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Opinião

Trabalho, emprego e renda: princípios bíblicos para um mundo em transformação

Por Joel Forster | Entrevista com Jonathan Tame
 
A última década viu um agravamento das condições de trabalho que afetam os “relacionamentos familiares”, diz Jonathan Tame, diretor do Jubilee Centre (Cambridge, Reino Unido), uma organização cristã de reforma social que oferece uma perspectiva bíblica sobre questões e tendências contemporâneas da sociedade. O futuro próximo provavelmente será moldado pela "economia freelancer” (“gig economy”, em inglês) e pelo reequilíbrio do capitalismo global. Que princípios norteadores a Bíblia nos apresenta como luzeiros que podem nos guiar nesses novos tempos? 
 
1) Olhando para a evolução da economia na última década, o que mudou na maneira como as pessoas vivem agora na Europa?
 
De muitas maneiras, acho que terminamos onde estávamos há cerca de 12 anos. Na semana passada, aqui na Grã-Bretanha, a renda real das pessoas retornou ao nível de 2008, antes da crise econômica. No final da década, também voltamos a níveis muito elevados de dívida... 
 
Mas vimos que os empregos se tornaram muito mais precários, a produtividade e os salários ficaram estagnados. Obviamente, houve uma crise no euro por volta de 2012-13, que elevou o desemprego, e a recuperação tem sido bastante desigual desde então. 
 
2) Você mencionou os empregos precários e os baixos salários. Um exemplo disso é um filme muito elogiado no Reino Unido, intitulado “Sorry We Missed You” (Você não estava aqui), uma história sobre um homem que começa a trabalhar como entregador em um dos novos negócios como Amazon, Uber ... Que “maldições” surgem com esses novos tipos de trabalhos vinculados aos "aplicativos" de telefone celular e às novas “necessidades” dos clientes de ter tudo o mais rápido e barato possível?
 
Sim, foi muito interessante na última década que a combinação das novas tecnologias desenvolvidas, especialmente aplicativos para smartphones, e o alto desemprego no início da década após a crise financeira, criaram as condições perfeitas para o surgimento do que chamamos de “economia freelancer, ou ‘sob demanda’” (“gig economy”, em inglês).
 
Essa forma de capitalismo, se você preferir, se desenvolveu onde temos um individualismo cultural e uma economia de mercado; mas a escolha e a liberdade do consumidor estão se tornando a coisa mais importante de todas. Portanto, nós compramos 24 horas por dia, 7 dias por semana e, de alguma forma, aceitamos a “maldição” dos “contratos de zero hora”. E as pessoas que oferecem esse serviço são pessoas que realmente não vemos, que são meio invisíveis e anônimas. Eles estão trabalhando em horários muito antissociais, e geralmente não são avisadas com muita antecedência, apenas um ou dois dias antes de saberem quando devem trabalhar. Isso faz com que o trabalhador dessa “economia freelancer”... Bem, é um novo tipo de opressão, para ser honesto.
 
A perda de direitos, a perda de liberdade, especialmente para as relações familiares que aparecem no filme, é um preço muito alto a pagar por esse novo tipo de consumismo - a nova maneira de comprar e vender. Então, sim, é algo para o qual devemos olhar muito criticamente.
 
3) Durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (janeiro de 2020), houve muita discussão sobre a reforma do capitalismo para que ele sirva melhor às pessoas. Seu trabalho no Jubilee Center tem muito a ver com a reflexão sobre como nossa economia, nosso local de trabalho e nossos negócios podem ser mais "relacionais". Até que ponto nosso atual sistema econômico global pode alcançar esse objetivo?
 
Para torná-lo mais relacional, acho que precisamos fazer algumas perguntas difíceis ao capitalismo. O capitalismo significa coisas diferentes para pessoas diferentes, e não estou falando da ideia de economia empresarial, liberdade para iniciar negócios e comércio. Mas, antes, temos que pensar por que o capitalismo é chamado assim? Isso ocorre porque os proprietários do capital estão sentados no topo da pirâmide, e todo o sistema capitalista é voltado para fornecer retornos financeiros aos proprietários do capital. E esse sistema está perdendo sua legitimidade, e as pessoas estão colocando isso em questão agora. Mesmo as pessoas nos níveis mais altos deste sistema estão realmente começando a dizer: “isso ainda é adequado para nosso propósito?”...
 
Parte do que precisamos fazer é refletir sobre tudo isso, e a Bíblia nos fornece alguns bons conceitos e suportes para isso. Colocar as pessoas em primeiro lugar, e particularmente, os relacionamentos. Uma maneira pela qual podemos pensar sobre isso é conversar mais sobre a ideia de uma "economia de partes interessadas". No final, toda empresa organizacional possui um conjunto de partes interessadas, pessoas diferentes envolvidas na produção de um bem ou serviço... E as pessoas nos negócios, as pessoas que fornecem o capital, são apenas uma das partes interessadas... 
 
