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- 13 de outubro de 2015
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“Vivemos num país sem muros”
O Portal Ultimato disponibiliza a seguir a entrevista com o procurador do Ministério Público Federal (MPF), Deltan Dallagnol, publicada na edição atual da revista Ultimato (setembro-outubro). Ele lidera uma força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, PR. Confira.
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O procurador do Ministério Público Federal (MPF), Deltan Dallagnol, 35 anos, com doutorado em Harvard e membro da Igreja Batista de Bacacheri, lidera uma força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, PR. Nos últimos meses, ele tem ganhado espaço nas mídias nacionais e ido a eventos de instituições -- inclusive, evangélicas -- para divulgar a campanha “10 Medidas contra a Corrupção”, que quer endurecer as leis contra a corrupção. Nesta entrevista, Deltan fala sobre a dimensão histórica da corrupção no Brasil, a desonestidade nas igrejas evangélicas e como a sua fé cristã o inspira a lutar por um país mais transparente e “sem muros”.
O Brasil vive uma crise ética ou somos mais corruptos hoje do que fomos no passado?
A corrupção não é um problema de hoje, nem apenas do Brasil. O livro bíblico de Miqueias, escrito há mais de quinhentos anos antes de Cristo, em seu capítulo 7, retrata a corrupção em uma sociedade extremamente religiosa, a judaica, onde regras éticas eram lei. Há diversos outros países do mundo em que a corrupção é endêmica. A isso soma-se que há, hoje, uma crise ética pós-moderna, numa sociedade em que você “é” na medida em que você “tem”, patrimonialista, e na qual há uma relativização de valores, o que, de modo combinado, pode estimular crimes de repercussão econômica como a corrupção. Isso tudo não é peculiaridade do Brasil. O que torna o Brasil um país com altos índices de corrupção é, em grande medida, a impunidade. Precisamos ter, para além de freios éticos, freios jurídicos, os quais infelizmente não existem em nosso país.
Em entrevista ao Estadão, o senhor disse que “a corrupção não é um problema de um partido ou de um governo. Ela é sistêmica”. Por que então a imprensa, a sociedade, o MPF ou a PF não apontaram tamanha corrupção nos governos anteriores?
De fato, a corrupção no Brasil é apartidária e vem de longa data. Padre Antônio Vieira, no Sermão do Bom Ladrão, dizia que os governantes portugueses vinham ao Brasil não para buscar o nosso bem, mas para buscar os nossos bens. A expressão “mar de lama” foi cunhada na era Vargas para criticar escândalos de corrupção, e essa expressão foi usada durante a ditadura e o período democrático para fazer referência aos diversos casos de corrupção nos governos federal, estadual e municipal. Como exemplos, temos situações envolvendo o político Ademar de Barros antes e durante a ditadura, primeiro político a ser conhecido como “quem rouba, mas faz”, o caso dos anões do orçamento no início da era democrática e o propinoduto no estado do Rio de Janeiro na virada do milênio.
Houve, contudo, especialmente nas duas últimas décadas, um processo de amadurecimento democrático de nossa legislação e de nossas instituições, para um controle e investigação mais efetivos do mau emprego de verbas públicas. Diversas leis estabeleceram instrumentos de investigação necessários, como a lei de interceptações telefônicas em 1996 e outras que permitiram e aperfeiçoaram a colaboração premiada. Foram criados crimes para melhor proteger a sociedade, como o de lavagem de dinheiro em 1998, aperfeiçoado em 2012, e o de organização criminosa em 2013. As famosas “operações” da Polícia Federal, que tiveram por objeto vários crimes além da corrupção, só surgiram na primeira década deste milênio. O Ministério Público também se fortaleceu mais e mais desde a Constituição de 1988, que o transformou em uma instituição forte de defesa da sociedade. Tudo isso conduziu a investigações com melhores resultados, mas a punição de réus do colarinho branco só existe, ainda, no papel. Ainda temos muito a caminhar para que as punições não só sejam adequadas, mas também sejam efetivamente aplicadas, bem como para termos instrumentos eficazes para recuperar o dinheiro público desviado.
Como sua formação cristã o ajudou a assumir as responsabilidades que tem assumido?
