Opinião
- 29 de julho de 2015
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John Stott: apenas um pastor
SEMANA JOHN STOTT
Escrevo este texto sobre John Stott para recordar o quarto ano de seu falecimento. Dada a sua importância para o cristianismo no século XX, muito sobre ele tem sido escrito, mas quero registrar, nestas poucas linhas, algumas das coisas que pude aprender na convivência com “tio João” ou “uncle John” – o modo como seus ex-alunos se referem a ele até hoje.
Fim de tarde do dia 27 de Julho de 2011. Eu jantava com um grupo de amigos em Cracóvia, Polônia, na Assembleia Mundial da IFES, ministério com o qual “uncle John” tinha vínculos profundos. Vínculos estabelecidos tanto por seu passado como estudante na Universidade de Cambridge (sendo parte da UCCF), quanto depois, devido a sua dinâmica ministerial, como conferencista internacional, e também por meio de sua vasta produção literária, que o levou a ser traduzido em muitos idiomas.
Perto das 18 horas, Jonathan Lamb recebe uma chamada telefônica e seu semblante muda. Enquanto ouve atentamente olha para nós em silêncio. No fim da chamada ele nos diz: “Uncle John acaba de ir ao encontro do nosso Senhor! Nesta manhã ele pediu para ouvir a obra de Handel, 'O Messias', e agora, no fim da tarde, foi ao encontro do Messias!”.
Esta notícia provocou uma completa alteração na programação da conferência naquela noite. Éramos aproximadamente 600 pessoas, representantes de cerca de 170 países. Todos nós, de alguma forma, havíamos sido tocados e influenciados pelo ministério de “uncle John”. Fizemos, assim, o primeiro culto público de ação de graças pela vida de alguém que marcou e segue marcando milhares de pessoas com seu ministério.
Ele mesmo, certa vez, numa conversa pessoal, o resumiu da seguinte forma: “Fui convidado a seguir os estudos e a me tornar um acadêmico; depois me convidaram para a carreira diplomática; chegaram a me encorajar a me tornar um bispo da igreja da Inglaterra, mas a única coisa que eu desejei foi ser apenas um pastor, que prega de forma responsável a Palavra de Deus".
Eu o conheci ainda adolescente, primeiramente pelos livros. A porta de entrada foi “Crer é também pensar”, seguido por “Cristianismo Básico”. Desde então, a disciplina de lê-lo com regularidade me acompanha até hoje.
Em 1989, em sua segunda visita ao Brasil, nos encontramos pessoalmente. Conversávamos por meio de um tradutor e ele, muito simpático, fez várias perguntas sobre o meu ministério e sobre como havia me preparado para o mesmo. Depois de me ouvir, disse o seguinte: “Ziel, você é novo para o peso de suas responsabilidades. Você deve se preparar melhor para o seu chamado. Venha passar um tempo comigo na Inglaterra, creio que este deva ser o seu próximo passo”. Entre assustado, surpreso e agradecido, acatei a orientação e, assim, no começo de 1991, parti com a família para esta experiência que se tornou um divisor de águas na minha vida pessoal e ministerial.
Como estudante no London Institute for Contemporary Christianity, o contato mais próximo com o mestre revelou novas facetas, muito além do brilhantismo de suas exposições: o seu cuidado com cada aluno deixava marcas ainda mais profundas em nós. Certo dia, eu estava sentado num canto isolado e ele se aproximou e perguntou: “Ziel, tenho notado você mais calado nas aulas, está tudo bem?” Respondi que sim, que estava apenas em silêncio tentando absorver tudo o que era ensinado. Ele então me respondeu: "Irmão, precisamos de sua participação. No seu país, o crescimento da igreja evangélica é um caso a ser estudado com atenção. Precisamos do seu aporte nas aulas!”. Agradeci o interesse e o cuidado e prometi contribuir de maneira mais intencional.
Um momento especial deste cuidado com os alunos se notava já no primeiro dia de aula. Ao chegar à escola, éramos recebidos por uma senhora sorridente, que imediatamente nos oferecia uma xícara de chá e, nos chamando pelo nome, fazia perguntas que revelavam um conhecimento prévio sobre cada um. Era a senhora Francis Whitehead, secretária pessoal do “uncle John”. Juntos eles preparavam nossa chegada, em oração, com uma preocupação em cada detalhe.
