Opinião
- 24 de junho de 2022
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Perguntas e respostas fundamentais sobre filosofia – parte 1
Por Cássia Almeida, Davi Lago, Pedro Dulci, Ricardo Murtada e Ricardo Quadros Gouvêa
Painel
Por ocasião do lançamento da série Filosofia e Fé Cristã, Ultimato convidou alguns especialistas para responder três perguntas simples sobre filosofia e fé cristã: (i) qual o seu engajamento com estes campos?, (ii) qual a importância da filosofia para a Igreja?, (iii) a filosofia afasta as pessoas de Deus? Confira a seguir as duas primeiras respostas pelos nossos convidados: Ricardo Quadros, Davi Lago, Ricardo Murtada, Cássia Almeida e Pedro Dulci.
Quais são as ações e/ou objetivos das suas reflexões, artigos, que envolvem a teologia e a filosofia?
Ricardo Quadros Gouvêa – Como autor, pastor e professor, praticamente tudo que penso, digo ou faço tem a ver com teologia e filosofia. Até mesmo meu lazer perpassa por elas. Tudo que faço, digo e escrevo carrega as marcas da reflexão teológica e filosófica. Na verdade, ninguém pode menosprezar a reflexão filosófica, pois a filosofia está presente em nossas decisões, bem como em tudo que dizemos ou pensamos. Todo discurso humano, seja teológico, científico, político, ou estético, se fundamenta em conceitos filosóficos. A filosofia está subjacente a todas as áreas do saber humano. Todo teólogo responsável procura adquirir um conhecimento razoável de filosofia, para que sua teologia seja consciente dos aspectos filosóficos inerentes ao discurso teológico. Eu considero aceitável definir o objeto da filosofia como sendo a racionalidade (o pensamento racional e a ação racional) entendida como uma capacidade humana (não o racionalismo, que é um tipo de filosofia). A lógica nos ensina as leis gerais do pensamento (dedução, indução, etc.); a metafísica ou ontologia estuda a racionalidade presente nos entes e na realidade em geral; a epistemologia analisa os processos racionais de aquisição do conhecimento. A chamada filosofia prática (ética, política, etc.) analisa as bases do comportamento racional e da organização social racional. Fica evidente a relevância destes estudos para a teologia e para a reflexão cristã em geral.
Fale sobre seu trabalho na intersecção da filosofia com a fé cristã.
Davi Lago – Minha formação acadêmica é jurídica e filosófica. Assim, o estudo filosófico atravessa toda minha atuação profissional e ministerial. Coordeno há três anos um grupo de pesquisa no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (LABÔ/PUC-SP) focado em mapear os dilemas éticos e filosóficos impostos pelos avanços tecnológicos.
Quais são as ações e objetivos das suas mídias on-line? Como se conectam com filosofia e fé?
Ricardo Murtada – Eu observei que as pessoas, quando buscavam conteúdos sobre filosofia em redes sociais, estavam preocupadas com os grandes debates, mas desconheciam os fundamentos mais básicos do pensamento filosófico. Foi pensando em suprir essa lacuna que direcionei minhas ações nas redes sociais. Meu objetivo é fornecer os elementos mais básicos e colaborar um pouco para que, uma vez possuindo certo arcabouço de conhecimentos básicos, as pessoas possam interagir com os grandes problemas e debates com algum nível de preparo. Uma vez que estabeleci esse objetivo, busco interagir com as problemáticas que envolvem o cristianismo, tais como, o que é o ser humano em uma perspectiva cristã e qual é a relação entre questões epistemológicas e a visão cristã de conhecimento.
Como você tem se engajado e divulgado a filosofia em contato com a fé cristã?
Cássia Almeida – Em meu período de curso teológico, por meio de um professor que, além de excelente mestre em Teologia, era filósofo, descobri a maravilhosa inter-relação entre ambas as áreas e o quanto podem servir juntas para glória de Deus.
