Opinião
- 13 de novembro de 2017
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Os evangélicos precisam redescobrir a catolicidade?
Por Guilherme de Carvalho
No dia em que celebramos os 500 anos da Reforma Protestante, é evidente que o movimento evangélico precisa de uma nova linguagem e de uma nova formulação de seus princípios. Em particular, em um momento em que:
(1) vê-se, em amplos círculos, um rearranjo das lealdades eclesiásticas que deixam de ser primariamente sociais-denominacionais para se tornarem confessionais, numa confessionalidade transdenominacional;
(2) vê-se uma ruptura interna no discurso evangélico, com a emergência de novas formas de “liberalismo teológico” (no sentido lato) diretamente associadas aos estágios recentes do processo de “centramento subjetivo” que marca a hipermodernidade, e que se mostram igualmente transdenominacionais e de grande apelo a pessoas “desigrejadas”;
(3) há um esforço já consolidado de conferir ao evangelicismo latinoamericano uma amplitude missional que faça justiça às demandas do mundo moderno, superando tendências fundamentalistas e escapistas, encarnada no movimento de Missão Integral, mas que mostrou significativa dificuldade em integrar a afirmação do cotidiano e a sublimidade do conhecimento de Cristo, tratando erroneamente as duas realidades como valores simétricos;
(4) a revolução comunicacional produzida pela internet e pelas redes sociais desconfigurou os sistemas antigos de instrução e promoção de ideias, e viabilizou um acesso sem precedentes do público cristão às fontes e interpretações de sua fé. Essa revolução, comparável à revolução de Gutenberg, acelera o espalhamento de erros teológicos, mas também acelera a exposição e corrosão de expressões teológicas de má qualidade ou heréticas, sendo um dos exemplos mais evidentes a alteração brusca na percepção da teologia da prosperidade pelos jovens cristãos;
(5) há uma nítida ansiedade identitária animando os mais diversos estratos da sociedade contemporânea e manifestando-se também na ansiedade quanto à identidade religiosa, no contexto Cristão evangélico e católico. O massivo movimento de recuperação das raízes e de tentativa de justificação histórica atinge arminianos, pentecostais, luteranos, e outros movimentos, sendo a ressurgência calvinista o exemplar mais evidente desse fenômeno, a ponto de, em alguns círculos que buscam fugir das respostas reformadas, o discurso mostrar-se em parte construído como reação ao reavivamento reformado. Por outro lado, muitos entre os novos calvinistas tem se tornado progressivamente conscientes de sua dependência da tradição ecumênica e das contribuições singulares dos outros movimentos. Talvez o futuro guarde um novo ecumenismo intraprotestante e um diálogo renovado entre as grandes tradições.
Faz-se necessário e mesmo oportuno uma consciência mais refinada, coesa e autoconsciente da tarefa e contribuição evangelical.
Uma nova consciência
Quanto a isso haveria muito o que dizer; mas entendo que qualquer contribuição precisará tomar em consideração o tema da catolicidade. Tema esse que vem sendo levantado há muitas décadas por muitos nomes proeminentes, de modo que não pretendo trazer qualquer “inovação”, mas tão somente dar-lhe a justa ressonância.
Há exatos cinco anos publiquei uns poucos parágrafos em comemoração ao dia da Reforma, em que levantei a questão:
Concordo que precisamos desesperadamente de “reforma”. Mas o que significaria reforma hoje, considerando a situação real da igreja evangélica?
Creio que a única reforma possível para nós hoje é a redescoberta da catolicidade da igreja. A igreja evangélica não sofre por falta de protestantismo, mas de catolicidade. É por isso que ela se fragmenta em um punhado de seitas pseudoevangélicas.
Antes que alguém se assuste, essa catolicidade não está no romanismo. Está no evangelho, sem dúvida. Mas enquanto a igreja romana perde o evangelho por falta de reforma, a igreja evangélica perde o evangelho por falta de catolicidade e de seus veículos: credo, comunhão, tradição, unidade natureza-graça, história, heróis, e a visão de um Deus Trino que seja maior dos que os nossos sentimentos e projetos religiosos.
