Opinião
- 08 de julho de 2015
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Selma: uma luta pela igualdade
Selma – uma luta pela igualdade, da diretora Ava DuVernay (você já reparou como há pouquíssimas diretoras de cinema?), de 2014, é uma das melhores produções cinematográficas sobre o Rev. Martin Luther King Jr.
A propósito, sempre fiquei intrigado com a virtual ausência de filmes estadunidenses sobre King. O famoso Spike Lee, que é negro, dirigiu um filme sobre Malcon X. Mas por que não sobre King? Afinal se a população negra conseguiu, por lei, ter seus direitos civis assegurados, não foi devido ao esforço violento do muçulmano Malcon X, mas devido à resistência profética não violenta do cristão King Jr. Tantos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, tantos sobre a Guerra do Vietnã, mas por que um desprezo tácito sobre a vida de personagem tão importante na história dos Estados Unidos como foi King?
Mas, enfim, esta lacuna, que me impressiona, é agora suprida com o muito bom filme de Ava DuVernay. Ela optou por produzir não uma biografia de King, mas por fazer um recorte em um momento muito específico e crucial na luta pelos direitos civis dos Estados Unidos: a famosa marcha da cidade de Selma até Montgomery em 1965, no estado sulista do Alabama, um dos mais fortes no preconceito racial. Se bem que neste caso, “a parada é torta”, pois é muito difícil dizer qual estado do Sul dos EUA é mais racista, se a Georgia, se o citado Alabama, se o Mississippi, se as Carolinas (a Carolina do Norte também fica no Sul...), se a Louisiana.
O filme de DuVernay captou muito bem a impressionante força do preconceito étnico (ou “racial”, como se dizia naquela época), as manobras políticas de King, seus dramas familiares, os sofrimentos e agressões gratuitas que ele sofreu, mas também sua esposa Coretta Scott King (interpretada pela bela atriz Carmen Ejogo, que curiosamente, é inglesa), e uma infinidade de anônimos, que foram barbarizados pelo “crime” de terem nascido com a pele preta e o cabelo crespo. Mas a meu ver o grande mérito do filme está em mostrar como a fé cristã pode ser articulada e vivida para influenciar questões sociais e políticas. Neste sentido, o Rev. King Junior foi um pioneiro do que desde o início da década de 1970 é chamado de “teologia pública”, e que recentemente tem sido objeto de investigação acadêmica no Brasil.
O pioneirismo de King foi prático, não teórico. Ele mostrou em sua vida, e particularmente na marcha para Selma, como a fé cristã não se ocupa apenas do que é “espiritual”, como se apenas o que não é material fosse importante. Biblicamente falando, não é. King mostra como a ética é importante na vida cristã. Porque o cristianismo não é simplesmente teoria, não é mera compilação de doutrinas ortodoxas. Assim pensam os fundamentalistas. Os mesmos fundamentalistas que perseguiram King. Fundamentalistas se esquecem que cristianismo é vida, é fé vivenciada. E fé sem obras é morta. E o filme de DuVernay mostra isso muito bem.
“Selma” demonstra como religião e política podem se misturar para o bem, para salvação de vidas, não para destruição apenas, como se vê especialmente em teocracias contemporâneas. A narrativa segue um roteiro bem didático, mostrando no final - como é costumeiro em filmes baseados em fatos verídicos - o que aconteceu com os personagens nos anos seguintes. Há muitos closes nos rostos dos atores e atrizes, que souberam trabalhar suas expressões faciais para mostrar seus medos, inseguranças e ao mesmo tempo, suas esperanças.
David Oyelowo (também nascido na Inglaterra), que interpreta o Rev. King, se saiu muito bem, especialmente nas cenas de pregações – afinal, King tornou-se mundialmente famoso não apenas pela sua luta política, mas por seus dotes de oratória. Tim Roth, no papel do ultraracista governador George Wallace do Alabama, como sempre, é um show à parte: “pra variar”, ele rouba a cena e dá uma aula de interpretação. Ele encarna o cinismo do governador Wallace com uma naturalidade que chega a impressionar.