Dessa forma, seguindo meus estudos na área de teologia filosófica, tenho buscado proporcionar para os que são, agora, meus alunos do curso de Teologia a mesma experiência de deslumbramento que tive diante das questões teológico-filosóficas.
Além disso, em minhas redes sociais, especialmente em meu Instagram, tenho buscado relatar, sempre que possível, a respeito dos meus estudos e indicações de leituras da área. Almejo também inspirar pessoas, inclusive às mulheres cristãs, à busca do conhecimento de Deus e da realidade. Tenho projetos, em futuro próximo, de postagens nas áreas de epistemologia e apologética, apresentando teólogos e filósofos que desenvolveram teorias importantes para a área da teoria do conhecimento.
Quais são as ações e/ou objetivos do Invisible College?
Pedro Dulci - O Invisible College é uma instituição de ensino e pesquisa de Teologia e Filosofia que nasceu com o objetivo de propor uma metodologia de aprendizagem flexível para nativos digitais — sem perder a qualidade do seu ensino confessional. Para isso, nossas ações concentram-se, basicamente, em: (1) fornecer orientação em relação a conteúdo, organizando-o de forma didática e disponibilizando gratuitamente, para qualquer pessoa interessada em aprender, em formato de guias de estudos — chamados isso de curadoria; (2) adaptar para o contexto digital uma consagrada metodologia didática, a saber, o sistema tutorial, usado pelas universidades de Oxford e Cambridge para servir quem busca um acompanhamento mais próximo nos seus estudos; (3) priorizar uma abordagem esteticamente qualificada, tanto na linguagem visual, quanto na verbal, para discernir as especificidades comunicacionais da geração que queremos alcançar.
Por que a igreja precisa da filosofia? Ou por que os cristãos devem se envolver com a filosofia?
Ricardo Quadros Gouvea – Estudar filosofia é necessário para qualquer pessoa. Ela nos protege de sermos vítimas fáceis da ação persuasória dos que falam conosco, seja quem for que a nós dirija a palavra: políticos, comerciantes, sedutores, ou mesmo líderes religiosos. A filosofia nos torna capazes de avaliar criticamente todos os discursos. Ela nos ensina a pensar por nós mesmos, e isso nos protege de sermos convencidos pela retórica dos oradores e pelos apelos emotivos de diferentes ideologias. Todo cristão deve, portanto, ampliar mais e mais os seus conhecimentos filosóficos, por amor ao bem, à verdade e à justiça. A igreja precisa de muito da filosofia para que sua teologia não se torne ingênua, para que sua hermenêutica bíblica não se torne refém de um determinado paradigma de interpretação da realidade, ou cosmovisão, mesmo que essa cosmovisão seja batizada de “cosmovisão cristã”, uma rotulação que pode muito bem ser retórica e ideológica e deve, portanto, passar pelo crivo da reflexão filosófica.
Davi Lago – Há várias razões. Podemos citar três: primeiro, porque a atitude filosófica, investigativa, criteriosa, faz parte da espiritualidade cristã. Devemos amar a Deus de todo “coração, alma e entendimento” (Mt 22.37). A vida devocional cristã é baseada no ensino de Jesus conforme as Escrituras. Ser um discípulo implica em entender o que Jesus ensinou, e para entender é necessário pensar, perguntar, refletir. O evangelho não apresenta uma espiritualidade anti-intelectual e supersticiosa. Pedro Abelardo dizia: “pela dúvida chegamos nas perguntas, pelas perguntas chegamos na verdade”. Vale dizer que a fé cristã é compreendida dentro de uma tradição anterior, o judaísmo, apresentando-se como continuidade e ruptura. Fora desta tradição, a fé cristã é ininteligível. Assim, ao assumir um conjunto de crenças anterior e dar-lhe um novo significado, a fé cristã exige uma atitude de estudo e reflexão. Em segundo lugar, conhecer os sistemas de pensamento da sociedade é importante para cumprirmos nossa tarefa missionária (Mc 16.15) e apologética (1Pe 3.15). O apóstolo Paulo demonstrou isso em Atenas ao anunciar o evangelho com inteligência dialogando com filósofos epicureus e estoicos e citando os poetas atenienses (At 17.18,28). Agostinho ensinou: “a verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor”. Em terceiro lugar, é importante estudar a história da filosofia porque grande parte dela foi realizada por nossos próprios irmãos e irmãs, isto é, por cristãos do passado. Conhecer este legado é motivo de gratidão a Deus. O testemunho de nossos irmãos é um incentivo muito grande para servirmos a Deus com alegria e excelência em nossos dias (Hb 13.7-8).