Na verdade, essa ansiedade começou antes, logo depois de editarmos o livro “Cosmovisão Cristã e Transformação”, no qual sugerimos uma união dos discursos de “Cosmovisão” e de “Missão Integral”. Pouco tempo depois cheguei à compreensão de que ambas as linguagens, a despeito de suas contribuições relativas, são insuficientes para veicular a qualidade de consciência espiritual que o evangelicismo precisa desenvolver. A palavra que tradicionalmente veicula essa consciência na tradição Cristã é “Católico/Catolicidade”, a terceira das quatro marcas da Igreja.
A lógica católica
Ouçamos aos antigos:
“A Igreja, então, é chamada Católica porque se espalhou por todo o mundo, de um extremo ao outro da terra, e porque ela nunca cessa de ensinar em toda a sua plenitude cada doutrina que os homens devem ser levados a conhecer: e isso com respeito a coisas visíveis e invisíveis, no céu e na terra. Ela é chamada Católica também porque traz à obediência todo tipo de homens, governantes e governados, eruditos e simples, e porque é um tratamento e cura universal para cada tipo de pecado perpetrado, seja pela alma ou pelo corpo, e possui nela cada forma de virtude que se nomeia, seja isso expresso em atos ou obras ou em cada graça espiritual que se pode descrever.” – Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C.)
Catolicidade, então, é universalidade horizontal, geográfica e multicultural (todo o mundo), mas também envolve outros níveis de totalidade ou inteireza: todas as partes do universo, homens em todas as classes ou funções sociais, todos os tipos de curas, todos os tipos de virtudes, e toda a plenitude da doutrina. Essa extensão multidimensional nos permitiria falar em “catolicidades”, como nota o teólogo católico Avery Dulles:
Na tradição teológica a catolicidade veio a conotar a ausência de barreiras, ilimitação, transcendência. O que quer que restrinja ou divida opõe-se à catolicidade. Mas desde que há muitos tipos de barreiras ou limites, há também muitos tipos de catolicidade.
Essa pluricatolicidade ou catolicidade multidimensional poderia ser descrita, numa linguagem missiológica moderna surpreendentemente aproximada, como “todo o evangelho, para o homem todo, e para todos os homens” e “em todos os tempos” (Como se depreende com clareza de Mateus 28.18-20). O que o discurso sobre a “integralidade” do evangelho ou da missão pretende acessar, de um modo nem sempre consciente, é o que as igrejas Cristãs chamam, desde a antiguidade, de “catolicidade”. Mas há várias catolicidades: integridade, diz respeito ao conteúdo; integralidade diz respeito ao escopo; universalidade diz respeito ao alcance social; perenidade diz respeito à abrangência temporal.
Cinco teses evangélicas sobre reforma e catolicidade
Tese 1: Integridade Teológica
“Catolicidade” implica promover uma recuperação mais responsável da ideia de “Evangelho Todo”, por meio de uma visão mais adequada e ecumênica da unidade entre “natureza” e “graça” (reconhecendo, aqui, sem servilismo, contribuições distintas da tradição reformada, do neocalvinismo, da nouvelle theologie, da ortodoxia radical, e de outras fontes como a tradição Wesleyana), mas principalmente: um retorno ao evangelho puro – que é a base de toda a nossa universalidade: o evangelho da graça que humilha o homem até o pó e o ergue até à presença de Deus.
Recorro aqui, de modo puramente instrumental, à noção de Tillich de “substância católica e princípio protestante” para objetar ao novo liberalismo “evangélico”, e aponto que este perdeu a substância católica (o evangelho) e, portanto, sua função profética-protestante. O retorno ao “Evangelho todo” implicará um retorno à Trindade, a Cristo, à graça, ao Espírito Santo e à tradição do avivamento espiritual (como representada em exemplos como Jonathan Edwards). Nesse sentido, os “Cinco Solas” do protestantismo preservam a clareza do evangelho tão essencial para que o protestantismo mantenha-se radicado no fundamento de toda a catolicidade, que é Cristo, e longe do mero “catolicismo”.
