Opinião
- 11 de maio de 2020
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O dever do governo e o dever das igrejas em tempos de crise – segundo o padre Antônio Vieira
Por Paul Freston
Uma das compensações da reclusão domiciliar obrigatória é a oportunidade de ler alguns bons sermões antigos, ainda mais quando proferidos pelo “imperador da língua portuguesa” (como Fernando Pessoa a ele se referiu), o padre Antônio Vieira. E sobretudo quando o conteúdo une, de maneira genial, a exposição de textos bíblicos e conselhos para líderes governamentais e eclesiásticos. Conselhos estes que, embora endereçados naturalmente ao que estava se passando naquele ano de 1642, são de uma atualidade impressionante para o Brasil da crise do coronavírus.
No seu Sermão de Santo Antônio, às vésperas da convocação das Cortes Gerais, no auge da situação periclitante da Guerra da Restauração Portuguesa, Vieira prega sobre a frase de Cristo “vós sois o sal da terra”. O sal tem duas propriedades, ele comenta: conserva e tempera. Aí vem a frase-chave da mensagem: “Tais como isto devem ser os remédios com que se hão de conservar as repúblicas”. Ou seja, as medidas governamentais têm de fazer o necessário para conservar a nação e seus cidadãos; mas essas medidas devem ser temperadas “para não ofender o gosto”.
Vieira observa que, no relato bíblico da criação da mulher, Deus tirou a costela de Adão enquanto este dormia. Poderia ter tirado dele quando acordado, e mesmo de forma indolor; mas não o fez, para mostrar “quão dificultosamente se tira aos homens, ainda o que é para seu proveito”. Daí a lição de governança: “Com tanta suavidade [...] se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos; mas tire-se... com tal suavidade, que os homens não o sintam”. Afinal, diz Vieira, somos carne e sangue; logo, conclui, numa frase extraordinária: “Obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”.
O racional e o sensitivo; os dois devem sempre caminhar juntos. O racional tem de ser feito, porque é necessário para a “conservação da república”. Em circunstâncias corriqueiras, o racional pode até ser negligenciado por algum tempo, sem que ocorra um desastre de imediato. É como andar de bicicleta e parar de pedalar; por algum tempo, a inércia evita consequências sérias. Mas chega o momento em que, ou se pedala novamente, ou se cai. Assim são as crises: ou se pedala, ou se cai. É imprescindível “obrar o racional”.
Mas obrar sempre com respeito ao sensitivo, ao fato de sermos carne e sangue. O racional pode ser necessário... e extremamente doloroso. Ou, como diz Vieira, numa frase que parece ter sido tirada do noticiário de hoje, exceto pela elegância com que o expressa: “Tão ásperos podem ser os remédios, que seja menos feia a morte, que a saúde”!
A solução, para Vieira, não é abandonar o racional, porque este está cumprindo a primeira função do sal, a de conservar. Mas o racional deve vir acompanhado pelo tempero. Vieira diz que o próprio Cristo ensinou esta “moderação” no incidente do pagamento do tributo (Mt 17.24-27). Quando perguntaram a Pedro se Jesus pagava o tributo, e Pedro se apressou em responder que sim, “mandou Cristo a São Pedro que pagasse o tributo a César, e disse-lhe que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe acharia uma moeda de prata, com que pagasse”.
Este milagre parece supérfluo (pois, como Vieira diz, Jesus poderia ter mandado Pedro fazer uma coisa bem mais fácil, meter a mão no bolso, onde acharia milagrosamente uma moeda; ou então, que fosse pescar e pagasse o tributo com a venda dos peixes). Mas, conclui Vieira, é um tipo de meio-termo entre o milagre facilitador da mão no bolso e o não milagre da pesca vendida. “Quis o Senhor que pagasse São Pedro o tributo, e mais que lhe ficasse em casa o fruto de seu trabalho.” Ou seja, Jesus obrou o racional, mas respeitou o sensitivo. Mandou que fizesse o necessário para a conservação da república, mas que voltasse para casa com o que comer. Que perdesse a costela dormindo!
Em seguida, Vieira tem recomendações para o líder eclesiástico nesse momento de crise. Que ele “deixe de ser o que é por imunidade, e seja o que convém à necessidade comum”. Ou seja, que não insista nos privilégios. Vieira volta ao caso de Pedro e o tributo. Por que Cristo o manda pescar, já que o dinheiro para o tributo não virá da venda da pesca, mas do milagre na boca do peixe? Porque Cristo quer que Pedro pague o tributo, “mas pague como pescador, não pague como apóstolo: pague como oficial do povo, e não como ministro da Igreja”. Estamos, diz Vieira, “em tempo em que é necessário [os ministros do evangelho] cederem de sua imunidade para socorrerem a nossa necessidade”. Em seguida, dá exemplos bíblicos, tais como os pães da proposição (1Sm 21), privativos dos sacerdotes, mas que Davi e seus soldados famintos comeram, numa ação aprovada por Cristo (Mc 2.25-26).
