Opinião
09 de março de 2009
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O dogma do aborto e o aborto do dogma
Marcos Monteiro
A luta pela humanização se faz entre as fronteiras da ética, da moral e da lei. A grosso modo, a ética trata do bem ideal, a moral do bem real e a lei se propõe a regular o trânsito dos cidadãos e cidadãs entre o real e o ideal.
Se as fronteiras entre esses espaços não se encontram bem definidas, há uma ética de fronteira de difícil e problemática regulamentação. Uma delas é o aborto, especialmente quando se configura como dilema ético. O problema ético, a escolha entre bem e mal, tem sempre solução mais fácil. O dilema, a escolha entre bem e bem ou entre mal e mal, nos convida à humildade e à tolerância.
O bispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso, não acredita em dilemas nem na elasticidade de fronteiras. Administrando espaços religiosos acima dos espaços humanos e leis acima das leis, enviou para o inferno alguns adultos, pais e médicos que promoveram o aborto de gêmeos de uma criança de nove anos que havia sido estuprada e corria riscos por causa da precoce e agressiva gravidez.
Sem tentar questionar os documentos que autorizam o bispo a administrar as fronteiras entre céu e inferno e sem ter coragem de solicitar firma reconhecida para as leis de Deus, somente me pergunto se alguma vez passou pela cabeça do santo prelado que a sociedade estava decidindo entre dois abortos. Ou o aborto permitido pela Igreja, de uma criança de nove anos, com linguagem, história, sonhos e projetos, ou o aborto zigótico, proibido pelo dogma religioso, e que, nesse caso específico, envolve estupro e por isso conta com o apoio das leis do país.
Se as leis pecam por generalizar, embora tenham a vantagem de serem provisórias e circunstanciais, as leis de Deus absolutizam as generalizações, são permanentes e irrevogáveis. Portanto, o direito de legislar em nome de Deus é de indestrutível tirania.
Diante disso, se em tese devemos ser todos favoráveis à vida e contra o aborto, em casos particulares devemos defender o aborto como única possibilidade de sermos fiéis à vida.
No campo do simbólico, devemos continuar nossa luta contra o aborto de sonhos, o aborto da justiça e o aborto da igualdade. Porém, algumas leis favoráveis ao aborto devem ser promulgadas imediatamente. Abortar a corrupção no momento da concepção do projeto, abortar a violência no útero das relações assimétricas, abortar a intolerância no parto do dogmatismo devem fazer parte da nossa pauta cidadã.
Nesse campo, na maioria das vezes, somente o transgressor é realmente ético. Afrontar as leis dos homens e as leis de Deus em nome da vida, arriscar-se ao inferno de dom José no desejo de construir um paraíso na terra, abortar um dogmatismo destrutivo e assassino seria talvez o mais desejável projeto a ser assumido nesse mundo complexo.
Surpreendentemente, estaríamos mais próximos de Jesus de Nazaré. Aquele que, por amor ao amor, enfrentou as leis dos homens e as leis de Deus de sua época, e que, paradoxalmente, seria o atual patrono oficial e institucional do bispo de Recife e Olinda, aquele que facilmente arrisca a vida de uma criança de nove anos.
• Marcos Monteiro, autor de Um Jumentinho na Avenida, é mestre em filosofia, pastor na Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE, e na Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA, e professor no Seminário Teológico Batista do Nordeste em Feira de Santana. É vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr.
![](/image/Exclusivo/2009/marco/exc_09_03_aborto.jpg)
Se as fronteiras entre esses espaços não se encontram bem definidas, há uma ética de fronteira de difícil e problemática regulamentação. Uma delas é o aborto, especialmente quando se configura como dilema ético. O problema ético, a escolha entre bem e mal, tem sempre solução mais fácil. O dilema, a escolha entre bem e bem ou entre mal e mal, nos convida à humildade e à tolerância.
O bispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso, não acredita em dilemas nem na elasticidade de fronteiras. Administrando espaços religiosos acima dos espaços humanos e leis acima das leis, enviou para o inferno alguns adultos, pais e médicos que promoveram o aborto de gêmeos de uma criança de nove anos que havia sido estuprada e corria riscos por causa da precoce e agressiva gravidez.
Sem tentar questionar os documentos que autorizam o bispo a administrar as fronteiras entre céu e inferno e sem ter coragem de solicitar firma reconhecida para as leis de Deus, somente me pergunto se alguma vez passou pela cabeça do santo prelado que a sociedade estava decidindo entre dois abortos. Ou o aborto permitido pela Igreja, de uma criança de nove anos, com linguagem, história, sonhos e projetos, ou o aborto zigótico, proibido pelo dogma religioso, e que, nesse caso específico, envolve estupro e por isso conta com o apoio das leis do país.
Se as leis pecam por generalizar, embora tenham a vantagem de serem provisórias e circunstanciais, as leis de Deus absolutizam as generalizações, são permanentes e irrevogáveis. Portanto, o direito de legislar em nome de Deus é de indestrutível tirania.
Diante disso, se em tese devemos ser todos favoráveis à vida e contra o aborto, em casos particulares devemos defender o aborto como única possibilidade de sermos fiéis à vida.
No campo do simbólico, devemos continuar nossa luta contra o aborto de sonhos, o aborto da justiça e o aborto da igualdade. Porém, algumas leis favoráveis ao aborto devem ser promulgadas imediatamente. Abortar a corrupção no momento da concepção do projeto, abortar a violência no útero das relações assimétricas, abortar a intolerância no parto do dogmatismo devem fazer parte da nossa pauta cidadã.
Nesse campo, na maioria das vezes, somente o transgressor é realmente ético. Afrontar as leis dos homens e as leis de Deus em nome da vida, arriscar-se ao inferno de dom José no desejo de construir um paraíso na terra, abortar um dogmatismo destrutivo e assassino seria talvez o mais desejável projeto a ser assumido nesse mundo complexo.
Surpreendentemente, estaríamos mais próximos de Jesus de Nazaré. Aquele que, por amor ao amor, enfrentou as leis dos homens e as leis de Deus de sua época, e que, paradoxalmente, seria o atual patrono oficial e institucional do bispo de Recife e Olinda, aquele que facilmente arrisca a vida de uma criança de nove anos.
• Marcos Monteiro, autor de Um Jumentinho na Avenida, é mestre em filosofia, pastor na Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE, e na Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA, e professor no Seminário Teológico Batista do Nordeste em Feira de Santana. É vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr.
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