Opinião
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Trauma e resiliência
Por Claudia Moreira e Paulo Moreira Filho
“Você está com medo de morrer?” Acostumado a perguntas difíceis em situações dramáticas, desta vez Júlio guardou silêncio. Sandra percebeu que sua pergunta no auge da pandemia, revelou algo inesperado sobre o marido, um pastor e pregador experiente: Júlio estava mesmo com medo de morrer! Poucas semanas antes ele presenciara o sepultamento de seu irmão João em caixão lacrado, após 10 dias de guerra contra o coronavírus, isolado numa UTI.
Trauma significa ferida e a de Júlio foi uma ferida profunda causada por um evento muito doloroso, a morte do irmão, que ocorreu no contexto extraordinariamente ameaçador de uma pandemia global ceifando vidas de forma exponencial. O trauma, quando ocorre, não sinaliza fraqueza ou falta de fé. Pode ser causado por um evento único, ou contínuo e cumulativo, como o que experimentamos agora. Júlio congelou e esta é uma proteção do corpo quando encara um ou uma série de eventos percebidos como perigosos. O trauma pode ser individual e coletivo, primário ou secundário. Hoje vivemos uma mistura de todas estas formas.
Com o número de mortos nas centenas de milhares e a média móvel com recordes diários, brasileiras e brasileiros vêm chorando há mais de um ano. Perplexidade, medo, incerteza, insegurança, esgotamento e indiferença se instalaram na alma do povo. Em seu livro O Corpo Guarda as Marcas, Van der Kolk afirma que um efeito devastador do trauma é “danificar nosso reflexo de propósito”, isto é, nosso senso de propósito na vida. Entre nós, o desalento atingiu proporções nacionais.
“De tanto gemer, não consigo comer; meus gritos de dor se derramam como água. O que sempre temia veio sobre mim, o que tanto receava me aconteceu. Não tenho paz, nem sossego; não tenho descanso, só aflição” (Jó 3.24-26 NVT).
O trauma é uma experiência complexa que afeta a pessoa total (corpo, mente e espírito) e todos os níveis das relações humanas. A experiência do trauma não compromete apenas indivíduos, mas também comunidades e nações. O Brasil encontra-se ferido, enlutado e traumatizado. Quando não se expressa, não é ouvido e não recebe cuidado, o trauma pode tornar-se uma rachadura nos alicerces de uma vida, comunidade ou nação. Ignorá-lo e esperar que desapareça é perigoso, pois ele pode ressurgir na forma de comportamentos destrutivos contra nós mesmos e outras pessoas. “A dor que não é transformada é transferida” (Richard Rohr).
Quem trabalha em contextos traumagênicos e convive com histórias reais de morte, sofrimento e violência está vulnerável à fadiga da compaixão. Negligenciar suas próprias necessidades e limites poderá trazer consequências ruins para si, sua família, sua equipe e até quem está sendo cuidado. Minha compaixão pelos outros precisa também alcançar-me.
A boa notícia é que o trauma pode ser curado e Deus nos deu capacidade de desenvolver resiliência. Donna Minter define resiliência como “a capacidade de permanecer flexíveis em nossos pensamentos, sentimentos e atitudes quando enfrentamos um distúrbio sério na vida ou suportamos uma pressão prolongada, de modo a sair da dificuldade mais fortes, maduros e capacitados”.
Curar-se do trauma é mais que recuperar a energia necessária para desempenhar as tarefas diárias. Ser resiliente não é ser apenas capaz de sobreviver. No coração da cura e do aumento de resiliência estão a retomada do senso de propósito, o sentimento de pertencer, a sensação de segurança e a renovação da esperança. Atender ou não estas necessidades afetará diretamente a possibilidade da cura individual e coletiva do trauma, com impacto nas futuras gerações.
O Novo Testamento e a história demonstram que a igreja foi posicionada no mundo e equipada por Deus para viver em cenários de trauma e desesperança. Pedro reavivou esta visão por carta aos cristãos passando por aflições e perigos espalhados pelo império romano: “Deus, em toda a sua graça, os chamou para participarem de sua glória eterna por meio de Cristo Jesus. Assim, depois que tiverem sofrido por um pouco de tempo, ele os restaurará, os sustentará e os fortalecerá, e os colocará sobre um firme alicerce. A ele seja o poder para sempre! Amém” (1Pe 5.10 NVT).
No cenário atual de pandemia e morte, a igreja deve reconhecer-se e servir como espaço de acolhimento e esperança. O amor e a amizade genuína são poderosos medicamentos para a alma. No contexto de relacionamentos seguros na comunidade de fé, pessoas traumatizadas poderão encontrar o caminho da cura e da resiliência.
• Claudia e Paulo Moreira são casados há dezesseis anos e possuem formação em Estratégias para a Consciência do Trauma e da Resiliência (STAR), pelo Centro de Justiça e Paz da Eastern Mennonite Universtity. Cláudia é diretora nacional da Tearfund no Brasil e Paulo é missionário e presidente do Conselho de Governança da Sepal – Servindo aos Pastores e Líderes.
>> Confira a edição de maio/junho da revista Ultimato: Ainda que a figueira não floresça - desalento e esperança na pandemia
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