Opinião
- 30 de junho de 2023
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Inteligência Artificial e religião: apocalipse, messias e cliques
Assim como as IA’s não são produzidas e aplicadas sem interesses, elas não nos eximem de assumir e demandar responsabilidades
Por Eduardo A. Nunes
Por Eduardo A. Nunes
“É uma experiência viver com medo, certo? Isso é o que significa ser um escravo”.
(Roy Batty, in “Blade Runner”)
Diferentes inteligências foram desenvolvidas para infinitas possibilidades de problemas. A existência da vida, sua preservação, diversificação, reprodução e expansão são decorrentes de milhões de soluções criadas por múltiplas inteligências. Há inteligências em plantas, em animais, em microrganismos e, de maneira excepcional, em humanos. Vida e inteligência são inseparáveis.
As inteligências seriam pouco efetivas se não pudessem ser materializadas nem transmitidas. Um ninho, uma teia, uma colmeia, uma capa de proteínas ou um xaxim são exemplos de inteligências materializadas. Nossos antepassados, há 3 milhões de anos, já “empacotaram” inteligência, em formato de ferramentas que possibilitam ir além, escalar capacidades. Materializações humanas que geram capacidades sobre-humanas.
Nos animais, microrganismos e plantas, a inteligência é repassada principalmente pela herança genética – método efetivo, mas lento. O ser humano foi além. Além de resolver problemas e empacotar essas soluções em ferramentas, transmitimos e registramos conhecimentos, possibilitando às próximas gerações construir algo a partir do que já foi descoberto. Desde as cavernas, criamos “embalagens” da capacidade de resolver problemas (inteligência) em desenhos, cerâmicas, papiros, livros, quadros, esculturas. Isso só foi possível por causa do desenvolvimento da linguagem (nosso primeiro “protocolo IP”) e da fala (seu primeiro “wi-fi”).
No século 19, grande parte do trabalho humano/animal foi transferido para as máquinas, mas elas ainda eram pacotes estáticos de inteligência. Aí, gradativamente, desenvolvemos capacidade de comunicação (Inteligência em parâmetros, cálculos, i.e., computação) com as máquinas, e elas começaram a agir com autonomia, mesmo que parcial. Linguagem e ferramentas estavam fundidas.
Inteligência e automação
Assim, se há 150 mil anos, o “salto” da linguagem permitiu que a inteligência – desmaterializada – fosse transmitida entre seres humanos, a invenção da “linguagem de máquina” torna possível automatizar ferramentas. Esse caminho iniciado há séculos, chegou aos anos 1950, às primeiras expressões (hoje, primitivas) de Inteligências Artificiais (IA’s) – instruções codificadas que possibilitam captura de dados, análises e decisões, que podem mover máquinas (semi ou completamente autônomas) e processos.
Com o desenvolvimento da microeletrônica, dos processadores e da transmissão de dados, as IA"s expandiram sua presença em todas as ferramentas, a controlar processos de coleta de informações e a tomar decisões que afetam bilhões de pessoas todos os dias. Hoje, as IA’s movem máquinas e gerenciam processos, predizem comportamentos econômicos e climáticos, criam e traduzem conteúdos, controlam fluxos de comunicação; “decidem” sobre empréstimos, programas sociais, tratamentos médicos; determinam rotas logísticas, são pilotos (e copilotos) de meios de transporte, distribuem energia e água, vigiam presídios, plantam, monitoram culturas e controlam colheitas. A automação possibilitada pela IA já acabou com milhões de empregos e carreiras, mas criou novas funções e relações de trabalho.
A última invenção humana?