Outro momento especial era o convite que “uncle John” nos fazia para jantarmos em sua casa, com nossas famílias. Ele dividia a turma em grupos e nos convidava para uma noite especial. Além do saboroso jantar, ele nos compartilhava sua dinâmica de estudo pessoal das Escrituras e nos mostrava slides de pássaros, fotos que ele fazia em suas viagens, como um ornitologista de primeira classe (uma paixão que aprendeu com seu pai). Este contato pessoal nos permitiu aprender detalhes de seu compromisso com um estilo de vida muito simples, manifesto na sua pequena residência, na sua forma de consumir e de se relacionar com as pessoas e coisas.
Depois deste ano juntos, ele manteve o hábito de, pelo menos duas vezes por ano, nos enviar uma carta circular com suas notícias. Ele acrescentava algumas linhas escritas, de próprio punho, perguntando sobre nossas famílias, compartilhando algum interesse comum ou perguntando algo sobre nós e nossos ministérios. Ele conhecia bem o poder do discipulado por meio de cartas. Nos seus primeiros cinco anos de convertido, o pastor que lhe apresentou o Evangelho, Rev. Erick Nasch, escreveu para ele, sem nunca falhar, uma carta pessoal por semana, e por meio delas o foi discipulando.
Voltamos a nos encontrar algumas vezes, por conta das dinâmicas e oportunidades do ministério estudantil, mas um encontro foi super especial. No dia 4 de Novembro de 1999 ele enviou uma carta a um grupo de amigos e ex-alunos para um momento singular. No dia 20 daquele mesmo mês e ano se realizaria um encontro para discutir o futuro do Langham Ministries. No dia do encontro, de forma solene, “uncle John” iniciou a reunião afirmando que o fim de seu ministério e de sua vida se aproximavam e que ele gostaria que nós o ajudássemos a discernir que projetos ministeriais, que ele havia iniciado, deveriam continuar após sua morte.
Ali estávamos nós: um grupo de pessoas, de diferentes países, ajudando àquele que era nossa referência a avaliar e considerar o que deveria seguir ou parar após sua morte. Esta experiência modelou de forma significativa a minha compreensão sobre o exercício de liderança e de como se antecipa às transições, ao invés de deixá-las ocorrer no meio de circunstâncias não adequadas. Ao longo daqueles dias falamos sobre os seminários de formação de pregadores (Preaching Seminars), sobre literatura, sobre o programa de bolsas de estudo, e sobre a própria estrutura do Langham Ministries. Os detalhes deste encontro estão bem registrados no segundo volume de sua biografia, escrita por seu amigo Timothy Dudlley–Smith, “A Global Ministry: John Stott, the later years” (IVP-Press). Contudo, a marca mais profunda deste encontro foi ver com que responsabilidade ele pensou cada etapa de sua vida ministerial e de como ele preparou o caminho para a sua ausência. Aquele que teve por hábito apresentar seus textos antes de serem publicados para a revisão e opinião de amigos próximos, também colocou sob tela de juízo todas suas iniciativas ministeriais.
Meu encontro mais “constrangedor” com ele posso descrever em poucas palavras. Estávamos em um mesmo evento e, quando ele me viu, me saudou como de costume. Ao se aproximar, me disse: "acho que minha confiança em você vai diminuir”. Eu fiquei surpreso e assustado com a reação dele. Ao perguntar a razão, ele me respondeu: “vejo que você não tem cuidado de sua saúde”, e completou: “se você descuida assim de sua saúde, como posso crer que você irá cuidar de seu ministério?”. Constrangido, ouvi a repreensão e prometi a ele uma mudança de hábitos. Cumpri com o prometido e até hoje me esforço para manter minha promessa.
Teria ainda outras boas histórias para contar, mas deixarei para outra oportunidade. Relatei aqui aspectos que nos revelam que nossa humanidade não é obstáculo para a missão que recebemos do Senhor, muito pelo contrário! O autor, profícuo, magistral, habituado aos grandes e importantes encontros decidiu, de forma singular, ser apenas um pastor que pregasse a Palavra, conhecido e amado por seus alunos como nosso querido “uncle John”, nosso amado tio João.
*Publicado originalmente no site da Aliança Bíblica Universitária (ABU).
• Ziel Machado é pastor da Igreja Metodista Livre da Saúde em São Paulo. Por mais de 30 anos Ziel serviu a ABUB e a IFES em diferentes funções.
