Opinião
- 20 de setembro de 2017
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O que diferencia cristãos reformados de outros cristãos
Por Jorge Henrique Barro
“Sucedeu, pois, que ao fim dos quarenta dias e quarenta noites, o Senhor me deu as duas tábuas de pedra, as tábuas do pacto” (Dt 9.11)
“Porque a lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1.17)
Uma abordagem da teologia da graça, tradicional na teologia cristã desde a época de Agostinho, tem sido psicológica (o relacionamento de Deus com o ser humano), moral (o pecado afeta a totalidade da criação) e histórica (a atividade divina na história humana e em vidas humanas). Nessa linha de pensamento, o assunto é organizado de acordo com os diferentes estágios do pecado, da redenção e da graça na vida do indivíduo e na história da salvação da raça humana.
Embora a abordagem de Agostinho tenha dominado a teologia da graça na cristandade ocidental durante séculos, uma abordagem diferente surgiu no século XIII: a compreensão metafísica ou ontológica da graça. Thomas de Aquino, ao tratar sobre a graça, utilizou as categorias de “substância” e “qualidades” de Aristóteles, culminando nas chamadas “graça criada” ou “graça habitual”.
Habitus gratiae: hábito ou disposição da graça; um presente divino infundido na alma de modo a tornar-se parte da natureza humana. O habitus gratiae pode, portanto, também ser chamado de gratia creata, graça criada, distinta do poder incriado de Deus que a traz à existência, gratia increata. Além disso, de acordo com sua função, o habitus gratiae pode ser chamado de graça justificativa (gratia iustificans) ou graça santificadora (gratia sanctificans).
Este conceito, juntamente com um conceito relacionado de uma justiça infundida (iustitia infusa, qv), foi rejeitado pelos Reformadores na medida em que não pode ser correlacionado com a doutrina de uma justificativa forense (iustificatio, qv) no terreno da justiça do outro (iustitia aliena) de Cristo imputada aos crentes pela graça somente pela fé. O habitus gratiae implica uma justiça intrínseca ao cristão, ao passo que o conceito reformista de justiça imputada é extrínseco. A justiça é vista pelos reformadores e os ortodoxos como inerentes ou intrínsecos... em relação à obra do Espírito na santificação (sanctificatio, qv), mas o conceito, aqui, é expresso em termos de limpeza (renavatio, qv) em vez de disposição ou hábito infundido¹.
Calvino enfatizou a iustitia aliena, isto é, a justiça que vem de outro, que vem de fora. Para Calvino a salvação “pela fé somente” significa que a fé não efetua de si mesma a justificação. A fé é o meio pelo qual se apropria da justiça de outro (iustitia aliena), que é transferida à nós.
Tal perspectiva não só dominou as teologias de graça escolástica e neoescolástica como também permaneceu predominante mesmo nos escritores que conscientemente procuraram ir além de sua herança escolástica e moldaram até a redação de versões popularizadas da teologia da graça.
Nossa teologia da graça tendeu nos últimos anos a se tornar cada vez mais personalista, fenomenológica² e psicológica. Neste movimento foram encontradas inúmeras dificuldades, entre elas, a dificuldade de compreender e conceituar as relações humanas que servem de analogias para nosso relacionamento com Deus. Uma ajuda considerável pode ser derivada, na minha opinião, da psicologia fenomenológica contemporânea. Através de um maior contato com a tradição, com outras áreas da teologia e com a experiência humana, todos podemos crescer naquela compreensão limitada, mas frutífera do nosso relacionamento com Deus, que é o objetivo da teologia da graça³.
Colborn diz que a teologia da graça “é fenomenológica porque tende a concentrar a atenção no que é dado na consciência da pessoa ou campo perceptual”4.
É típico das confissões de tradição Reformada enfatizar não apenas o que os cristãos acreditam, mas também a forma como os cristãos vivem, não apenas a “ortodoxia” da fé cristã, mas também a “ortopraxia” da fé cristã; não apenas a “justificação” pela graça por meio da fé, mas também a “santificação” pela graça evidenciada nas boas obras. Todas as tradições cristãs reconhecem o fato de que a fé sem obras é morta. Mas nas confissões Reformadas a “vida cristã ativa” é que recebe especial ênfase.