Mas além disso e em especial, dado o impacto da secularização moderna, é preciso fazer clara a afirmação da integração do temporal e do Eterno na vida Cristã a partir da lógica da própria Encarnação, e por isso mesmo sem jamais descuidar da prioridade teleológica do Eterno sobre o Temporal e da assimetria entre ambos, combatendo toda e qualquer imanentização do Cristianismo e da espiritualidade Cristã.
Tese 2: Integralidade Cosmológica
“Catolicidade” implica apresentar uma visão genuína do que seria “o homem todo”; e como Bavinck tanto enfatizou, a coalescência de Criação e Redenção seria o motivo “católico” do cristianismo; e retomar a ideia agostiniana-reformada de que o coração é o centro unificador do homem. Isso implicará denunciar que a inoperância do motivo católico Criação-Queda-Redenção e o emprego de estratégias dualistas, sem a crítica da autonomia da razão, tem o efeito de achatar a imagem antropológica da teologia. Exemplos disso são as imagens reducionistas da pobreza, da justiça e da liberdade humana encontradas em amplos setores da teologia latino-americana, e a imagem atomizada e empobrecida da sociedade humana sustentada de modo popular por cristãos adeptos de certas formas de liberalismo político.
Entre os modernos achatamentos, destaca-se a imagem expressivista-romântica da identidade humana acriticamente adotada pela nova esquerda evangélica. Essa compreensão do florescimento humano é uma das fontes de validação de todo tipo de abuso do homem contra o próprio corpo e contra os maiores bens da vida social, na defesa do aborto, da promiscuidade sexual, na confusão sobre gênero, na clivagem entre homem e mulher e na leniência com a dissolução da ordem familiar e da autoridade parental, bandeiras da nova micropolítica.
Tese 3: Universalidade Social
“Catolicidade” implica articular uma resistência apologética e disciplinar permanente à piedade da “luta de classes” (bem como da conflitividade da micropolítica pós-estruturalista, introduzida no contexto Cristão por meio das novas teologias da libertação) como uma corrupção espiritual da luta bíblica por justiça, que se incorporada na Missão, impede que o evangelho alcance “todos os homens” e divide ideologicamente a igreja de Jesus, fazendo-a se esquecer de que em Cristo não há “homem, mulher, bárbaro, cita, escravo, ou livre”.
Essa promoção do deus heraclitiano “polemos”, o “pai de todos”, introduz no movimento cristão o fenômeno da “inversão moral”, descrito por Michael Polanyi como fenômeno típico da ideologização niilista das massas. Contra isso é necessário afirmar que qualquer proposta de atuação social que não possa ser honestamente descrita como reconciliação humana no sentido das cartas aos Efésios e aos Colossenses (sem descuidarmos do princípio da antítese espiritual) é uma falsa antítese, um evangelho da violência, um instrumento de aparelhamentos ideológicos e um obstáculo externo gratuito à unidade da Igreja Cristã. Ao mesmo tempo, a resistência ao evangelho da dialética não pode se converter em mera afirmação das divisões, uma vez que em Cristo elas são feitas inoperantes; de modo que pesa sobre a igreja a tremenda tarefa de guerrear contra a guerra e reconciliar a diferença.
Tese 4: Continuidade Histórica
“Catolicidade” implica pensar a igreja e a fé em ligação humilde e consciente com o passado: os pais da Igreja, os doutores, os Reformadores, e as práticas litúrgicas, devocionais e missionais do passado. Não se pode falar em contextualização como se a encarnação já não houvesse ocorrido, e como se o presente histórico não estivesse em continuidade com o passado. O presente não é a substituição do passado; e Cristo está com seu povo por todos os dias até a consumação do século. Portanto todos os dias são igualmente de Cristo! Preciso reconhecer Cristo hoje; mas se o reconhecer hoje, o reconhecerei em todos os dias anteriores. A igreja deve saber ser renovada e contemporânea, mas também antiga e contínua, transistórica.