Decidi ingressar no Ministério Público por me identificar com os valores defendidos por essa instituição, que atua em serviço ao próximo. Dentre as suas funções estão a proteção de idosos, crianças e adolescentes, a tutela do meio ambiente, a defesa do consumidor, a fiscalização dos serviços essenciais, como os de saúde e educação, bem como a garantia do regime democrático e da ordem jurídica. Na área criminal, o Ministério Público busca efetivar a proteção que as leis penais criam para a vida, o patrimônio e o bem-estar individual e social, combatendo, por exemplo, a corrupção. Ingressei na carreira com o sonho de um país mais justo. O que descobri é que vivemos no país da impunidade dos colarinhos brancos, e isso me levou a buscar mudanças na legislação que são necessárias para alcançarmos um país melhor, preservando, ao mesmo tempo, os direitos das vítimas, da sociedade e dos réus. Embora os princípios e valores cristãos influenciem a visão de mundo do cristão e nos incentivem a buscar excelência no que fazemos, em amor à sociedade, minha atividade como procurador, evidentemente, é laica e guiada pela Constituição e pelas leis. Em outras palavras, o que eu faço é ditado pela lei, mas o grau de dedicação e anseio por excelência no serviço à sociedade, sem dúvidas, têm uma inspiração cristã.
O fato de ser cristão evangélico tem gerado alguma dificuldade adicional ao seu trabalho? Como lidar com as pressões e críticas que dizem respeito à sua fé?
Em geral, há um grande respeito, no Brasil, pela fé individual. Tive algumas dificuldades com má interpretação sobre uma abordagem que fiz passando pelas minhas convicções de fé, mas foram bem pontuais. Um desses episódios me ajudou a melhorar minha forma de comunicar. Tenho cuidado para que nenhuma colocação minha permita críticas sobre o trabalho da força-tarefa da Lava Jato, composta por onze colegas de diferentes fés, inclusive ateus. Para divulgar as dez medidas para a sociedade, tenho ido não só a entidades cristãs, mas também a diversos outros locais, como conselhos regionais de fiscalização profissional, universidades, congressos de médicos e farmacêuticos, encontros de empresários e Rotary e mesmo a reuniões de outras religiões.
Há algumas décadas, ser evangélico era sinônimo de honestidade. Hoje, há muita crítica sobre pastores e políticos evangélicos suspeitos de envolvimento com corrupção. A igreja evangélica também vive uma crise ética?
Infelizmente, a autenticidade da fé não tem selo de qualidade, não pode ser atestada por documento. Comportamentos éticos e cristãos podem ser fingidos. Nem sempre existe uma simetria entre a atitude externa e a atitude interior. A hipocrisia de líderes religiosos foi o principal alvo das críticas que Jesus fez, o que mostra que esse fenômeno não é novo. Infelizmente, pessoas com segundas intenções, para obter riqueza ou poder, podem usar um discurso cristão para manipular pessoas, inclusive cristãos autênticos. É natural que, com o crescimento da população evangélica, cresçam as tentativas de manipulação e, por uma questão de probabilidade, aumente o número de tentativas bem-sucedidas.
Que medidas o senhor acha que as igrejas evangélicas deveriam tomar para prevenir-se da corrupção ou da aparência de corrupção?
Creio que você se refere a dois problemas distintos. O primeiro é o da efetiva corrupção de líderes. Igrejas devem adotar práticas saudáveis, como aquelas que devem orientar governos e empresas, de transparência e controle. Dinheiro da igreja e do líder não devem se misturar. As contas e contratos das igrejas devem ser acessíveis aos membros da igreja, ainda que por meio de uma comissão eleita, e auditados, ainda que por amostragem. A riqueza do líder deve estar sujeita ao escrutínio dos membros ou dessa comissão, assim como minha Declaração de Imposto de Renda e as dos demais servidores públicos são enviadas anualmente para a administração. Há alguns anos, antes de decidir em quem votaria, analisei como cidadão a declaração de renda de um líder cristão do meu estado, a qual estava disponível a todos na página do tribunal eleitoral. Nessa análise, constatei a declaração de centenas de milhares de reais em espécie, o que é uma prática habitual de sonegadores e lavadores de dinheiro e não faz qualquer sentido para o cidadão honesto.
O segundo problema é o da aparência da corrupção. O mau comportamento de determinados líderes evangélicos pode afetar a imagem da denominação, o que pode se estender a outras igrejas. A adoção de práticas claras de transparência e auditoria, como aquelas indicadas, a publicidade do compromisso com essas práticas em sites, bem como o repúdio público de práticas criminosas comprovadas de determinados líderes cristãos podem contribuir com a construção de uma imagem positiva das igrejas.