Assim, a tradição reformada, na “teologia da graça”, enfatiza, dentre outras coisas:
A reinvindicação da graça de Deus sobre toda a vida
A confissão da tradição Reformada enfatiza a autoridade de Deus sobre todas as áreas da vida humana: sobre as relações pessoais e familiares, sobre a organização e o governo da comunidade cristã e sobre as comunidades “seculares” sociais, econômicas e políticas. O que implica em éticas pessoais e sociais (isso por ser visto, por exemplo, na exposição detalhada e abrangente dos Dez Mandamentos no Catecismo Maior de Westminster).
O resumo dos seis mandamentos que encerram o nosso dever para com o homem, é amar o nosso próximo como a nós mesmos, e a fazer aos outros aquilo que desejamos que eles nos façam (resposta à pergunta 122).
As confissões Reformadas de diferentes períodos diferem em sua compreensão precisamente sobre o que Deus exige. Às vezes, eles têm certeza de que a vontade de Deus era idêntica aos pressupostos históricos e socialmente condicionados da Reforma.
Os cristãos, em um determinado momento e lugar, às vezes, ficam confusos com o “governo de Deus” no mundo como sendo o “governo da igreja”. Mesmo que haja diferenças e quaisquer erros que tenham cometido, um tema consistente nas confissões Reformadas de todos os períodos e lugares é a responsabilidade de cada cristão e da igreja cristã em procurar ordenar toda a vida humana de acordo com a vontade soberana de Deus que somente pode ser conhecida em Jesus Cristo por meio da Escritura. Não há espaço para a crença dos cristãos em outras tradições em que algumas áreas do indivíduo e vida social que não são reivindicadas por Deus e em que são desculpados ou proibidos de servir a Deus. Essa coisa de “sagrado x secular” é e continua sendo um câncer que conspira contra a graça de Deus no cotidiano, privatiza o sagrado no espaço do templo e conspira contra uma presença missional do povo de Deus na sociedade e mundo.
A relação entre Lei e Graça
A confissão da tradição Reformada acredita que, por causa do significado e propósito da vontade soberana de Deus, que é conhecida em Jesus Cristo e porque o pecado separa a humanidade de Deus, um do outro, de si mesmo e da criação, o domínio de Deus sobre todas as coisas no mundo deve ser entendido como um domínio gracioso exercido para o nosso bem. Deus nos dá comandos e requisitos para orientar e ajudar a realização da totalidade (plenitude) de vida em equidade, justiça, liberdade, paz, tanto individualmente como na sociedade humana.
O Catecismo de Heidelberg expressa a teologia da graça às confissões reformadas quando coloca a exposição da lei de Deus sob o título “Nossa Gratidão” (PARTE 3). As exigências de Deus são entendidas na tradição Reformada como o bom presente de Deus para ser recebido com gratidão, exercido para o bem-estar de todos os seres humanos, e obedecido na confiança que a graça de Deus nos dá a capacidade de fazer o que a lei de Deus exige. A lei, em outras palavras, faz parte do evangelho da graça salvadora, não algo contrário a ela ou um tipo de alternativa a ela.
[...] Pois Deus criou o homem de tal maneira que este pudesse cumprir a lei. O homem, porém, sob instigação do diabo e por sua própria rebeldia, privou a si mesmo e a todos os seus descendentes destes dons (resposta à pergunta 9, PARTE 1: NOSSA MISÉRIA).
Esta teologia da graça e da lei é um dos aspectos mais importantes que distingue a tradição reformada de outras tradições e teologias.