O movimento evangélico não poderá cumprir sua tarefa reformatória perdendo a capacidade de ser tradição, de conservar os dons de Cristo por todos os séculos, e de reconhecer esses dons nas partes evangélicas mas não-evangelicais do Corpo de Cristo. Por isso mesmo, o movimento evangélico deve dizer um não definitivo ao modo moderno de fazer teologia, com seu dogma historicista que absolutiza o processo de mudança e se torna agnóstico quanto à verdade; e que no afã de mostrar relevância cai seduzido pela absolutidade do cotidiano, típica do homem secular, e perde a memória de sua caminhada com Jesus.
Tese 5: Protestantismo Profético
Sim, o tema parece deslocado; mas a profecia é uma condição da Catolicidade! Ela é um movimento de empatia em relação ao coração divino, que participa de seu pathos; não é a coisa mais importante, devemos dizer: pois “Quando vier o que é perfeito, o que é em parte será aniquilado”. O protesto profético é menor do que a catolicidade, porque quando Ele for “tudo em todos”, não será mais necessário profetizar. Pois recuperar a fé original, pura e universal, que é o que significa ser católico, é a única razão para ser protestante. Mas no corrente momento escatológico a substância católica e o princípio católico da recepção confiante precisam ser preservados pela recusa profética da idolatria.
O desafio de um evangelicismo católico exige resistir resolutamente ao hiperprotestantismo, que é um gnosticismo: o hiperprotestantismo nega a singularidade da encarnação e nega, como o “anomos” ou “iníquo”, toda representação concreta do divino, toda lei, toda mediação. O hiperprotestantismo degenerou-se na revolta demônica contra a forma e a lei que caracteriza a hipermodernidade, que “se levanta contra tudo o que se chama deus”, mas se assenta em seu lugar. Não será, no entanto, recusando a profecia que a igreja se livrará do hiperprotestantismo gnóstico; nesse sentido particular, não pode haver um “fim do protestantismo” até que finde a era presente. Mas a verdadeira profecia, começando com o princípio da “integridade”, operará em favor da verdadeira catolicidade, como também o queria o nosso irmão Lutero.
Convido os amigos e irmãos a pensarmos e orarmos juntos sobre como cultivar um evangelicismo católico, ecumênico, reformado e protestante.
POST TENEBRAS LUX!
Nota: Publicado originalmente em guilhermedecarvalho.com.
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25 perguntas sobre a Reforma Protestante
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Cosmovisão Cristã e Transformação: Espiritualidade, razão e ordem social
Imagem: Photo by Karl Fredrickson on Unsplash
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(1) vê-se, em amplos círculos, um rearranjo das lealdades eclesiásticas que deixam de ser primariamente sociais-denominacionais para se tornarem confessionais, numa confessionalidade transdenominacional;
(2) vê-se uma ruptura interna no discurso evangélico, com a emergência de novas formas de “liberalismo teológico” (no sentido lato) diretamente associadas aos estágios recentes do processo de “centramento subjetivo” que marca a hipermodernidade, e que se mostram igualmente transdenominacionais e de grande apelo a pessoas “desigrejadas”;
(3) há um esforço já consolidado de conferir ao evangelicismo latinoamericano uma amplitude missional que faça justiça às demandas do mundo moderno, superando tendências fundamentalistas e escapistas, encarnada no movimento de Missão Integral, mas que mostrou significativa dificuldade em integrar a afirmação do cotidiano e a sublimidade do conhecimento de Cristo, tratando erroneamente as duas realidades como valores simétricos;
(4) a revolução comunicacional produzida pela internet e pelas redes sociais desconfigurou os sistemas antigos de instrução e promoção de ideias, e viabilizou um acesso sem precedentes do público cristão às fontes e interpretações de sua fé. Essa revolução, comparável à revolução de Gutenberg, acelera o espalhamento de erros teológicos, mas também acelera a exposição e corrosão de expressões teológicas de má qualidade ou heréticas, sendo um dos exemplos mais evidentes a alteração brusca na percepção da teologia da prosperidade pelos jovens cristãos;
(5) há uma nítida ansiedade identitária animando os mais diversos estratos da sociedade contemporânea e manifestando-se também na ansiedade quanto à identidade religiosa, no contexto Cristão evangélico e católico. O massivo movimento de recuperação das raízes e de tentativa de justificação histórica atinge arminianos, pentecostais, luteranos, e outros movimentos, sendo a ressurgência calvinista o exemplar mais evidente desse fenômeno, a ponto de, em alguns círculos que buscam fugir das respostas reformadas, o discurso mostrar-se em parte construído como reação ao reavivamento reformado. Por outro lado, muitos entre os novos calvinistas tem se tornado progressivamente conscientes de sua dependência da tradição ecumênica e das contribuições singulares dos outros movimentos. Talvez o futuro guarde um novo ecumenismo intraprotestante e um diálogo renovado entre as grandes tradições.
