Opinião
- 02 de fevereiro de 2021
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Inclusão social – o que a teologia diz
Por Lourenço Stelio Rega
O tema da inclusão social faz parte da agenda de discussões em diversos setores da sociedade. É um tema amplo e abrange diversos aspectos. A essência do tema nos aponta para a igualdade de direitos e tratamento a todas as pessoas, independentemente de sua condição.
Como resultado, ao longo do tempo, na legislação brasileira tem surgido diversos códigos legais, em geral chamados de Estatuto assegurando não apenas direitos de igualdade, mas também promovendo a valorização das pessoas seja qual for seu estado e condição. Assim temos:
- Estatuto da criança e do adolescente (ECA)
- Estatuto do idoso
- Estatuto da pessoa com deficiência
A história é repleta de segregações e marginalizações a depender de diversos fatores, tais como: cor de pele; etnia; sexo; família; classe social; condição intelectual, financeiro-patrimonial, física; estado de saúde, especialmente mental etc.
Como se pode observar a amplitude do tema requer seu tratamento por meio de diversas áreas de atuação, inclusive no campo da Teologia. Sendo nosso ponto de partida a visão judaico-cristã, iremos seguir este caminho em busca dos fundamentos para o tratamento do tema.
Temos de começar do começo, isto é, da narrativa da Criação.
Estudiosos da literatura hebraica e bíblica demonstram que a narrativa da criação foi construída em blocos. Assim, no primeiro versículo (Gn 1.1) temos a narrativa geral. Nos versículos seguintes (Gn 1.2-2.4), a atenção da narrativa se estende para o detalhamento mais específico de como foi a criação, suas fases etc. Temos em seguida, (Gn 2.5-25), o foco na criação e formação do gênero (ser) humano.
Em Gênesis 1.26, 27 temos a informação de que Deus fez o ser humano e lhe deu suas primeiras tarefas. Mais ainda, o fez à sua imagem e semelhança. Nas discussões teológicas esta expressão - imagem e semelhança - não se refere ao aspecto tangível e físico, pois Deus é Espírito (João 4.24 etc), mas aos seus atributos intrínsecos, tais como o volitivo. Mas o fato que se pode destacar dentro de nosso tema é que a criação começa com a diversidade e inclusão - “Criou Deus o ser humano (hebr: Adam) à sua imagem... homem e mulher os criou” (Gn 1.27). Os dois foram criados à mesma imagem do Criador, não apenas um deles. Também aos dois, em conjunto, foi dada a mesma missão em sua trajetória de vida, não primeiro a um e depois ao outro em subserviência.
Na terceira fase da narrativa da criação temos mais um fato surpreendente dentro de nosso tema, quando, depois do término de seis dias em que tudo foi tido por Deus como bom, não foi bom o gênero humano ser composto de apenas um sexo – o masculino (Gn 2.18). O texto nem sempre é traduzido do hebraico com toda exatidão e profundidade.
Em Gênesis 2.18 temos nas traduções em geral “...não é bom que o homem (adam, no hebraico) viva só; far-lhe-ei uma auxiliadora (hebr: ezer) que lhe seja idônea (hebr: kenegdo)”, ideia repetida no versículo 20. O texto original hebraico é revelador, pois a palavra hebraica que traduzimos por “auxiliadora” (que, no português, dá a ideia de hierarquia) é “ezer” que significa ajuda, socorro e também é utilizada para descrever Deus como nosso socorro. Veja, por exemplo, nos Salmos 20.2; 121.1,2; 124.8. De modo que “ezer” não tem conotação hierárquica, mas em socorro, trazer algo que falta. Então, este texto não está colocando a mulher numa posição hierárquica inferior ao homem antes da queda, mas no papel de alguém que veio a ser um socorro ao homem (adam) para que ele não ficasse sozinho, trazer o que faltava.
Ainda mais, a palavra hebraica “kenegdo” (neged) que é traduzida por “idônea” (“que lhe fosse idônea”), significa estar diante de, dando a ideia de que a mulher foi colocada diante do homem (hebr: adam), não abaixo, nem ao lado do macho.
O que podemos aprender com tudo isso é que a mulher foi formada não para completar o homem macho simplesmente, mas para completar o que faltava para a humanidade ser humanidade – composta por macho e fêmea. Veja o paralelo que citamos sobre a imagem de Deus no homem (adam) – macho e fêmea (Gn 1.27).
Além disso, kenegdo (neged) dá a ideia de que a mulher e o homem estariam diante um do outro e não um sobre o outro e, sendo uma só carne (Gn 2.24), viveriam colegiadamente, isto é, tomariam decisões sobre a vida em conjunto, num ambiente de diálogo face-a-face. O senso da hierarquia e subjugação viria depois com a queda (Gn 3.16) de modo que podemos concluir que a liderança hierárquica não estava presente na criação, mas depois da rebeldia do ser humano contra Deus. Antes da queda os dois – macho e fêmea – andariam juntos (uma só carne), face-a-face e dominariam juntos a natureza. Depois da queda o macho é colocado sobre a mulher para lhe comandar, como consequência da queda.