E por quê? Porque a teologia da graça e da lei…
1. Meio x Resposta: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que entendem a obediência aos mandamentos de Deus como um meio de ganhar ou cooperar com a graça salvadora de Deus e não como uma resposta agradecida à graça salvadora já administrada gratuitamente em Cristo Jesus e poderosamente efetuada em nós;
2. Propósito Negativo x Propósito Positivo: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a lei de Deus serve principalmente ao propósito negativo de expor o pecado, levando ao arrependimento e levando ao evangelho da graça salvadora de Deus, em vez do propósito positivo orientador da graça de Deus oferecida no Evangelho;
3. Liberdade Cristã x Liberdade para Obediência: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a liberdade cristã é simplesmente liberdade cristã em vez da liberdade para obediência aos mandamentos de Deus;
4. Obediência a Lei como um fim x Obediência como ato de amor e serviço: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a obediência à lei é um fim em si mesma, em vez de um ato de amor e serviço a Deus, as outras pessoas e a criação;
5. Lei como justificativa da ordem x Lei como justificativa da justiça: Finalmente, distingue os cristãos reformados de outros cristãos que usam a lei de Deus para justificar a “ordem” opressiva na sociedade em benefício de alguns, em vez da lei com o propósito de alcançar uma sociedade equitativa, justa e livre para todos.
Pode-se naturalmente encontrar no presente, bem como no passado, indivíduos, grupos e denominações inteiras de cristãos que se chamam “Reformados”, mas que ainda entendem a relação graça-lei de Deus nas formas não-Reformadas mencionadas anteriormente (itens 1 a 5).
Mas, na medida em que o fazem, pode-se questionar a intepretação utilizada da teologia da graça e lei, baseados na graciosa soberania de Deus, que é um dos elementos mais distintivos das confissões Reformadas, sendo que:
• A lei de Deus nos diz que Ele deseja santidade caracterizada pelo modo como vivemos – mas somente a graça de Deus pode proporcionar tal piedade em nossas vidas;
• A lei de Deus nos diz que Ele quer que o amor de Cristo permeie todas as nossas atitudes e relacionamentos – mas somente a graça de Deus pode desenvolver tal amor em nós e por meio de nós.
• A lei de Deus nos diz que Ele deseja que as perfeições do Pai cresçam em nós – mas somente a graça de Deus é suficiente para realizar esse processo de transformação em nós.
Uma breve síntese da relação lei–graça5:
A lei de Deus é o “que” – a graça de Deus é o “como”.
A lei de Deus revela o pecado – a graça de Deus perdoa o pecador.
A lei de Deus indica o problema do ser humano – a graça de Deus a providência da sua redenção.
A lei de Deus exige desempenho – a graça de Deus oferece provisão.
A lei de Deus é a regra e padrão – a graça de Deus é o meio.
A lei de Deus é a vara de medição espiritual que avalia vidas – a graça de Deus é o recurso nutritivo que produz a vida espiritual.
A lei de Deus nos fala do caráter de Deus – a graça de Deus reproduz tal caráter em nós.
A lei de Deus é o efeito que Deus quer ver – mas só a graça de Deus causa tal efeito em nós.
É só a graça? Sim só ela pode salvar! Imagine então o que não pode a graça de Deus fazer no cotidiano de nossas vidas. Se só a graça de Deus tem o poder de nos salvar, muito mais então tem o poder de nos transformar!
500 anos da Reforma Protestante se passaram e nós ainda continuamos e continuaremos dependentes da graça de Deus!
Notas:
* Texto compartilhado no Congresso da Miqueias Brasil, em Vitória/ES, de 26 a 29 de julho de 2017, iniciativa esta que inaugurou a Rede Miqueias Brasil.
1 MULLER, Richard. Dictionary of Latin and Greek Theological Terms: Drawn Principally from Protestant Scholastic Theology, 134.
2 Nas relações humana, o contato com a experiência.
3 COLBORN, Francis. The theology of grace: present trends and future directions. St. John"s Seminary, Camarillo (Califórnia), p. 711.
4 Idem, p. 708.
5 HOEKSTRA, Bob. Extraído de <https://www.blueletterbible.org/devotionals/dbdbg/view.cfm?Date=0119>. Acessado em 13JUN2017.
• Jorge Henrique Barro, fundador e Diretor da Faculdade Teológica Sul Americana. Assessor da Aliança Cristã Evangélica Brasileira.