O sermão de Vieira fala, portanto, das responsabilidades do governo e das igrejas em tempos de crise. O governo tem de agir para “conservar a república”, tem de “obrar o racional”; mas deve fazê-lo com tempero, “respeitando o sensitivo”. Esta dupla responsabilidade governamental corresponde, sem dúvida, às duas dimensões da atual crise: a da saúde, que exige a ação racional, científica, técnica; e a dos efeitos econômicos, que exige o tempero do “respeito sensitivo”. Mas a conservação sem o tempero, o racional descolado do sensitivo, produzirá o remédio áspero, que faz a morte parecer preferível à saúde. Para aqueles que já foram tantas vezes pescar, mas agora não podem, é necessário que, excepcionalmente, encontrem uma moeda de prata num lugar inesperado. O confinamento, obra racional em curso mundo afora (pois, como diz Vieira em outro sermão seu, “no juízo dos males sempre conjecturou melhor quem presumiu os maiores”), tem de vir acompanhado de um socorro de valor adequado e que efetivamente chegue. Mas não pode haver sacrifício das “obras racionais de conservação” de vidas, porque, pela falta de socorro, o povo esperneia contra o “remédio áspero” e, desavisadamente, apoia a volta precoce à vida normal. Afinal, parafraseando Cristo, “a economia foi feita para o ser humano, e não o ser humano para a economia” (Mc 2.27).
O sermão de Vieira também nos fala de como as igrejas e os líderes eclesiásticos devem agir em tempos de crise. Não devem fincar-se em imunidades, em privilégios reais ou imaginados, mas sim no que “convém à necessidade comum”. O bem comum toma precedência sobre a defesa de privilégios e liberdades. A igreja é um serviço essencial, sim, pois não se vive só de pão, e sobretudo num momento de sofrimento e morte em larga escala; mas esse serviço pode muito bem continuar, por algumas semanas, sem o culto presencial! É curioso que tantos evangélicos, que supostamente têm uma teologia não sacramental e não clerical, não consigam vislumbrar maneiras de cumprir sua missão de serviço aos seus semelhantes sem expô-los ao perigo num culto no templo. Um dia, a crise do coronavírus passará e haverá inquéritos, formais e informais, a respeito de tudo que aconteceu. E os juízos não serão complacentes com aquelas formas de religião que foram autocentradas, absortas em si mesmas, incapazes de examinar os acontecimentos por um prisma maior. O egoísmo em tempos de crise não será facilmente esquecido.
Que os conselhos de Vieira guiem nossos governantes e nossos líderes eclesiásticos.
No seu Sermão de Santo Antônio, às vésperas da convocação das Cortes Gerais, no auge da situação periclitante da Guerra da Restauração Portuguesa, Vieira prega sobre a frase de Cristo “vós sois o sal da terra”. O sal tem duas propriedades, ele comenta: conserva e tempera. Aí vem a frase-chave da mensagem: “Tais como isto devem ser os remédios com que se hão de conservar as repúblicas”. Ou seja, as medidas governamentais têm de fazer o necessário para conservar a nação e seus cidadãos; mas essas medidas devem ser temperadas “para não ofender o gosto”.
Vieira observa que, no relato bíblico da criação da mulher, Deus tirou a costela de Adão enquanto este dormia. Poderia ter tirado dele quando acordado, e mesmo de forma indolor; mas não o fez, para mostrar “quão dificultosamente se tira aos homens, ainda o que é para seu proveito”. Daí a lição de governança: “Com tanta suavidade [...] se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos; mas tire-se... com tal suavidade, que os homens não o sintam”. Afinal, diz Vieira, somos carne e sangue; logo, conclui, numa frase extraordinária: “Obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”.
O racional e o sensitivo; os dois devem sempre caminhar juntos. O racional tem de ser feito, porque é necessário para a “conservação da república”. Em circunstâncias corriqueiras, o racional pode até ser negligenciado por algum tempo, sem que ocorra um desastre de imediato. É como andar de bicicleta e parar de pedalar; por algum tempo, a inércia evita consequências sérias. Mas chega o momento em que, ou se pedala novamente, ou se cai. Assim são as crises: ou se pedala, ou se cai. É imprescindível “obrar o racional”.
Mas obrar sempre com respeito ao sensitivo, ao fato de sermos carne e sangue. O racional pode ser necessário... e extremamente doloroso. Ou, como diz Vieira, numa frase que parece ter sido tirada do noticiário de hoje, exceto pela elegância com que o expressa: “Tão ásperos podem ser os remédios, que seja menos feia a morte, que a saúde”!