Com o avanço dos computadores, a IA invadiu nossos sonhos e pesadelos. Mais recentemente, a popularização de uma determinada IA generativa (LLM, por trás de um chatbot) ampliou esse debate. Por todo o mundo há reações, sejam eufóricas, sejam apavoradas. De um lado, a certeza do fim, o apocalipse da SKYNET (“O Exterminador do Futuro”), uma atualização do mito do “fantasma da máquina”, do Gólem, do Frankstein, o corpo sem espírito, da criatura que busca a destruição de seu criador. Do outro, na sua versão otimista, a esperança de que a Inteligência Artificial é o messias e nos salvará resolvendo de maneira indolor e rápida, todas as crises geradas pela nossa da “Estupidez Natural”. É a nossa bem-sucedida versão da Torre de Babel a nos levar aos céus e nos tornar “deuses”.
Nesse debate, o foco (do medo e da esperança) é menos o que já é e mais o que virá (ou viria), a chamada IA Geral, capaz de analisar qualquer problema, aprender ilimitadamente e evoluir, mudar seus parâmetros, independentemente. Mesmo sem saber quão perto estamos da IA Geral, essa possibilidade (ou inevitabilidade) gera um enorme debate sobre o seu eventual impacto. O professor israelense Yuval Harari diz que “a Inteligência Artificial Geral será a última criação humana”, já que, então, só as máquinas criarão. Harari e outros defendem moratórias tecnológicas, até que tenhamos mecanismos de controle e segurança.
Com ou sem IA Geral, crescem preocupações sobre o fim permanente de empregos e o aumento assombroso do poder de IA’s e de determinados setores e empresas que as produzem e controlam. Há demandas por regulações éticas, transparência de algoritmos, sistemas de governança, entre outras. Desafios enormes - transnacionais e imateriais - para os quais os sistemas políticos, jurídicos e multilaterais existentes não estão preparados. Mesmo os otimistas admitem que a evolução da IA vem junto com altos riscos.
IA já influencia expressões de fé
Não precisamos conjecturar para reconhecer que as IA’s existentes já nos afetam profundamente – por sua capacidade de automação, manejo de volumes de dados, predição e controle que não seriam possíveis para nenhum sistema manual. A IA já influencia as expressões de fé, como cultos e ensino. Através dos algoritmos “concierge”, usados por plataformas de redes sociais para indicar e direcionar provedores de conteúdo (igrejas, líderes, artistas), comportamentos, discursos e adesões já são formatados por IA’s. Elas capturam crentes (ou consumidores de conteúdo) em “bolhas” de likes e hates (quando não totalmente artificiais, produtos de ações híbridas) e assim reorientam discursos, estéticas e engajamentos. IA’s já selecionam versões (traduções) e formatam a forma de consulta de livros sagrados, privilegiando determinados cortes e traduções de texto, segundo mecanismos preditivos, para manter o leitor. A inteligência de máquina já orienta mensagens “evangelísticas” e “apologéticas”, determina demográficos (público-alvo), prevê e estimula contribuições, vincula temas a respostas emocionais e a comportamentos financeiros, avalia líderes religiosos, monitora e combina conteúdos consumidos (por exemplo, notícias e celebrações).
Como uma das genialidades do uso da IA é justamente não parecer uma IA, tendemos a achar que os comportamentos e produtos religiosos sejam formatados por pessoas, pregadores ou seus ouvintes, músicos ou seus fãs, e que as plataformas são apenas “mídias”. Porém, na Economia Digital, a plataforma é o conteúdo. O que chamávamos conteúdos (um sermão, uma música, uma “leitura”) são fluxos de dados, agendados pelas IA’s nas plataformas, de forma a maximizar engajamento e transações.
Efeito espelho e o rabo abanando o cão
Inteligências Artificiais não têm a capacidade humana (que particularmente, creio ser “hereditária” de Deus) de criar a partir do nada (ex nihilo). Assim, mesmo com sua aura futurista, IA’s precisam do passado (análise de dados) para “predizer” comportamentos e respostas. Assim, não há predição em si, mas aposta na repetição. Coletam-se dados porque nós nos moveríamos e reagiríamos obedecendo a “padrões”. Ao “prever” um padrão repetitivo, mesmo que complexo, as IA’s terminam por “educar” os usuários humanos a se comportarem como o “previsto” e assim serem recompensados. Em um efeito espelho, passamos a nos comportar previsivelmente porque a IA assim espera.