Há algum exemplo ou ensino bíblico especial que pode nos ajudar na luta contra a corrupção?
O livro de Neemias, nesse ponto, é inspirador. Ele retrata a história da reconstrução dos muros de Jerusalém, os quais significavam a proteção da sociedade contra seus inimigos. Hoje, vivemos num país sem muros, sem barreiras jurídicas, contra a corrupção e a impunidade, as quais transitam livremente no meio de nós. Essa realidade foi mudada, em Neemias, após oração e ação. O povo se uniu e os muros foram reconstruídos. A questão que se coloca hoje à Igreja é: em que momento está a Igreja? Não tenho dúvidas de que a Igreja tem em seu coração um desejo de restauração e que já orou muito por um país mais justo. O que é necessário, agora, é dar um passo adiante, para adotar ações concretas que possam trazer mudanças sobre as estruturas de injustiça que criam um ambiente favorável à corrupção. Precisamos, como sociedade, construir muros.
A campanha do Ministério Público Federal “10 Medidas contra a Corrupção” quer alcançar 1,5 milhão de assinaturas para que a proposta seja votada no Congresso Nacional, nos moldes da Lei da Ficha Limpa. Do que trata a campanha e o que o faz acreditar que o MPF vai conseguir?
As “10 Medidas contra a Corrupção” constituem um conjunto de mudanças na lei que têm três objetivos centrais: evitar que a corrupção aconteça (prevenção); alcançar a punição adequada dos corruptos e a recuperação dos valores desviados; e dar um basta na impunidade, porque corrupção e impunidade caminham de mãos dadas. Essas medidas são explicadas em detalhes no site. Diversas igrejas e líderes cristãos apoiam as medidas. Para que elas se tornem realidade, como a Lei da Ficha Limpa, é necessário que sejam levadas ao Congresso Nacional com pelo menos 1,5 milhão de assinaturas.
Tenho consciência de que é impossível que o Ministério Público, sozinho, faça isso. É algo que só dará certo se a sociedade agir, como tem agido. Vivemos uma janela de oportunidade para mudanças, porque nossa população nunca esteve tão sensível ao problema da corrupção e aos males que causa. Por isso, centenas de entidades por todo o país assumiram essa campanha, que não é mais algo apenas do Ministério Público, mas do povo brasileiro. Ao levar isso ao Congresso, o que a sociedade fará é se assumir como autora de sua história. Será uma declaração pública de inconformismo e de desejo de mudanças concretas que possam nos trazer um país mais justo, com menos corrupção e menos impunidade.
O senhor é muito jovem (35 anos). Como os jovens -- especificamente os cristãos -- podem se envolver na luta contra a corrupção?
Obrigado pelo “jovem” (risadas). Todos podemos orar por um país melhor. Quando o assunto é o cuidado com órfãos e idosos necessitados, contudo, nós não apenas oramos por eles. Nós também contribuímos financeiramente com casas lares e de repouso, e muitas igrejas instalaram e mantêm essas casas. Quando o assunto é corrupção, orar é importante, mas precisamos agir. Jovens podem contribuir de diversas maneiras, por exemplo, participando de observatórios sociais e ONGs que controlam contas públicas, como a Transparência Internacional e a Contas Abertas. Hoje, jovens podem dar uma contribuição muito especial, divulgando a campanha “10 Medidas contra a Corrupção” em redes sociais e colhendo assinaturas em suas escolas ou universidades, ambientes de trabalho e em locais com grande aglomeração de pessoas, como calçadões, eventos e jogos de futebol.
Alguns já o chamaram de “herói nacional”. O senhor se considera um herói?
Não podemos perder a visão de contexto, de que somos apenas parte de uma engrenagem. Além disso, toda visibilidade é passageira, é como o vento. Hoje está aqui, amanhã, ali. O importante é buscarmos converter a visibilidade temporária que o caso traz em algo positivo, perene, em favor da sociedade. Todos nós temos um poder para promover essa mudança, e com esse poder vem uma responsabilidade. Assim como aqueles que trabalham na Lava Jato e outros especialistas nas matérias tinham uma possibilidade de contribuir com o desenho de medidas contra a corrupção a partir de sua experiência, o líder e o jovem cristão podem, hoje, dar uma contribuição fundamental para que essas medidas sejam aprovadas.