Há também algumas mudanças políticas radicais e de longo alcance que poderiam ser adotadas para mudar drasticamente o sistema. Uma delas é remover a preferência fiscal por dívidas. Porque a maioria dos sistemas tributários dá preferência à dívida, pois eles pagam juros com despesas dedutíveis, e dessa forma incorporamos ao sistema essa tendência de prosseguir endividado. Se tirássemos essa vantagem, que é uma simples decisão política, ela teria que ser seguida de maneira geral.
 
4) Muitos de nós, que não somos especialistas em economia, não compreendemos completamente quais são as consequências da dívida para a vida normal das famílias. Você poderia explicar isso brevemente para nós?
 
O fato é que passamos a ver a dívida como uma conveniência, e o pagamento de juros simplesmente como o preço dessa conveniência. Mas a Bíblia usa uma linguagem muito diferente sobre isso. Diz que a dívida é realmente uma forma de escravização; o mutuário é escravo do credor. E fala sobre os juros como um meio de opressão.
 
E isso é verdade, pois muitas vezes as taxas de juros mais altas são pagas pelas pessoas mais pobres, aquelas que têm menos a oferecer como garantia pelos seus empréstimos.
 
Existem várias razões pelas quais a dívida é tão prejudicial e perigosa. A maioria das pessoas pede dinheiro emprestado, assumindo que tudo correrá bem no futuro e que será capaz de pagar a dívida, independentemente dos juros acordados... mas a vida não é assim. 
 
A vida é cheia de altos e baixos: acidentes acontecem, as pessoas podem perder um emprego inesperadamente e, de repente, você não consegue mais fazer os mesmos pagamentos. Portanto, a dívida o torna muito vulnerável e, como a maioria das dívidas agora é muito anônima, você não pode ir para a pessoa a quem deve o dinheiro, porque não existe uma pessoa. Existe apenas uma instituição sem nome e sem rosto, então você não pode dizer: “Oh, estou tendo um momento difícil, posso adiar o pagamento por um ou dois meses”...
 
Mas a dívida é muito perigosa, especialmente a dívida de longo prazo. No nível governamental é ainda mais perigoso, porque grande parte da dívida é acumulada de ano para ano. E estamos empurrando os encargos de reembolso para as gerações futuras. Então, estamos gastando a renda e a riqueza de nossos filhos e netos, o que é uma profunda injustiça.
 
5) Pensando na economia global: a China parece ter se tornado um dragão gigante, à medida que as potências econômicas tradicionais perdem força. Como o equilíbrio do poder econômico mudará nesta nova década?
 
Essa é a pergunta pela qual os analistas econômicos recebem grandes quantias de dinheiro para tentar responder. Houve algumas previsões no início desta década e nas últimas semanas. Certamente, vimos a ascensão da China e da Índia, e suas taxas de crescimento continuarão muito mais altas do que na Europa e no mundo ocidental. Haverá um reequilíbrio constante da economia mundial relativamente à Ásia...  
 
Há também as guerras comerciais, que eram um pouco desconhecidas até a eleição de Trump como presidente dos EUA, pois havia um grande compromisso em tentar manter o comércio fluindo e livre. A ascensão do populismo nos últimos anos poderia apontar para o surgimento de outras restrições ao comércio global, que também poderiam afetar o equilíbrio de poder de diferentes maneiras.
 
Mas também estamos vendo agora o Coronavírus escancarando a vulnerabilidade de nossos sistemas econômicos altamente globalizados. Nesse exato momento vemos uma desaceleração da economia chinesa. Muitas fábricas foram fechadas por lá e isso oferece oportunidades de curto prazo para os produtores europeus... E não podemos esquecer a ascensão da África, o único continente que continua a crescer rapidamente em termos populacionais - e eles também estão crescendo em riqueza. Eu acho que a influência da África será vista no final desta década.
 
6) Encontramos na Bíblia muitos ensinamentos sobre o dinheiro e sobre como usá-lo. Que princípios e valores bíblicos podem ser úteis para a nossa situação atual?
 
Penso em três grandes princípios aqui. Um é a mordomia, que nos leva a refletir continuamente sobre como devemos cuidar de tudo o que Deus nos deu. Ser grato pelo que temos, sendo capazes de cuidar bem de tudo. Isso leva ao segundo princípio, que é a generosidade. Devemos ser encorajados a dar. Sempre há pessoas em situação pior do que nós. Doar nos ajuda a garantir que o dinheiro seja nosso servo, não nosso mestre.
 
E terceiro, o princípio da justiça, com o qual a maioria das pessoas se identificará, ainda que não sejam cristãos. Isso diz respeito a como o dinheiro e a riqueza são distribuídos. Equidade, e garantia de que as pessoas não sejam exploradas ou oprimidas. A despeito de nossa consciência da justiça, o fato de que ainda queremos comprar as coisas o mais barato possível significa que há pressões na cadeia de suprimentos na qual estamos participando, se não fizermos algumas perguntas difíceis sobre as pessoas que estão produzindo as coisas que compramos. Portanto, mordomia, generosidade e justiça são três grandes princípios bíblicos sobre os quais podemos conversar e compartilhar com outras pessoas.

Publicado originalmente no site Evangelical Focus, no dia 06/03/2020. Reproduzido com permissão.

Traduzido por Reinaldo Percinoto Jr.

 

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