O ataque fundamentalista a King continua, tantos anos depois de seu assassinato, até hoje não completamente esclarecido. Fundamentalistas brancos nos EUA, e seus clones aqui no Brasil não perdoam King por sua militância de fé e política. Um conhecido blog brasileiro de orientação fundamentalista publicou há poucos anos o artigo de um dos seus responsáveis atacando violentamente King, com base nos seguintes argumentos: primeiro, King recebeu orientação teológica liberal; segundo, King teria plagiado sua tese de doutorado em Filosofia na Universidade de Boston; terceiro, King teria tido casos extraconjugais. Impressionante a má fé do articulista. O fato de alguém ter recebido orientação teológica “liberal” em si não desqualifica uma pessoa. Pelo menos, não deveria desqualificar. Afinal, a Bíblia diz que os seguidores de Jesus serão identificados como tal não por sua formação teológica tida como ortodoxa, mas pelo amor que tiverem uns para com os outros (Jo 13.34-35).
A segunda acusação jamais foi provada. Ralph Abernathy, que fora companheiro de King, mas que depois dele se afastou, lançou a acusação. A terceira, dos supostos relacionamentos extramaritais merece uma consideração especial. Quem levantou a acusação foi J. Edgard Hoover, que na época era o poderoso chefe do FBI. Hoover tinha todos os motivos do mundo para, com perdão do trocadilho infame, “denegrir” a imagem de King. Nada melhor para isto do que acusá-lo de ser infiel à Coretta. Porém, mais uma vez, estas acusações nunca foram comprovadas.
A incoerência dos fundamentalistas, norte-americanos e brasileiros, que lançam mão do argumento do inescrupuloso chefe do FBI para desmerecer King, é que Hoover era homossexual. E para os fundamentalistas os pecados sexuais são piores que quaisquer outros. Imagine você que lê estas linhas o que os fundamentalistas e o próprio Hoover não teriam feito se King fosse homossexual... Mas nesta hora fazem vista grossa, e fingem não saber do esqueleto que o moralista Hoover tinha escondido em seu armário.
Se um eficiente serviço de espionagem vasculhar e bisbilhotar a vida de um fundamentalista moralista 24 horas por dia, será que não descobriria também sujeiras escondidas? A triste verdade, a verdade nua e crua, é que os fundamentalistas, tanto os de lá como os de cá, criticam até hoje o Rev. King por pura inveja. E por racismo. Não conseguem admitir que um negro possa ter sido tão influente e importante. Mas escondem sua inveja e seu preconceito por detrás da fachada da “ortodoxia teológica”. Isto é triste. Como se a ortodoxia teológica fosse o próprio Cristo que, na verdade. é o único salvador. E Cristo não precisa da ortodoxia teológica para salvar ninguém. Aliás, parafraseando Karl Barth (tenho que tomar cuidado, fundamentalistas não gostam de Barth. Ah, mas também... Um fundamentalista só gosta de outro fundamentalista), Cristo pode salvar até mesmo os ortodoxos...
“Selma” é um filme que vale a pena ser visto e revisto. Finalizando, reproduzo aqui a belíssima e muito inteligente letra de Martinho Lutero Negro, do meu querido amigo Gladir da Silva Cabral, um dos melhores poetas evangélicos do nosso tempo:
Ele veio das terras de Atlanta
Levantando a poeira do chão
Convocando a manhã da mudança
Uma festa pra toda a nação
Ele solta sua voz no Alabama
Ele canta uma nova canção
Ele dança na chuva e na lama
Ele chama pra nova estação
Ele sonha com sol e justiça
Ele avista a cidade sem dor
Ele é negro! Martinho Lutero negro!
A palavra na ponta da língua
A história na palma da mão
A esperança, uma força infinda
E ainda mais forte, o perdão
Sua arte é vencer os temores
E os horrores secretos do não
É provar alegrias e dores
E os rigores de alguma prisão
E ainda sonhar com justiça
Que é mestiça de paz e paixão [de pão]
Negro! Martinho Lutero negro!
Tempo é de acordar
Tempo é de caminhar
E de mãos dadas pela estrada
Em direção à liberdade
Tempo é de transcender
Tempo é de superar toda a maldade
Dia de renascer
E de recomeçar
Uma subida longa, linda
Pelas trilhas da verdade.
Dia de construir
Dia de refazer uma cidade [E de reinventar...]
Fotos: Oficial/Filme Selma
Há 50 anos quase 8.000 pessoas se reuniram na Capela Brown para iniciar a marcha até Montgomery. Homens e mulheres. Pessoas de várias raças, credos e religiões se uniram para andarem ao lado de Dr. King.
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O Martin Luther do século 20: “Eu tenho um sonho...”
O sucesso da não-violência
Faça paz, e não guerra
A caminhada cristã na história
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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