores de dois em dois, de cidade em cidade, Jesus estaria dizendo como o Pai no jardim do Éden: “Não é bom que vocês sozinhos empreendam essa tarefa”. A norma continua a ser levada a sério na história da missão cristã. Nos primórdios da igreja, Pedro estava sempre com João (At 3.1, 11; 4.13, 19, 23); Barnabé, com Paulo e, depois, com João Marcos; Paulo, com Timóteo, Lucas e outros.
É possível que as equipes missionárias do século 1º conhecessem bem o trecho de Eclesiastes que diz:
“É melhor ter uma companhia que caminhar sozinho, para compartilhar o trabalho e dividir a riqueza [ou os escassos recursos das missões]. E, se um dos dois cair, o outro o ajudará, mas sem ninguém para ajudar, fica complicado! […] Sozinho, você está desprotegido. Mas, com um amigo, pode enfrentar o pior. A ajuda de um terceiro será ainda melhor: uma corda de três filamentos não se rompe com facilidade” (Ec 4.9-12, AM).
Ficar sozinho é bom e necessário — mas só de vez em quando, por um curto período de tempo e por razões bastante justas. A maior parte das vezes, Jesus estava sempre rodeado pelos apóstolos. Muito raramente, ele ficava sozinho (Mt 14.13, 23; 26.39).
O sentimento de solidão é um problema sério. Pode ser perigoso. A solidão nem sempre significa a ausência de alguma pessoa por perto, mas a ausência de alguma pessoa amiga, solidária, amável, compreensiva, sensível, simpática. A pessoa pode ter pai, mãe, esposo, filhos, tios, primos e netos e, ainda assim, experimentar a solidão. Pode ser membro de algum clube e de uma mega ou pequena igreja e se sentir sozinha. Pode estar rodeada de carros numa avenida movimentada, entrar no metrô abarrotado de gente e ir a um shopping center igualmente cheio e sentir-se esmagadoramente só. A solidão é uma situação muito mais emocional do que física. Ela nem sempre está do lado de fora do indivíduo, mas dentro dele. Ele se sente desesperadamente só — tanto no vácuo como na plenitude. Em alguns casos, trata-se de um transtorno mental que exige tratamento.
Por mais inacreditável que possa parecer para a sociedade secularizada de hoje, a fé e a comunhão com Deus protegem o crente da solidão, pois ele diz: “Tu, ó Senhor Deus, estás comigo; tu me proteges e me diriges” (Sl 23.4). Às vezes não há pessoa alguma ao redor, mas ele tem plena consciência da presença de Deus. Quando ele se acostuma com essa presença, a falta dela pode ocasionar desespero e esse desespero pode ocasionar suicídio. Foi o que aconteceu com o rei Saul quando, por causa dele, o Senhor o abandonou (1Sm 28.16)!
Texto originalmente publicado na edição 347 de Ultimato.
One thought on “O incômodo da solidão”