Nessa dinâmica do rabo abanando o cão, a “religiosidade IA” já demonstra menos criatividade – e até o risco, quando tomado, é orientado também pela IA, a “lacração”, que aumenta cliques. Provedores de conteúdo precisam seguir fórmulas que tentam agradar as IA’s, repetir-se, ajustar-se a seus padrões preditivos e assim serem recompensadas por aprovação, traduzidas em acessos, engajamentos e seus prêmios financeiros, políticos e sociais. Assim, IA’s tendem a limitar as transformações, mesmo quando estimulam as mudanças. Salomão, vendo a “Igreja orientada pela IA”, repetiria:
Nessa dinâmica do rabo abanando o cão, a “religiosidade IA” já demonstra menos criatividade – e até o risco, quando tomado, é orientado também pela IA, a “lacração”, que aumenta cliques. Provedores de conteúdo precisam seguir fórmulas que tentam agradar as IA’s, repetir-se, ajustar-se a seus padrões preditivos e assim serem recompensadas por aprovação, traduzidas em acessos, engajamentos e seus prêmios financeiros, políticos e sociais. Assim, IA’s tendem a limitar as transformações, mesmo quando estimulam as mudanças. Salomão, vendo a “Igreja orientada pela IA”, repetiria:
“O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”.
Na escala automatizada exponencial, isso permite inserir e retirar temas das pautas; vender ideias e estéticas casadas e customizadas. E, em um futuro bem próximo, IA’s permitirão ir além dessa aplicação “primária” de fórmulas de adesão. Será possível adaptar a audiências distintas, de maneira autônoma, um mesmo sermão, uma mesma canção. IA’s determinarão quão avivado, conservador ou progressista deve ser flexionado o produto para gerar engajamento. E isso não será restrito aos conteúdos transmitidos, ao “streaming religioso”. Será possível pré-ajustar conteúdos ao tipo de grupo presente em um evento presencial. Antes de começar a tocar uma música, poderá saber quantos na audiência já a conhecem e ou se gostam de outra canção. Ao começar um sermão, um pastor saberá que versão da Bíblia, ilustrações e piadas contar. Tudo para maximizar o engajamento dos presentes na igreja. O “vento do Espírito” da IA sempre sopra nos mesmos parâmetros. IA “odeia” o que não é previsível.
Mais importante do que esses usos “circenses”, como as IA’s são nutridas e se nutrem do reforço das “bolhas” (grupos com pensamentos/opções próximas), essas dinâmicas levarão ao aprofundamento de expressões religiosas artificialmente uniformes, adaptativas e controladas, o que possibilita ainda mais a manipulação da audiência. Além disso, IA’s aumentarão ainda mais a influência de poder econômico (IA’s não nascem em árvores, são construídas com base em enormes investimentos) nas expressões religiosas. Será um aprofundamento da expansão do “negócio” religioso massivo que tira espaço de manifestações coletivas, comunitárias e orgânicas.
Assim, as IA’s aumentam enormemente o potencial de maximização da integração dos “produtos” religiosos a outros produtos de consumo, inserindo ainda mais os conteúdos religiosos como potenciais de venda de serviços, produtos e ideias (políticas, inclusive). Isso leva a um espaço religioso cada vez mais facilmente capturado por lógicas estranhas à fé, e uma fé cada vez menos influente, menos contracultural.
Futuro inevitável?
Em resumo, as Inteligências Artificiais (IA’s) irão impactar crescentemente as igrejas pela alavancagem da predição, pela automação da customização, pela geração de conteúdo, pela integração mercadológica.