Resumindo, na narrativa da criação temos a humanidade como composta de macho e fêmea, portanto, heterossexual. Tanto o homem, quanto a mulher possuíam a imagem de Deus, foram criados para viverem e decidirem colegiadamente, para gerenciarem juntos a natureza e os fenômenos da natureza. Com a queda inicia um processo de ruptura com o plano original de Deus e o domínio do homem sobre a mulher se instala. Podemos entender que após a queda inicia o processo de exclusão social, de segregação, de subjugação, levando o ser humano em trajetória diametralmente oposta ao Plano da Criação.
Em Gênesis 3.15, logo após a rebeldia do ser humano contra Deus, temos a providência divina para a restauração do Plano da Criação, com o que chamamos na Teologia de “protoevangelho”, com a promessa de um restaurador das relações do ser humano com Deus. Assim surge o Plano da Redenção, que é detalhado no Novo Testamento com a encarnação de Deus por meio de seu filho Jesus Cristo.
Com o passar do tempo a construção cultural teológica foi priorizando o Plano da Redenção sobre o Plano da Criação e o projetando escatologicamente para o final dos tempos, de modo que diversos temas importantes sobre a vida humana acabaram deixando de ser priorizados ou lançados em uma nota de rodapé das preocupações necessárias da igreja como um todo. É o que podemos chamar de salvacionismo em que o Plano da Redenção, a salvação da pessoa se tornou central no lugar do Deus da criação e seu Plano original. Dizemos que a Soteriologia (parte da Teologia que estuda a doutrina da salvação) se tornou a teologia primeira, em vez de ser Deus (Teologia própria) a teologia primeira. Humanizamos os interesses da Teologia com o soteriocentrismo.
Como Jesus, quando discutiu sobre o divórcio, que remeteu a discussão para o início de tudo (Mateus 19.4; Marcos 10.6), necessitamos sempre voltar ao Plano da Criação e ver os “arquétipos” de Deus para a vida humana em sua trajetória histórica, pois isso indicará a essência de nossa natureza e as finalidades para as quais existimos.
Assim, nascemos para viver juntos, para conviver em ambiente de igualdade, de acolhimento, em que a força matriz e impulsionadora é o amor, que, aliás, é a primeira característica do fruto do Espírito (Gálatas 5.22,23) que aponta para as principais virtudes de um cristão.
O texto do Evangelho expresso no Novo Testamento é repleto de indicadores da igualdade humana, trazendo de volta o Plano da Criação, de modo que, à luz da visão cristã, não poderia haver (Gálatas 3.28):
- nem judeu, nem grego (etnia)
- nem escravo, nem liberto (condição econômica, intelectual, social)
- nem homem, nem mulher (condição de sexo, de diferença de natureza intrínseca)
Claro que o Novo Testamento ainda manteve algumas dependências culturais com o objetivo de que o Evangelho pudesse ser aceito naquele ambiente cultural. Daí entendermos que Paulo orienta Filemon a cuidar de seu escravo Onésimo com amor, mas sem romper com a cultura da escravidão presente naquela época deixando de lhe aconselhar a alforria. O mesmo acontece com a criança e com a mulher, que naquele ambiente nem sequer eram contados e nem poderiam assumir a liderança sobre o homem, não podendo assumir qualquer liderança na igreja, pois isto provocaria, naquele momento, a rejeição cultural do Evangelho. Esse caminho adotado por Paulo seria como que orientação provisória e temporal para que o Evangelho pudesse avançar e trazer de volta as pessoas para o Plano da Criação por meio da rendição aos pés do Mestre.
Mesmo assim a igreja primitiva ia avançando em sua influência no mundo promovendo o seu “revolucionamento” (veja Atos 17.6) e, neste caso, vamos lembrar que os povos daquela época e ambiente eram, muitas vezes, nômades e moravam em tendas e iam por toda parte vivendo e trabalhando. Os que haviam se convertido ao Evangelho de Jesus Cristo seguiam em sua vida, não apenas pregando o Evangelho, mas vivendo-o com toda intensidade a ponto de influenciar o ambiente pelo qual passavam com os ideais e valores cristãos.
O que seria o mundo hoje se cada cristão, se cada igreja local, se cada denominação, promovesse a volta ao Plano da Criação estimulando a igualdade humana, dando apoio e suporte a todos para que pudessem viver em amor e harmonia, para que governantes pudessem legislar e dirigir a Nação neste mesmo sentido?
O Plano da Criação tem as características matriciais para a unidade da raça humana independentemente de sua condição e estado, tem até o Plano para a sua redenção. Como cristãos, temos o papel principal deste projeto de Deus e, então, como superar os paradigmas culturais que ainda podem estar nos detendo de “revolucionar” o mundo e a vida fora do templo, do domingo, do púlpito, além da atuação clerical, da filosofia fabril funcional (pragmatismo estruturante e institucional), que podem ser instrumentos, mas têm se tornado finalidade ao longo do tempo?
• Lourenço Stelio Rega é teólogo, eticista, pós-graduado em Análise de Sistemas Computacionais. Doutor em ciências da religião, mestre em educação e teologia e membro da Sociedade Brasileira de Bioética.
Texto publicado originalmente na revista Literal, de dezembro de 2020. Reproduzido com permissão.
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