Foto: Kieran Dodds. Used by Permission of Kieran Dodds
Leia também:
Sou muito agradecido a Deus por John Stott [Elben César]
John Stott, uma carta de boas notícias [Robinson Cavalcanti]
A Bíblia toda, o ano todo
Para entender a Bíblia
Por que sou cristão
Escrevo este texto sobre John Stott para recordar o quarto ano de seu falecimento. Dada a sua importância para o cristianismo no século XX, muito sobre ele tem sido escrito, mas quero registrar, nestas poucas linhas, algumas das coisas que pude aprender na convivência com “tio João” ou “uncle John” – o modo como seus ex-alunos se referem a ele até hoje.
Fim de tarde do dia 27 de Julho de 2011. Eu jantava com um grupo de amigos em Cracóvia, Polônia, na Assembleia Mundial da IFES, ministério com o qual “uncle John” tinha vínculos profundos. Vínculos estabelecidos tanto por seu passado como estudante na Universidade de Cambridge (sendo parte da UCCF), quanto depois, devido a sua dinâmica ministerial, como conferencista internacional, e também por meio de sua vasta produção literária, que o levou a ser traduzido em muitos idiomas.
Perto das 18 horas, Jonathan Lamb recebe uma chamada telefônica e seu semblante muda. Enquanto ouve atentamente olha para nós em silêncio. No fim da chamada ele nos diz: “Uncle John acaba de ir ao encontro do nosso Senhor! Nesta manhã ele pediu para ouvir a obra de Handel, 'O Messias', e agora, no fim da tarde, foi ao encontro do Messias!”.
Esta notícia provocou uma completa alteração na programação da conferência naquela noite. Éramos aproximadamente 600 pessoas, representantes de cerca de 170 países. Todos nós, de alguma forma, havíamos sido tocados e influenciados pelo ministério de “uncle John”. Fizemos, assim, o primeiro culto público de ação de graças pela vida de alguém que marcou e segue marcando milhares de pessoas com seu ministério.
Ele mesmo, certa vez, numa conversa pessoal, o resumiu da seguinte forma: “Fui convidado a seguir os estudos e a me tornar um acadêmico; depois me convidaram para a carreira diplomática; chegaram a me encorajar a me tornar um bispo da igreja da Inglaterra, mas a única coisa que eu desejei foi ser apenas um pastor, que prega de forma responsável a Palavra de Deus".
Eu o conheci ainda adolescente, primeiramente pelos livros. A porta de entrada foi “Crer é também pensar”, seguido por “Cristianismo Básico”. Desde então, a disciplina de lê-lo com regularidade me acompanha até hoje.
Em 1989, em sua segunda visita ao Brasil, nos encontramos pessoalmente. Conversávamos por meio de um tradutor e ele, muito simpático, fez várias perguntas sobre o meu ministério e sobre como havia me preparado para o mesmo. Depois de me ouvir, disse o seguinte: “Ziel, você é novo para o peso de suas responsabilidades. Você deve se preparar melhor para o seu chamado. Venha passar um tempo comigo na Inglaterra, creio que este deva ser o seu próximo passo”. Entre assustado, surpreso e agradecido, acatei a orientação e, assim, no começo de 1991, parti com a família para esta experiência que se tornou um divisor de águas na minha vida pessoal e ministerial.
Como estudante no London Institute for Contemporary Christianity, o contato mais próximo com o mestre revelou novas facetas, muito além do brilhantismo de suas exposições: o seu cuidado com cada aluno deixava marcas ainda mais profundas em nós. Certo dia, eu estava sentado num canto isolado e ele se aproximou e perguntou: “Ziel, tenho notado você mais calado nas aulas, está tudo bem?” Respondi que sim, que estava apenas em silêncio tentando absorver tudo o que era ensinado. Ele então me respondeu: "Irmão, precisamos de sua participação. No seu país, o crescimento da igreja evangélica é um caso a ser estudado com atenção. Precisamos do seu aporte nas aulas!”. Agradeci o interesse e o cuidado e prometi contribuir de maneira mais intencional.
Um momento especial deste cuidado com os alunos se notava já no primeiro dia de aula. Ao chegar à escola, éramos recebidos por uma senhora sorridente, que imediatamente nos oferecia uma xícara de chá e, nos chamando pelo nome, fazia perguntas que revelavam um conhecimento prévio sobre cada um. Era a senhora Francis Whitehead, secretária pessoal do “uncle John”. Juntos eles preparavam nossa chegada, em oração, com uma preocupação em cada detalhe.