Imagem: People, Anderson Monteiro.
“Sucedeu, pois, que ao fim dos quarenta dias e quarenta noites, o Senhor me deu as duas tábuas de pedra, as tábuas do pacto” (Dt 9.11)
“Porque a lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1.17)
Uma abordagem da teologia da graça, tradicional na teologia cristã desde a época de Agostinho, tem sido psicológica (o relacionamento de Deus com o ser humano), moral (o pecado afeta a totalidade da criação) e histórica (a atividade divina na história humana e em vidas humanas). Nessa linha de pensamento, o assunto é organizado de acordo com os diferentes estágios do pecado, da redenção e da graça na vida do indivíduo e na história da salvação da raça humana.
Embora a abordagem de Agostinho tenha dominado a teologia da graça na cristandade ocidental durante séculos, uma abordagem diferente surgiu no século XIII: a compreensão metafísica ou ontológica da graça. Thomas de Aquino, ao tratar sobre a graça, utilizou as categorias de “substância” e “qualidades” de Aristóteles, culminando nas chamadas “graça criada” ou “graça habitual”.
Habitus gratiae: hábito ou disposição da graça; um presente divino infundido na alma de modo a tornar-se parte da natureza humana. O habitus gratiae pode, portanto, também ser chamado de gratia creata, graça criada, distinta do poder incriado de Deus que a traz à existência, gratia increata. Além disso, de acordo com sua função, o habitus gratiae pode ser chamado de graça justificativa (gratia iustificans) ou graça santificadora (gratia sanctificans).
Este conceito, juntamente com um conceito relacionado de uma justiça infundida (iustitia infusa, qv), foi rejeitado pelos Reformadores na medida em que não pode ser correlacionado com a doutrina de uma justificativa forense (iustificatio, qv) no terreno da justiça do outro (iustitia aliena) de Cristo imputada aos crentes pela graça somente pela fé. O habitus gratiae implica uma justiça intrínseca ao cristão, ao passo que o conceito reformista de justiça imputada é extrínseco. A justiça é vista pelos reformadores e os ortodoxos como inerentes ou intrínsecos... em relação à obra do Espírito na santificação (sanctificatio, qv), mas o conceito, aqui, é expresso em termos de limpeza (renavatio, qv) em vez de disposição ou hábito infundido¹.
Calvino enfatizou a iustitia aliena, isto é, a justiça que vem de outro, que vem de fora. Para Calvino a salvação “pela fé somente” significa que a fé não efetua de si mesma a justificação. A fé é o meio pelo qual se apropria da justiça de outro (iustitia aliena), que é transferida à nós.
Tal perspectiva não só dominou as teologias de graça escolástica e neoescolástica como também permaneceu predominante mesmo nos escritores que conscientemente procuraram ir além de sua herança escolástica e moldaram até a redação de versões popularizadas da teologia da graça.
Nossa teologia da graça tendeu nos últimos anos a se tornar cada vez mais personalista, fenomenológica² e psicológica. Neste movimento foram encontradas inúmeras dificuldades, entre elas, a dificuldade de compreender e conceituar as relações humanas que servem de analogias para nosso relacionamento com Deus. Uma ajuda considerável pode ser derivada, na minha opinião, da psicologia fenomenológica contemporânea. Através de um maior contato com a tradição, com outras áreas da teologia e com a experiência humana, todos podemos crescer naquela compreensão limitada, mas frutífera do nosso relacionamento com Deus, que é o objetivo da teologia da graça³.
Colborn diz que a teologia da graça “é fenomenológica porque tende a concentrar a atenção no que é dado na consciência da pessoa ou campo perceptual”4.
É típico das confissões de tradição Reformada enfatizar não apenas o que os cristãos acreditam, mas também a forma como os cristãos vivem, não apenas a “ortodoxia” da fé cristã, mas também a “ortopraxia” da fé cristã; não apenas a “justificação” pela graça por meio da fé, mas também a “santificação” pela graça evidenciada nas boas obras. Todas as tradições cristãs reconhecem o fato de que a fé sem obras é morta. Mas nas confissões Reformadas a “vida cristã ativa” é que recebe especial ênfase.