Faz-se necessário e mesmo oportuno uma consciência mais refinada, coesa e autoconsciente da tarefa e contribuição evangelical.
Uma nova consciência
Quanto a isso haveria muito o que dizer; mas entendo que qualquer contribuição precisará tomar em consideração o tema da catolicidade. Tema esse que vem sendo levantado há muitas décadas por muitos nomes proeminentes, de modo que não pretendo trazer qualquer “inovação”, mas tão somente dar-lhe a justa ressonância.
Há exatos cinco anos publiquei uns poucos parágrafos em comemoração ao dia da Reforma, em que levantei a questão:
Concordo que precisamos desesperadamente de “reforma”. Mas o que significaria reforma hoje, considerando a situação real da igreja evangélica?
Creio que a única reforma possível para nós hoje é a redescoberta da catolicidade da igreja. A igreja evangélica não sofre por falta de protestantismo, mas de catolicidade. É por isso que ela se fragmenta em um punhado de seitas pseudoevangélicas.
Antes que alguém se assuste, essa catolicidade não está no romanismo. Está no evangelho, sem dúvida. Mas enquanto a igreja romana perde o evangelho por falta de reforma, a igreja evangélica perde o evangelho por falta de catolicidade e de seus veículos: credo, comunhão, tradição, unidade natureza-graça, história, heróis, e a visão de um Deus Trino que seja maior dos que os nossos sentimentos e projetos religiosos.
Na verdade, essa ansiedade começou antes, logo depois de editarmos o livro “Cosmovisão Cristã e Transformação”, no qual sugerimos uma união dos discursos de “Cosmovisão” e de “Missão Integral”. Pouco tempo depois cheguei à compreensão de que ambas as linguagens, a despeito de suas contribuições relativas, são insuficientes para veicular a qualidade de consciência espiritual que o evangelicismo precisa desenvolver. A palavra que tradicionalmente veicula essa consciência na tradição Cristã é “Católico/Catolicidade”, a terceira das quatro marcas da Igreja.
A lógica católica
Ouçamos aos antigos:
“A Igreja, então, é chamada Católica porque se espalhou por todo o mundo, de um extremo ao outro da terra, e porque ela nunca cessa de ensinar em toda a sua plenitude cada doutrina que os homens devem ser levados a conhecer: e isso com respeito a coisas visíveis e invisíveis, no céu e na terra. Ela é chamada Católica também porque traz à obediência todo tipo de homens, governantes e governados, eruditos e simples, e porque é um tratamento e cura universal para cada tipo de pecado perpetrado, seja pela alma ou pelo corpo, e possui nela cada forma de virtude que se nomeia, seja isso expresso em atos ou obras ou em cada graça espiritual que se pode descrever.” – Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C.)
Catolicidade, então, é universalidade horizontal, geográfica e multicultural (todo o mundo), mas também envolve outros níveis de totalidade ou inteireza: todas as partes do universo, homens em todas as classes ou funções sociais, todos os tipos de curas, todos os tipos de virtudes, e toda a plenitude da doutrina. Essa extensão multidimensional nos permitiria falar em “catolicidades”, como nota o teólogo católico Avery Dulles:
Na tradição teológica a catolicidade veio a conotar a ausência de barreiras, ilimitação, transcendência. O que quer que restrinja ou divida opõe-se à catolicidade. Mas desde que há muitos tipos de barreiras ou limites, há também muitos tipos de catolicidade.