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Corrupção: do Éden ao jeitinho brasileiro
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O procurador do Ministério Público Federal (MPF), Deltan Dallagnol, 35 anos, com doutorado em Harvard e membro da Igreja Batista de Bacacheri, lidera uma força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, PR. Nos últimos meses, ele tem ganhado espaço nas mídias nacionais e ido a eventos de instituições -- inclusive, evangélicas -- para divulgar a campanha “10 Medidas contra a Corrupção”, que quer endurecer as leis contra a corrupção. Nesta entrevista, Deltan fala sobre a dimensão histórica da corrupção no Brasil, a desonestidade nas igrejas evangélicas e como a sua fé cristã o inspira a lutar por um país mais transparente e “sem muros”.
O Brasil vive uma crise ética ou somos mais corruptos hoje do que fomos no passado?
A corrupção não é um problema de hoje, nem apenas do Brasil. O livro bíblico de Miqueias, escrito há mais de quinhentos anos antes de Cristo, em seu capítulo 7, retrata a corrupção em uma sociedade extremamente religiosa, a judaica, onde regras éticas eram lei. Há diversos outros países do mundo em que a corrupção é endêmica. A isso soma-se que há, hoje, uma crise ética pós-moderna, numa sociedade em que você “é” na medida em que você “tem”, patrimonialista, e na qual há uma relativização de valores, o que, de modo combinado, pode estimular crimes de repercussão econômica como a corrupção. Isso tudo não é peculiaridade do Brasil. O que torna o Brasil um país com altos índices de corrupção é, em grande medida, a impunidade. Precisamos ter, para além de freios éticos, freios jurídicos, os quais infelizmente não existem em nosso país.
Em entrevista ao Estadão, o senhor disse que “a corrupção não é um problema de um partido ou de um governo. Ela é sistêmica”. Por que então a imprensa, a sociedade, o MPF ou a PF não apontaram tamanha corrupção nos governos anteriores?
De fato, a corrupção no Brasil é apartidária e vem de longa data. Padre Antônio Vieira, no Sermão do Bom Ladrão, dizia que os governantes portugueses vinham ao Brasil não para buscar o nosso bem, mas para buscar os nossos bens. A expressão “mar de lama” foi cunhada na era Vargas para criticar escândalos de corrupção, e essa expressão foi usada durante a ditadura e o período democrático para fazer referência aos diversos casos de corrupção nos governos federal, estadual e municipal. Como exemplos, temos situações envolvendo o político Ademar de Barros antes e durante a ditadura, primeiro político a ser conhecido como “quem rouba, mas faz”, o caso dos anões do orçamento no início da era democrática e o propinoduto no estado do Rio de Janeiro na virada do milênio.
Houve, contudo, especialmente nas duas últimas décadas, um processo de amadurecimento democrático de nossa legislação e de nossas instituições, para um controle e investigação mais efetivos do mau emprego de verbas públicas. Diversas leis estabeleceram instrumentos de investigação necessários, como a lei de interceptações telefônicas em 1996 e outras que permitiram e aperfeiçoaram a colaboração premiada. Foram criados crimes para melhor proteger a sociedade, como o de lavagem de dinheiro em 1998, aperfeiçoado em 2012, e o de organização criminosa em 2013. As famosas “operações” da Polícia Federal, que tiveram por objeto vários crimes além da corrupção, só surgiram na primeira década deste milênio. O Ministério Público também se fortaleceu mais e mais desde a Constituição de 1988, que o transformou em uma instituição forte de defesa da sociedade. Tudo isso conduziu a investigações com melhores resultados, mas a punição de réus do colarinho branco só existe, ainda, no papel. Ainda temos muito a caminhar para que as punições não só sejam adequadas, mas também sejam efetivamente aplicadas, bem como para termos instrumentos eficazes para recuperar o dinheiro público desviado.
Como sua formação cristã o ajudou a assumir as responsabilidades que tem assumido?