Outro momento especial era o convite que “uncle John” nos fazia para jantarmos em sua casa, com nossas famílias. Ele dividia a turma em grupos e nos convidava para uma noite especial. Além do saboroso jantar, ele nos compartilhava sua dinâmica de estudo pessoal das Escrituras e nos mostrava slides de pássaros, fotos que ele fazia em suas viagens, como um ornitologista de primeira classe (uma paixão que aprendeu com seu pai). Este contato pessoal nos permitiu aprender detalhes de seu compromisso com um estilo de vida muito simples, manifesto na sua pequena residência, na sua forma de consumir e de se relacionar com as pessoas e coisas.
Depois deste ano juntos, ele manteve o hábito de, pelo menos duas vezes por ano, nos enviar uma carta circular com suas notícias. Ele acrescentava algumas linhas escritas, de próprio punho, perguntando sobre nossas famílias, compartilhando algum interesse comum ou perguntando algo sobre nós e nossos ministérios. Ele conhecia bem o poder do discipulado por meio de cartas. Nos seus primeiros cinco anos de convertido, o pastor que lhe apresentou o Evangelho, Rev. Erick Nasch, escreveu para ele, sem nunca falhar, uma carta pessoal por semana, e por meio delas o foi discipulando.
Voltamos a nos encontrar algumas vezes, por conta das dinâmicas e oportunidades do ministério estudantil, mas um encontro foi super especial. No dia 4 de Novembro de 1999 ele enviou uma carta a um grupo de amigos e ex-alunos para um momento singular. No dia 20 daquele mesmo mês e ano se realizaria um encontro para discutir o futuro do Langham Ministries. No dia do encontro, de forma solene, “uncle John” iniciou a reunião afirmando que o fim de seu ministério e de sua vida se aproximavam e que ele gostaria que nós o ajudássemos a discernir que projetos ministeriais, que ele havia iniciado, deveriam continuar após sua morte.
Ali estávamos nós: um grupo de pessoas, de diferentes países, ajudando àquele que era nossa referência a avaliar e considerar o que deveria seguir ou parar após sua morte. Esta experiência modelou de forma significativa a minha compreensão sobre o exercício de liderança e de como se antecipa às transições, ao invés de deixá-las ocorrer no meio de circunstâncias não adequadas. Ao longo daqueles dias falamos sobre os seminários de formação de pregadores (Preaching Seminars), sobre literatura, sobre o programa de bolsas de estudo, e sobre a própria estrutura do Langham Ministries. Os detalhes deste encontro estão bem registrados no segundo volume de sua biografia, escrita por seu amigo Timothy Dudlley–Smith, “A Global Ministry: John Stott, the later years” (IVP-Press). Contudo, a marca mais profunda deste encontro foi ver com que responsabilidade ele pensou cada etapa de sua vida ministerial e de como ele preparou o caminho para a sua ausência. Aquele que teve por hábito apresentar seus textos antes de serem publicados para a revisão e opinião de amigos próximos, também colocou sob tela de juízo todas suas iniciativas ministeriais.
Meu encontro mais “constrangedor” com ele posso descrever em poucas palavras. Estávamos em um mesmo evento e, quando ele me viu, me saudou como de costume. Ao se aproximar, me disse: "acho que minha confiança em você vai diminuir”. Eu fiquei surpreso e assustado com a reação dele. Ao perguntar a razão, ele me respondeu: “vejo que você não tem cuidado de sua saúde”, e completou: “se você descuida assim de sua saúde, como posso crer que você irá cuidar de seu ministério?”. Constrangido, ouvi a repreensão e prometi a ele uma mudança de hábitos. Cumpri com o prometido e até hoje me esforço para manter minha promessa.
Teria ainda outras boas histórias para contar, mas deixarei para outra oportunidade. Relatei aqui aspectos que nos revelam que nossa humanidade não é obstáculo para a missão que recebemos do Senhor, muito pelo contrário! O autor, profícuo, magistral, habituado aos grandes e importantes encontros decidiu, de forma singular, ser apenas um pastor que pregasse a Palavra, conhecido e amado por seus alunos como nosso querido “uncle John”, nosso amado tio João.
*Publicado originalmente no site da Aliança Bíblica Universitária (ABU).
• Ziel Machado é pastor da Igreja Metodista Livre da Saúde em São Paulo. Por mais de 30 anos Ziel serviu a ABUB e a IFES em diferentes funções.
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Sou muito agradecido a Deus por John Stott [Elben César]
John Stott, uma carta de boas notícias [Robinson Cavalcanti]
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