Ricardo Murtada – A atividade filosófica, desde a antiguidade, é movida por um espanto pelo reconhecimento de que desconhecemos as verdades mais profundas da vida. “Thaumazein” é o termo grego utilizado por filósofos como Platão e Aristóteles para indicar esse espanto. Ele é composto da letra “Θ” (Th) théta, que, por ser a inicial de Deus em grego (Theos), pode indicar que esse conhecimento que o filósofo deseja e ama é um conhecimento que pertence a Deus – costumo dizer que ele tem um “Q” de divino. Logo, o conhecimento filosófico envolve diversas questões acerca das quais muitas respostas podem ser encontradas nas páginas da Bíblia e nas diversas tradições cristãs.
Além disso, o cristianismo possui elementos que ampliam a dimensão dos problemas filosóficos – por exemplo, a Escritura como revelação divina se torna parte dos problemas epistemológicos. O cristianismo também propõe soluções não reducionistas a outros problemas, por possuir uma perspectiva mais ampla em casos como a difícil questão da pluralidade e da singularidade, que envolve a vida e a realidade; assim como em suas afirmações sobre as condições da natureza humana.
Precisamos de cristãos pensando essas e outras questões, visto que em toda a história da filosofia muitos cristãos foram reconhecidos por suas grandes contribuições para o pensamento filosófico.
Esses podem ser alguns dos motivos.
Cássia Almeida – Todos nós somos movidos por verdades filosóficas que definem a forma como interpretamos a nós mesmos e a realidade ao nosso redor. Estar inconscientes dessa verdade ou ignorá-la pode ser danoso à Igreja de Cristo.
Os cristãos necessitam da filosofia não como sua senhora, mas como uma serva que colabora para que estes possam tornar-se mais preparados para interpretar os desafios de sua própria época e conseguir respondê-los com eficácia e fidelidade, colaborando com o corpo de Cristo em seus mais diversos contextos.
Ademais, a filosofia contribui grandemente para a jornada do conhecimento de Deus nas Escrituras, proporcionando instrumentos para, tanto interpretar os textos bíblicos, quanto aplicá-los corretamente.
Pedro Dulci - A filosofia tem uma contribuição para a vida das pessoas que ultrapassa os muros do discurso erudito ou meramente universitário. A filosofia lida com assuntos que atingem todos nós. São as grandes questões da vida: o que é uma vida bem vivida? Como lidar com o mal? O que é o belo? Como conhecemos o que conhecemos? O que é a existência? Nenhuma dessas questões pode ser respondida matematicamente, quimicamente ou biologicamente. São questões primeiras, que antecedem qualquer ramo das disciplinas acadêmicas e estão nas fronteiras do conhecimento científico. Por isso são questões propriamente filosóficas – isto é, que só podem ser tratadas com um raciocínio filosoficamente conduzido.