Assim, a tradição reformada, na “teologia da graça”, enfatiza, dentre outras coisas:
A reinvindicação da graça de Deus sobre toda a vida
A confissão da tradição Reformada enfatiza a autoridade de Deus sobre todas as áreas da vida humana: sobre as relações pessoais e familiares, sobre a organização e o governo da comunidade cristã e sobre as comunidades “seculares” sociais, econômicas e políticas. O que implica em éticas pessoais e sociais (isso por ser visto, por exemplo, na exposição detalhada e abrangente dos Dez Mandamentos no Catecismo Maior de Westminster).
O resumo dos seis mandamentos que encerram o nosso dever para com o homem, é amar o nosso próximo como a nós mesmos, e a fazer aos outros aquilo que desejamos que eles nos façam (resposta à pergunta 122).
As confissões Reformadas de diferentes períodos diferem em sua compreensão precisamente sobre o que Deus exige. Às vezes, eles têm certeza de que a vontade de Deus era idêntica aos pressupostos históricos e socialmente condicionados da Reforma.
Os cristãos, em um determinado momento e lugar, às vezes, ficam confusos com o “governo de Deus” no mundo como sendo o “governo da igreja”. Mesmo que haja diferenças e quaisquer erros que tenham cometido, um tema consistente nas confissões Reformadas de todos os períodos e lugares é a responsabilidade de cada cristão e da igreja cristã em procurar ordenar toda a vida humana de acordo com a vontade soberana de Deus que somente pode ser conhecida em Jesus Cristo por meio da Escritura. Não há espaço para a crença dos cristãos em outras tradições em que algumas áreas do indivíduo e vida social que não são reivindicadas por Deus e em que são desculpados ou proibidos de servir a Deus. Essa coisa de “sagrado x secular” é e continua sendo um câncer que conspira contra a graça de Deus no cotidiano, privatiza o sagrado no espaço do templo e conspira contra uma presença missional do povo de Deus na sociedade e mundo.
A relação entre Lei e Graça
A confissão da tradição Reformada acredita que, por causa do significado e propósito da vontade soberana de Deus, que é conhecida em Jesus Cristo e porque o pecado separa a humanidade de Deus, um do outro, de si mesmo e da criação, o domínio de Deus sobre todas as coisas no mundo deve ser entendido como um domínio gracioso exercido para o nosso bem. Deus nos dá comandos e requisitos para orientar e ajudar a realização da totalidade (plenitude) de vida em equidade, justiça, liberdade, paz, tanto individualmente como na sociedade humana.
O Catecismo de Heidelberg expressa a teologia da graça às confissões reformadas quando coloca a exposição da lei de Deus sob o título “Nossa Gratidão” (PARTE 3). As exigências de Deus são entendidas na tradição Reformada como o bom presente de Deus para ser recebido com gratidão, exercido para o bem-estar de todos os seres humanos, e obedecido na confiança que a graça de Deus nos dá a capacidade de fazer o que a lei de Deus exige. A lei, em outras palavras, faz parte do evangelho da graça salvadora, não algo contrário a ela ou um tipo de alternativa a ela.
[...] Pois Deus criou o homem de tal maneira que este pudesse cumprir a lei. O homem, porém, sob instigação do diabo e por sua própria rebeldia, privou a si mesmo e a todos os seus descendentes destes dons (resposta à pergunta 9, PARTE 1: NOSSA MISÉRIA).
Esta teologia da graça e da lei é um dos aspectos mais importantes que distingue a tradição reformada de outras tradições e teologias.