Essa pluricatolicidade ou catolicidade multidimensional poderia ser descrita, numa linguagem missiológica moderna surpreendentemente aproximada, como “todo o evangelho, para o homem todo, e para todos os homens” e “em todos os tempos” (Como se depreende com clareza de Mateus 28.18-20). O que o discurso sobre a “integralidade” do evangelho ou da missão pretende acessar, de um modo nem sempre consciente, é o que as igrejas Cristãs chamam, desde a antiguidade, de “catolicidade”. Mas há várias catolicidades: integridade, diz respeito ao conteúdo; integralidade diz respeito ao escopo; universalidade diz respeito ao alcance social; perenidade diz respeito à abrangência temporal.
Cinco teses evangélicas sobre reforma e catolicidade
Tese 1: Integridade Teológica
“Catolicidade” implica promover uma recuperação mais responsável da ideia de “Evangelho Todo”, por meio de uma visão mais adequada e ecumênica da unidade entre “natureza” e “graça” (reconhecendo, aqui, sem servilismo, contribuições distintas da tradição reformada, do neocalvinismo, da nouvelle theologie, da ortodoxia radical, e de outras fontes como a tradição Wesleyana), mas principalmente: um retorno ao evangelho puro – que é a base de toda a nossa universalidade: o evangelho da graça que humilha o homem até o pó e o ergue até à presença de Deus.
Recorro aqui, de modo puramente instrumental, à noção de Tillich de “substância católica e princípio protestante” para objetar ao novo liberalismo “evangélico”, e aponto que este perdeu a substância católica (o evangelho) e, portanto, sua função profética-protestante. O retorno ao “Evangelho todo” implicará um retorno à Trindade, a Cristo, à graça, ao Espírito Santo e à tradição do avivamento espiritual (como representada em exemplos como Jonathan Edwards). Nesse sentido, os “Cinco Solas” do protestantismo preservam a clareza do evangelho tão essencial para que o protestantismo mantenha-se radicado no fundamento de toda a catolicidade, que é Cristo, e longe do mero “catolicismo”.
Mas além disso e em especial, dado o impacto da secularização moderna, é preciso fazer clara a afirmação da integração do temporal e do Eterno na vida Cristã a partir da lógica da própria Encarnação, e por isso mesmo sem jamais descuidar da prioridade teleológica do Eterno sobre o Temporal e da assimetria entre ambos, combatendo toda e qualquer imanentização do Cristianismo e da espiritualidade Cristã.
Tese 2: Integralidade Cosmológica
“Catolicidade” implica apresentar uma visão genuína do que seria “o homem todo”; e como Bavinck tanto enfatizou, a coalescência de Criação e Redenção seria o motivo “católico” do cristianismo; e retomar a ideia agostiniana-reformada de que o coração é o centro unificador do homem. Isso implicará denunciar que a inoperância do motivo católico Criação-Queda-Redenção e o emprego de estratégias dualistas, sem a crítica da autonomia da razão, tem o efeito de achatar a imagem antropológica da teologia. Exemplos disso são as imagens reducionistas da pobreza, da justiça e da liberdade humana encontradas em amplos setores da teologia latino-americana, e a imagem atomizada e empobrecida da sociedade humana sustentada de modo popular por cristãos adeptos de certas formas de liberalismo político.
Entre os modernos achatamentos, destaca-se a imagem expressivista-romântica da identidade humana acriticamente adotada pela nova esquerda evangélica. Essa compreensão do florescimento humano é uma das fontes de validação de todo tipo de abuso do homem contra o próprio corpo e contra os maiores bens da vida social, na defesa do aborto, da promiscuidade sexual, na confusão sobre gênero, na clivagem entre homem e mulher e na leniência com a dissolução da ordem familiar e da autoridade parental, bandeiras da nova micropolítica.
Tese 3: Universalidade Social
“Catolicidade” implica articular uma resistência apologética e disciplinar permanente à piedade da “luta de classes” (bem como da conflitividade da micropolítica pós-estruturalista, introduzida no contexto Cristão por meio das novas teologias da libertação) como uma corrupção espiritual da luta bíblica por justiça, que se incorporada na Missão, impede que o evangelho alcance “todos os homens” e divide ideologicamente a igreja de Jesus, fazendo-a se esquecer de que em Cristo não há “homem, mulher, bárbaro, cita, escravo, ou livre”.