Ao passo que temos essa compreensão sobre o que fazem os filósofos quando estão trabalhando, uma angústia paira sobre a igreja evangélica brasileira. Nós simplesmente ignoramos a melhor tradição intelectual que temos. Trocamos nossa primogenitura intelectual por um prato de lentilhas filosóficas. Os membros de nossas igrejas até estão sensibilizados sobre o valor que a filosofia pode ter na sua vida cotidiana — é por isso que eles têm o nome de dois ou três “filósofos pop” na ponta da língua. Entretanto, a maioria dos discípulos de Jesus deixaram de procurar as repostas para as grandes perguntas da existência no interior da própria comunidade cristã — perdendo uma grande oportunidade de edificação de sua fé. De Justino, o mártir, até Alvin Plantinga — passando por Agostinho, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino, Jonathan Edwards, Thomas Reid, Soren Kierkegaard, Herman Dooyeweerd — temos uma multidão de testemunhas sobre uma forma genuinamente cristã de satisfazermos nossa curiosidade pelo sentido da vida. Substituir as argumentações de um filósofo confessional por um pagão não é apenas uma questão de preferência intelectual. Diz respeito à fidelidade a Deus na condução do nosso raciocínio. Portanto, a filosofia cristã é importante porque é uma das melhores formas de sermos fiéis a Deus com todo o nosso entendimento.
Ao passo que temos essa compreensão sobre o que fazem os filósofos quando estão trabalhando, uma angústia paira sobre a igreja evangélica brasileira. Nós simplesmente ignoramos a melhor tradição intelectual que temos. Trocamos nossa primogenitura intelectual por um prato de lentilhas filosóficas. Os membros de nossas igrejas até estão sensibilizados sobre o valor que a filosofia pode ter na sua vida cotidiana — é por isso que eles têm o nome de dois ou três “filósofos pop” na ponta da língua. Entretanto, a maioria dos discípulos de Jesus deixaram de procurar as repostas para as grandes perguntas da existência no interior da própria comunidade cristã — perdendo uma grande oportunidade de edificação de sua fé. De Justino, o mártir, até Alvin Plantinga — passando por Agostinho, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino, Jonathan Edwards, Thomas Reid, Soren Kierkegaard, Herman Dooyeweerd — temos uma multidão de testemunhas sobre uma forma genuinamente cristã de satisfazermos nossa curiosidade pelo sentido da vida. Substituir as argumentações de um filósofo confessional por um pagão não é apenas uma questão de preferência intelectual. Diz respeito à fidelidade a Deus na condução do nosso raciocínio. Portanto, a filosofia cristã é importante porque é uma das melhores formas de sermos fiéis a Deus com todo o nosso entendimento.
- Carla de Cássia Coutinho Almeida é formada em teologia e é mestranda em teologia filosófica pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper. Esposa do Eduardo Almeida, servem na Igreja Batista Rio de Deus em Sorocaba,SP e atua na Escola Ministerial Antioquia no Vale da Bênção como coordenadora e professora do Curso de Teologia e Missões.
- Davi Lago, coautor de A Igreja do Futuro e o Futuro da Igreja, professor de filosofia do direito, ensaísta e coordenador de pesquisa no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (PUC-SP).
- Pedro Lucas Dulci, autor de Fé Cristã e Ação Política, Pedro Lucas Dulci, é filósofo e pastor presbiteriano. Casado com Carolinne e pai de Benjamin, desenvolve pesquisa em ética e filosofia política contemporânea e estudos sobre o diálogo entre ciência e religião, com estágio na Vrije Universiteit Amsterdam. É teólogo e coordenador pedagógico no Invisible College.
- Ricardo Quadros Gouvêa, mora no Canadá onde é pastor da Igreja Reformada na América. É professor de teologia no Gordon Conwell Theological Seminary (LGM Program) e lecionou como professor visitante na Universidade de Waterloo. Doutor em estudos históricos e teológicos pelo Westminster Theological Seminary. Possui Pós-doutoramento pela Universidade de Waterloo. Tem oito livro publicados, além de vários artigos em periódicos acadêmicos e capítulos, tanto no Brasil como no exterior.
- Ricardo Murtada, cristão e membro da Igreja Batista. Graduado em filosofia, consultor educacional e de treinamentos.
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