E por quê? Porque a teologia da graça e da lei…
1. Meio x Resposta: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que entendem a obediência aos mandamentos de Deus como um meio de ganhar ou cooperar com a graça salvadora de Deus e não como uma resposta agradecida à graça salvadora já administrada gratuitamente em Cristo Jesus e poderosamente efetuada em nós;
2. Propósito Negativo x Propósito Positivo: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a lei de Deus serve principalmente ao propósito negativo de expor o pecado, levando ao arrependimento e levando ao evangelho da graça salvadora de Deus, em vez do propósito positivo orientador da graça de Deus oferecida no Evangelho;
3. Liberdade Cristã x Liberdade para Obediência: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a liberdade cristã é simplesmente liberdade cristã em vez da liberdade para obediência aos mandamentos de Deus;
4. Obediência a Lei como um fim x Obediência como ato de amor e serviço: Distingue os cristãos reformados de outros cristãos que acreditam que a obediência à lei é um fim em si mesma, em vez de um ato de amor e serviço a Deus, as outras pessoas e a criação;
5. Lei como justificativa da ordem x Lei como justificativa da justiça: Finalmente, distingue os cristãos reformados de outros cristãos que usam a lei de Deus para justificar a “ordem” opressiva na sociedade em benefício de alguns, em vez da lei com o propósito de alcançar uma sociedade equitativa, justa e livre para todos.
Pode-se naturalmente encontrar no presente, bem como no passado, indivíduos, grupos e denominações inteiras de cristãos que se chamam “Reformados”, mas que ainda entendem a relação graça-lei de Deus nas formas não-Reformadas mencionadas anteriormente (itens 1 a 5).
Mas, na medida em que o fazem, pode-se questionar a intepretação utilizada da teologia da graça e lei, baseados na graciosa soberania de Deus, que é um dos elementos mais distintivos das confissões Reformadas, sendo que:
• A lei de Deus nos diz que Ele deseja santidade caracterizada pelo modo como vivemos – mas somente a graça de Deus pode proporcionar tal piedade em nossas vidas;
• A lei de Deus nos diz que Ele quer que o amor de Cristo permeie todas as nossas atitudes e relacionamentos – mas somente a graça de Deus pode desenvolver tal amor em nós e por meio de nós.
• A lei de Deus nos diz que Ele deseja que as perfeições do Pai cresçam em nós – mas somente a graça de Deus é suficiente para realizar esse processo de transformação em nós.
Uma breve síntese da relação lei–graça5:
A lei de Deus é o “que” – a graça de Deus é o “como”.
A lei de Deus revela o pecado – a graça de Deus perdoa o pecador.
A lei de Deus indica o problema do ser humano – a graça de Deus a providência da sua redenção.
A lei de Deus exige desempenho – a graça de Deus oferece provisão.
A lei de Deus é a regra e padrão – a graça de Deus é o meio.
A lei de Deus é a vara de medição espiritual que avalia vidas – a graça de Deus é o recurso nutritivo que produz a vida espiritual.
A lei de Deus nos fala do caráter de Deus – a graça de Deus reproduz tal caráter em nós.
A lei de Deus é o efeito que Deus quer ver – mas só a graça de Deus causa tal efeito em nós.
É só a graça? Sim só ela pode salvar! Imagine então o que não pode a graça de Deus fazer no cotidiano de nossas vidas. Se só a graça de Deus tem o poder de nos salvar, muito mais então tem o poder de nos transformar!
500 anos da Reforma Protestante se passaram e nós ainda continuamos e continuaremos dependentes da graça de Deus!
Notas:
* Texto compartilhado no Congresso da Miqueias Brasil, em Vitória/ES, de 26 a 29 de julho de 2017, iniciativa esta que inaugurou a Rede Miqueias Brasil.
1 MULLER, Richard. Dictionary of Latin and Greek Theological Terms: Drawn Principally from Protestant Scholastic Theology, 134.
2 Nas relações humana, o contato com a experiência.
3 COLBORN, Francis. The theology of grace: present trends and future directions. St. John"s Seminary, Camarillo (Califórnia), p. 711.
4 Idem, p. 708.
5 HOEKSTRA, Bob. Extraído de <https://www.blueletterbible.org/devotionals/dbdbg/view.cfm?Date=0119>. Acessado em 13JUN2017.
• Jorge Henrique Barro, fundador e Diretor da Faculdade Teológica Sul Americana. Assessor da Aliança Cristã Evangélica Brasileira.
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