Essa promoção do deus heraclitiano “polemos”, o “pai de todos”, introduz no movimento cristão o fenômeno da “inversão moral”, descrito por Michael Polanyi como fenômeno típico da ideologização niilista das massas. Contra isso é necessário afirmar que qualquer proposta de atuação social que não possa ser honestamente descrita como reconciliação humana no sentido das cartas aos Efésios e aos Colossenses (sem descuidarmos do princípio da antítese espiritual) é uma falsa antítese, um evangelho da violência, um instrumento de aparelhamentos ideológicos e um obstáculo externo gratuito à unidade da Igreja Cristã. Ao mesmo tempo, a resistência ao evangelho da dialética não pode se converter em mera afirmação das divisões, uma vez que em Cristo elas são feitas inoperantes; de modo que pesa sobre a igreja a tremenda tarefa de guerrear contra a guerra e reconciliar a diferença.
Tese 4: Continuidade Histórica
“Catolicidade” implica pensar a igreja e a fé em ligação humilde e consciente com o passado: os pais da Igreja, os doutores, os Reformadores, e as práticas litúrgicas, devocionais e missionais do passado. Não se pode falar em contextualização como se a encarnação já não houvesse ocorrido, e como se o presente histórico não estivesse em continuidade com o passado. O presente não é a substituição do passado; e Cristo está com seu povo por todos os dias até a consumação do século. Portanto todos os dias são igualmente de Cristo! Preciso reconhecer Cristo hoje; mas se o reconhecer hoje, o reconhecerei em todos os dias anteriores. A igreja deve saber ser renovada e contemporânea, mas também antiga e contínua, transistórica.
O movimento evangélico não poderá cumprir sua tarefa reformatória perdendo a capacidade de ser tradição, de conservar os dons de Cristo por todos os séculos, e de reconhecer esses dons nas partes evangélicas mas não-evangelicais do Corpo de Cristo. Por isso mesmo, o movimento evangélico deve dizer um não definitivo ao modo moderno de fazer teologia, com seu dogma historicista que absolutiza o processo de mudança e se torna agnóstico quanto à verdade; e que no afã de mostrar relevância cai seduzido pela absolutidade do cotidiano, típica do homem secular, e perde a memória de sua caminhada com Jesus.
Tese 5: Protestantismo Profético
Sim, o tema parece deslocado; mas a profecia é uma condição da Catolicidade! Ela é um movimento de empatia em relação ao coração divino, que participa de seu pathos; não é a coisa mais importante, devemos dizer: pois “Quando vier o que é perfeito, o que é em parte será aniquilado”. O protesto profético é menor do que a catolicidade, porque quando Ele for “tudo em todos”, não será mais necessário profetizar. Pois recuperar a fé original, pura e universal, que é o que significa ser católico, é a única razão para ser protestante. Mas no corrente momento escatológico a substância católica e o princípio católico da recepção confiante precisam ser preservados pela recusa profética da idolatria.
O desafio de um evangelicismo católico exige resistir resolutamente ao hiperprotestantismo, que é um gnosticismo: o hiperprotestantismo nega a singularidade da encarnação e nega, como o “anomos” ou “iníquo”, toda representação concreta do divino, toda lei, toda mediação. O hiperprotestantismo degenerou-se na revolta demônica contra a forma e a lei que caracteriza a hipermodernidade, que “se levanta contra tudo o que se chama deus”, mas se assenta em seu lugar. Não será, no entanto, recusando a profecia que a igreja se livrará do hiperprotestantismo gnóstico; nesse sentido particular, não pode haver um “fim do protestantismo” até que finde a era presente. Mas a verdadeira profecia, começando com o princípio da “integridade”, operará em favor da verdadeira catolicidade, como também o queria o nosso irmão Lutero.
Convido os amigos e irmãos a pensarmos e orarmos juntos sobre como cultivar um evangelicismo católico, ecumênico, reformado e protestante.
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Imagem: Photo by Karl Fredrickson on Unsplash
É teólogo, mestre em Ciências da Religião e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, é também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro fundador da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2).
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