Decidi ingressar no Ministério Público por me identificar com os valores defendidos por essa instituição, que atua em serviço ao próximo. Dentre as suas funções estão a proteção de idosos, crianças e adolescentes, a tutela do meio ambiente, a defesa do consumidor, a fiscalização dos serviços essenciais, como os de saúde e educação, bem como a garantia do regime democrático e da ordem jurídica. Na área criminal, o Ministério Público busca efetivar a proteção que as leis penais criam para a vida, o patrimônio e o bem-estar individual e social, combatendo, por exemplo, a corrupção. Ingressei na carreira com o sonho de um país mais justo. O que descobri é que vivemos no país da impunidade dos colarinhos brancos, e isso me levou a buscar mudanças na legislação que são necessárias para alcançarmos um país melhor, preservando, ao mesmo tempo, os direitos das vítimas, da sociedade e dos réus. Embora os princípios e valores cristãos influenciem a visão de mundo do cristão e nos incentivem a buscar excelência no que fazemos, em amor à sociedade, minha atividade como procurador, evidentemente, é laica e guiada pela Constituição e pelas leis. Em outras palavras, o que eu faço é ditado pela lei, mas o grau de dedicação e anseio por excelência no serviço à sociedade, sem dúvidas, têm uma inspiração cristã.
O fato de ser cristão evangélico tem gerado alguma dificuldade adicional ao seu trabalho? Como lidar com as pressões e críticas que dizem respeito à sua fé?
Em geral, há um grande respeito, no Brasil, pela fé individual. Tive algumas dificuldades com má interpretação sobre uma abordagem que fiz passando pelas minhas convicções de fé, mas foram bem pontuais. Um desses episódios me ajudou a melhorar minha forma de comunicar. Tenho cuidado para que nenhuma colocação minha permita críticas sobre o trabalho da força-tarefa da Lava Jato, composta por onze colegas de diferentes fés, inclusive ateus. Para divulgar as dez medidas para a sociedade, tenho ido não só a entidades cristãs, mas também a diversos outros locais, como conselhos regionais de fiscalização profissional, universidades, congressos de médicos e farmacêuticos, encontros de empresários e Rotary e mesmo a reuniões de outras religiões.
Há algumas décadas, ser evangélico era sinônimo de honestidade. Hoje, há muita crítica sobre pastores e políticos evangélicos suspeitos de envolvimento com corrupção. A igreja evangélica também vive uma crise ética?
Infelizmente, a autenticidade da fé não tem selo de qualidade, não pode ser atestada por documento. Comportamentos éticos e cristãos podem ser fingidos. Nem sempre existe uma simetria entre a atitude externa e a atitude interior. A hipocrisia de líderes religiosos foi o principal alvo das críticas que Jesus fez, o que mostra que esse fenômeno não é novo. Infelizmente, pessoas com segundas intenções, para obter riqueza ou poder, podem usar um discurso cristão para manipular pessoas, inclusive cristãos autênticos. É natural que, com o crescimento da população evangélica, cresçam as tentativas de manipulação e, por uma questão de probabilidade, aumente o número de tentativas bem-sucedidas.
Que medidas o senhor acha que as igrejas evangélicas deveriam tomar para prevenir-se da corrupção ou da aparência de corrupção?
Creio que você se refere a dois problemas distintos. O primeiro é o da efetiva corrupção de líderes. Igrejas devem adotar práticas saudáveis, como aquelas que devem orientar governos e empresas, de transparência e controle. Dinheiro da igreja e do líder não devem se misturar. As contas e contratos das igrejas devem ser acessíveis aos membros da igreja, ainda que por meio de uma comissão eleita, e auditados, ainda que por amostragem. A riqueza do líder deve estar sujeita ao escrutínio dos membros ou dessa comissão, assim como minha Declaração de Imposto de Renda e as dos demais servidores públicos são enviadas anualmente para a administração. Há alguns anos, antes de decidir em quem votaria, analisei como cidadão a declaração de renda de um líder cristão do meu estado, a qual estava disponível a todos na página do tribunal eleitoral. Nessa análise, constatei a declaração de centenas de milhares de reais em espécie, o que é uma prática habitual de sonegadores e lavadores de dinheiro e não faz qualquer sentido para o cidadão honesto.
O segundo problema é o da aparência da corrupção. O mau comportamento de determinados líderes evangélicos pode afetar a imagem da denominação, o que pode se estender a outras igrejas. A adoção de práticas claras de transparência e auditoria, como aquelas indicadas, a publicidade do compromisso com essas práticas em sites, bem como o repúdio público de práticas criminosas comprovadas de determinados líderes cristãos podem contribuir com a construção de uma imagem positiva das igrejas.
