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Opinião

Libertos para viver em dependência e interdependência

Dependência - uma das oito características do discipulado cristão

Por Karen Bomilcar
 
Em uma sociedade que está constantemente nos apontando caminhos para a completa independência e apontando como sinal de fraqueza ou fracasso o caminho da dependência, da interdependência e do olhar para o outro, a mensagem da Palavra de Deus permanece nos sinalizando outros marcos de referência. John Stott, em seu livro O Discípulo Radical, enumera oito características desta jornada de discipulado, dentre elas, a dependência. 
 
A inclinação do coração humano na direção da independência é tema que perpassa nossos corações desde a relação de Adão e Eva com Deus em Gênesis e se repete nos corações humanos em todas as gerações. O pecado como o desejo de independência nos desumaniza. O desejo de seguir o próprio coração sem interferência de outras pessoas, de apoiar-se no próprio entendimento, de esconder suas fragilidades, dentre tantas outras formas. Uma das sequelas desta inclinação e distanciamento de Deus é nossa resistência à oração que tem a ver também com essa dificuldade em considerar a dependência de Deus e a vinculação de amizade com ele, o reconhecimento de que sozinhos não podemos caminhar. 
 
Reconhecer nossa dependência é sinal de profundidade e amor na relação com Deus, sinal de maturidade relacional. É algo que precisamos nutrir diariamente em nossa relação com Deus e com os outros. Não se trata de um processo de infantilização no qual não nos responsabilizamos por nossos atos ou não buscamos autonomia no sentido de cuidarmos daquilo que nos foi confiado.
 
Trata-se do reconhecimento de que não podemos fazer isto sozinhos, de que Deus sustenta toda a Criação, nossas relações, nossa vocação etc. A dependência neste sentido então, como pontuada por Stott, é uma característica fundamental da vida cristã. Reconhecer nossa necessidade vital de relação com Deus e uns com os outros demonstra que conseguimos compreender tanto as possibilidades quanto as limitações, significa que compreendemos que a Graça de Deus é o que nos possibilita viver, criar, servir etc. E que nesta proposta de vida em abundância, é necessário caminharmos acompanhados de nossos irmãos e irmãs que também foram agraciados com dons, talentos e até mesmo fragilidades que permeiam nossa vida e que tocadas pelo Espírito Santo podem ser transformadas.
 
Não é simples viver nesta dependência. Há muitas forças contrárias a este processo, sejam elas internas ou externas. Por vezes só nos reconheceremos dependentes quando algum sofrimento ou alguma situação que parece estar além de nossa possibilidade de resolução se apresenta. Como exemplificado por Stott, uma situação de adoecimento físico o colocou em contato mais próximo com esta experiência, lembrando-nos de que chegamos à vida dependentes e muitos de nós sairemos dela dependentes do cuidado de outros de forma concreta.
 
Deus nos ensina que nossa dignidade não está ligada à nossa capacidade de autonomia, produtividade, competição. Nossa dignidade nos foi doada por Deus, como filhos amados, criados para amar e servir, nos relacionarmos de forma íntima com o Criador e uns com os outros. Neste sentido, nossa dependência é um caminho de libertação. Libertação para vivermos o que Deus nos criou para ser, para nos relacionarmos em amor, amizade e serviço, certos de que no compartilhar de nossas fragilidades seremos transformados cada vez mais à imagem do Pai, por ele que nos sustenta em tudo. Assim podemos viver de forma sábia em meio às turbulências da vida. Deus escolheu viver conosco. Presente e presença maior não há. Que possamos ocupar nosso lugar de criaturas, como filhos amados, pessoas em relação, de dependência e interdependência. Que nos momentos de vulnerabilidade nosso caminho não seja o de fuga e isolamento por mais que nosso coração se incline nestas direções, mas sim um passo de fé na direção de Deus e do outro, buscando colos acolhedores e companheiros de caminhada, para nos tornarmos cada vez mais humanos e para que vejam em nós a luz de um Pai que desejou viver em comunhão, comunidade, um Pai amoroso que nos ama, nos guia e nos sustenta em todo o tempo.

• Karen Bomilcar trabalha como psicóloga clínica hospitalar em São Paulo, SP. É mestre em teologia e estudos interdisciplinares – Regent College/UBC (Canadá).

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