A solução, para Vieira, não é abandonar o racional, porque este está cumprindo a primeira função do sal, a de conservar. Mas o racional deve vir acompanhado pelo tempero. Vieira diz que o próprio Cristo ensinou esta “moderação” no incidente do pagamento do tributo (Mt 17.24-27). Quando perguntaram a Pedro se Jesus pagava o tributo, e Pedro se apressou em responder que sim, “mandou Cristo a São Pedro que pagasse o tributo a César, e disse-lhe que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe acharia uma moeda de prata, com que pagasse”.
Este milagre parece supérfluo (pois, como Vieira diz, Jesus poderia ter mandado Pedro fazer uma coisa bem mais fácil, meter a mão no bolso, onde acharia milagrosamente uma moeda; ou então, que fosse pescar e pagasse o tributo com a venda dos peixes). Mas, conclui Vieira, é um tipo de meio-termo entre o milagre facilitador da mão no bolso e o não milagre da pesca vendida. “Quis o Senhor que pagasse São Pedro o tributo, e mais que lhe ficasse em casa o fruto de seu trabalho.” Ou seja, Jesus obrou o racional, mas respeitou o sensitivo. Mandou que fizesse o necessário para a conservação da república, mas que voltasse para casa com o que comer. Que perdesse a costela dormindo!
Em seguida, Vieira tem recomendações para o líder eclesiástico nesse momento de crise. Que ele “deixe de ser o que é por imunidade, e seja o que convém à necessidade comum”. Ou seja, que não insista nos privilégios. Vieira volta ao caso de Pedro e o tributo. Por que Cristo o manda pescar, já que o dinheiro para o tributo não virá da venda da pesca, mas do milagre na boca do peixe? Porque Cristo quer que Pedro pague o tributo, “mas pague como pescador, não pague como apóstolo: pague como oficial do povo, e não como ministro da Igreja”. Estamos, diz Vieira, “em tempo em que é necessário [os ministros do evangelho] cederem de sua imunidade para socorrerem a nossa necessidade”. Em seguida, dá exemplos bíblicos, tais como os pães da proposição (1Sm 21), privativos dos sacerdotes, mas que Davi e seus soldados famintos comeram, numa ação aprovada por Cristo (Mc 2.25-26).
O sermão de Vieira fala, portanto, das responsabilidades do governo e das igrejas em tempos de crise. O governo tem de agir para “conservar a república”, tem de “obrar o racional”; mas deve fazê-lo com tempero, “respeitando o sensitivo”. Esta dupla responsabilidade governamental corresponde, sem dúvida, às duas dimensões da atual crise: a da saúde, que exige a ação racional, científica, técnica; e a dos efeitos econômicos, que exige o tempero do “respeito sensitivo”. Mas a conservação sem o tempero, o racional descolado do sensitivo, produzirá o remédio áspero, que faz a morte parecer preferível à saúde. Para aqueles que já foram tantas vezes pescar, mas agora não podem, é necessário que, excepcionalmente, encontrem uma moeda de prata num lugar inesperado. O confinamento, obra racional em curso mundo afora (pois, como diz Vieira em outro sermão seu, “no juízo dos males sempre conjecturou melhor quem presumiu os maiores”), tem de vir acompanhado de um socorro de valor adequado e que efetivamente chegue. Mas não pode haver sacrifício das “obras racionais de conservação” de vidas, porque, pela falta de socorro, o povo esperneia contra o “remédio áspero” e, desavisadamente, apoia a volta precoce à vida normal. Afinal, parafraseando Cristo, “a economia foi feita para o ser humano, e não o ser humano para a economia” (Mc 2.27).
O sermão de Vieira também nos fala de como as igrejas e os líderes eclesiásticos devem agir em tempos de crise. Não devem fincar-se em imunidades, em privilégios reais ou imaginados, mas sim no que “convém à necessidade comum”. O bem comum toma precedência sobre a defesa de privilégios e liberdades. A igreja é um serviço essencial, sim, pois não se vive só de pão, e sobretudo num momento de sofrimento e morte em larga escala; mas esse serviço pode muito bem continuar, por algumas semanas, sem o culto presencial! É curioso que tantos evangélicos, que supostamente têm uma teologia não sacramental e não clerical, não consigam vislumbrar maneiras de cumprir sua missão de serviço aos seus semelhantes sem expô-los ao perigo num culto no templo. Um dia, a crise do coronavírus passará e haverá inquéritos, formais e informais, a respeito de tudo que aconteceu. E os juízos não serão complacentes com aquelas formas de religião que foram autocentradas, absortas em si mesmas, incapazes de examinar os acontecimentos por um prisma maior. O egoísmo em tempos de crise não será facilmente esquecido.
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Imagem: Santuário da Igreja Dom Bosco, em Brasília, DF, com fotos dos fiéis nos bancos, durante o isolamento social devido à Covid-19
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Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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