Há algum exemplo ou ensino bíblico especial que pode nos ajudar na luta contra a corrupção?
O livro de Neemias, nesse ponto, é inspirador. Ele retrata a história da reconstrução dos muros de Jerusalém, os quais significavam a proteção da sociedade contra seus inimigos. Hoje, vivemos num país sem muros, sem barreiras jurídicas, contra a corrupção e a impunidade, as quais transitam livremente no meio de nós. Essa realidade foi mudada, em Neemias, após oração e ação. O povo se uniu e os muros foram reconstruídos. A questão que se coloca hoje à Igreja é: em que momento está a Igreja? Não tenho dúvidas de que a Igreja tem em seu coração um desejo de restauração e que já orou muito por um país mais justo. O que é necessário, agora, é dar um passo adiante, para adotar ações concretas que possam trazer mudanças sobre as estruturas de injustiça que criam um ambiente favorável à corrupção. Precisamos, como sociedade, construir muros.
A campanha do Ministério Público Federal “10 Medidas contra a Corrupção” quer alcançar 1,5 milhão de assinaturas para que a proposta seja votada no Congresso Nacional, nos moldes da Lei da Ficha Limpa. Do que trata a campanha e o que o faz acreditar que o MPF vai conseguir?
As “10 Medidas contra a Corrupção” constituem um conjunto de mudanças na lei que têm três objetivos centrais: evitar que a corrupção aconteça (prevenção); alcançar a punição adequada dos corruptos e a recuperação dos valores desviados; e dar um basta na impunidade, porque corrupção e impunidade caminham de mãos dadas. Essas medidas são explicadas em detalhes no site. Diversas igrejas e líderes cristãos apoiam as medidas. Para que elas se tornem realidade, como a Lei da Ficha Limpa, é necessário que sejam levadas ao Congresso Nacional com pelo menos 1,5 milhão de assinaturas.
Tenho consciência de que é impossível que o Ministério Público, sozinho, faça isso. É algo que só dará certo se a sociedade agir, como tem agido. Vivemos uma janela de oportunidade para mudanças, porque nossa população nunca esteve tão sensível ao problema da corrupção e aos males que causa. Por isso, centenas de entidades por todo o país assumiram essa campanha, que não é mais algo apenas do Ministério Público, mas do povo brasileiro. Ao levar isso ao Congresso, o que a sociedade fará é se assumir como autora de sua história. Será uma declaração pública de inconformismo e de desejo de mudanças concretas que possam nos trazer um país mais justo, com menos corrupção e menos impunidade.
O senhor é muito jovem (35 anos). Como os jovens -- especificamente os cristãos -- podem se envolver na luta contra a corrupção?
Obrigado pelo “jovem” (risadas). Todos podemos orar por um país melhor. Quando o assunto é o cuidado com órfãos e idosos necessitados, contudo, nós não apenas oramos por eles. Nós também contribuímos financeiramente com casas lares e de repouso, e muitas igrejas instalaram e mantêm essas casas. Quando o assunto é corrupção, orar é importante, mas precisamos agir. Jovens podem contribuir de diversas maneiras, por exemplo, participando de observatórios sociais e ONGs que controlam contas públicas, como a Transparência Internacional e a Contas Abertas. Hoje, jovens podem dar uma contribuição muito especial, divulgando a campanha “10 Medidas contra a Corrupção” em redes sociais e colhendo assinaturas em suas escolas ou universidades, ambientes de trabalho e em locais com grande aglomeração de pessoas, como calçadões, eventos e jogos de futebol.
Alguns já o chamaram de “herói nacional”. O senhor se considera um herói?
Não podemos perder a visão de contexto, de que somos apenas parte de uma engrenagem. Além disso, toda visibilidade é passageira, é como o vento. Hoje está aqui, amanhã, ali. O importante é buscarmos converter a visibilidade temporária que o caso traz em algo positivo, perene, em favor da sociedade. Todos nós temos um poder para promover essa mudança, e com esse poder vem uma responsabilidade. Assim como aqueles que trabalham na Lava Jato e outros especialistas nas matérias tinham uma possibilidade de contribuir com o desenho de medidas contra a corrupção a partir de sua experiência, o líder e o jovem cristão podem, hoje, dar uma contribuição fundamental para que essas medidas sejam aprovadas.
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