Antes que nos joguemos pela primeira janela de zoom que aparecer, é bom lembrar: todo processo de transformação gera instabilidades, volatilidades e, com elas, possibilidades de mudanças, de entradas de novos atores, de transformações não previstas. As IA’s e seus maquinários expõem grupos religiosos consolidados, hoje poderosos, ao risco de rapidamente se desestruturarem e serem substituídos. Infraestruturas religiosas montadas por décadas podem ser substituídas rapidamente por uma crescente competição. As bolhas atuais, exploradas em demasia, podem perder vigor pela própria autofagia. As IA’s ainda podem ajudar novos grupos religiosos a dar abrigo ao crescente e vertiginoso contingente de religiosidades não-afiliadas e fluidas, pouco capturadas nas atuais “bolhas” de consumo.
Messiânicos e apocalípticos compartilham um erro, uma falácia: o determinismo. O jogo está aberto. IA’s não serão o que tiverem que ser, serão o que se fizerem delas (pelo menos até uma IA Geral). A ideologia dominante da Era Digital é que você pode escolher entre 5 mil tons de fundo de tela, mas que não tem poder nenhum sobre o futuro, de que não há mais nada a se fazer, exceto tirar proveito ou lamentar. Mas a História, em seu feio e em seu belo, segue sendo produto do que fazemos. E para os que creem, um produto do que fazemos com o que Deus nos dá. Assim como as IA’s não são produzidas e aplicadas sem interesses, elas não nos eximem de assumir e demandar responsabilidades.
Um mundo religioso cada vez mais automatizado e fragmentado, baseado no consumo de conteúdos mais do que nas interações, traz desafios, gera novas perguntas e outras reflexões teológicas. A automação clama pela busca de novas maneiras de interações, orgânicas, singulares e autênticas: a inclusão não pela uniformidade, mas pelo imperativo de amor; a interação não pela concordância, mas pela ideia de diversidade.
A IA traz desafios concretos para o mundo, com temas como futuro do emprego e da democracia. Para as comunidades de fé, é essencial lembrar de nossas singularidades, nossas atipicidades, aquilo que não cabe no padrão. A fé é ruptura de lógicas, reinvenção de vínculos, imaginação profética. A IA e sua recombinação do já inventado não dará conta da irrepetível e singular busca de significado. Nenhum ChatGPT terá uma resposta definitiva e adequada para as perguntas essenciais da humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Quem é meu próximo?
Assim, se “campo missionário” e a “arena política” serão algorítmicos, as demandas transcendentes seguirão tão humanas quanto quando nossos antepassados cunharam as primeiras setas e registraram os resultados de sua caça turbinada nas paredes de cavernas. Afinal, sonhar e amar - os dois ingredientes básicos da fé - seguirão ímpares e fora do alcance de qualquer Inteligência Artificial.
“Eis que faço novas todas as coisas”. (Ap 21.5)
- Eduardo Nunes é economista, cientista social e teólogo. Trabalhou por 20 anos na Visão Mundial Brasil, de supervisor de projetos a diretor nacional. Há 12 anos exerce na World Vision International o cargo de Diretor Regional de Impacto para América Latina e Caribe. É professor na área de Econometria da Complexidade, no Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo). Fez Teologia (PB/IPI), Ciências Sociais (USP), Mestrado em Ciência Política (USP), Doutorado em Ciência Política (Harvard +USP) e Doutorado em Economia (NHH Norwegian School of Economics + USP).
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Ao todo, Jesus contou 38 parábolas. Mais de um terço delas trata de assuntos ligados a posses e riquezas. Há cerca de quinhentos versículos sobre oração na Bíblia. Sobre dinheiro e posses são mais de 2.300.
As Escrituras se ocupam desse assunto porque ele é crucial para a fé. Trata-se de onde colocamos nossos afetos e a quem seguimos. Jesus adverte: “Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração” (Mt 6.21).
Saiba mais:
» Live “A Inteligência Artificial e a Fé Cristã: qual o impacto?”, com Eduardo Nunes e Cineiva Tono. Dia 04 de julho, terça-feira, das 19h às 20h.
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