Opinião
- 27 de agosto de 2024
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Homens administram, mulheres “aquecem a cama”: Os erros de uma tradução descontextualizada
Estudos de antropologia bíblica são relevantes para resgatar a voz silenciada de Abisague, Bateseba, Madalena e tantas outras mulheres
Por Lidice Meyer Pinto Ribeiro
Não foi uma única vez que uma tradução tendenciosa trouxe prejuízos para a compreensão do papel das mulheres na Bíblia. Somada a leitura desatenta e a representações artísticas equivocadas, a tradução para o português de textos tanto do Antigo como o do Novo Testamento vem perpetuando uma tradição misógina sobre as mulheres bíblicas.
Foi assim com Madalena, que de testemunha principal da ressurreição de Jesus passou para a memória popular como uma prostituta arrependida, apesar de em nenhuma parte da Bíblia ela ser caracterizada como uma prostituta. Foi assim com Bateseba, que de mulher violentada sexualmente pelo poder abusivo e cobiça de um rei foi transformada pelas novelas e filmes em sedutora despudorada. A mesma tradição de desvalorização do protagonismo feminino pode ser vista na história de outra mulher da corte real de Davi: Abisague.
Sua história está registrada em 1 Reis 1-2. Tradicionalmente Abisague é vista como uma bela jovem trazida para “aquecer a cama” de um rei Davi velho e decrépito. Apesar da aparente conotação sexual da história, o texto ressalta que “o rei não a possuiu” (1 Rs 1.4). Mas a Antropologia Bíblica revela que Abisague era muito mais que uma concubina real responsável por aquecer o rei em seus últimos dias de vida.
O termo em hebraico encontrado em 1 Reis 1.2,4 – sokenet - traduzido nos dois versículos como “cuidado” acaba por gerar em nossas mentes a imagem de uma jovem cuidadora de idosos que exerce também o papel de concubina. É curioso, porém, que quando o mesmo termo ocorre no gênero masculino - soken - como em Isaías 22.15, os tradutores optem por usar “administrador do palácio real” para sua tradução.
Quando nos voltamos para as culturas semíticas que conviveram com o antigo Israel bíblico, descobrimos que a existência de tanto homens como mulheres atuando como administradores nos palácios reais era corriqueira. As tabuletas de barro encontradas em Nunzi, antiga Mesopotâmia, datadas da idade do Bronze trazem o termo šakin biti para os administradores de propriedades. Os Assírios utilizavam šakintu para as mulheres que administravam o palácio da rainha e šakinu para os homens que administravam o palácio do rei. Documentos em acádio do século 10 a 12 a.C. nomeiam mais de vinte locais que possuíam šakintus (mulheres administradoras). Na importante cidade cananéia de Ugarit foram encontradas diversas tabuletas em que mostram que os sakinu serviam como testemunhas em negociações reais e questões jurídicas. Alguns textos indicam que os sakinu e as sakintus eram chamados quando o rei não estava apto para desempenhar condignamente suas funções reais. Estas evidências linguísticas indicam que os termos em hebraico sokenet e soken possuiriam a mesma origem cultural dos termos sakintu e sakinu, sendo estes, portanto, melhor traduzidos como administradora e administrador.
Lendo a história de Abisague sob esta nova perpectiva compreendemos melhor por que a Bíblia destaca a sua presença durante a audiência de Bateseba e o profeta Natã com o rei Davi para advogar a escolha de Salomão como sucessor ao trono (1 Rs 1.15). Abisague estava no recinto para atuar como uma sokenet, sendo uma testemunha com autoridade jurídica reconhecida para atestar o juramento de Davi (1 Rs 1.29-30). Abisague não era uma simples “aquecedora de cama”! Ela era uma administradora dos negócios de um rei debilitado pela idade avançada. Sua presença junto ao leito de Davi não tinha conotação sexual, mas demonstrava seu cuidado constante, mesmo nos momentos mais íntimos do rei. Este seu conhecimento profundo dos negócios de Estado foi também a razão pela qual Adonias, que desejava o trono de Davi, tenta casar-se com Abisague (1 Rs 2.13-25).
Apesar de seu protagonismo em um momento crucial do reino de Israel, quando a sucessão ao trono estava ameaçada, a importância de Abisague foi sistematicamente diminuída nos textos rabínicos pós-exílio e nas traduções bíblicas. De administradora real e testemunha jurídica Abisague foi reduzida a uma serva responsável por aquecer a cama do rei com seu corpo. O desconhecimento cultural de sucessivos tradutores do texto bíblico acabou por perpetuar esta visão misógina, desmerecendo mais uma vez o protagonismo de uma mulher na história do Israel bíblico.
Os estudos de antropologia bíblica são relevantes pois ao contextualizar culturalmente os textos da Escritura Sagrada, entre outros resultados, vêm resgatar a voz há tanto silenciada de Abisague, Bateseba, Madalena e tantas outras mulheres da Bíblia.
Saiba mais:
» A Missão da Mulher, Paul Tournier
» Deixem que Elas Mesmas Falem – As mulheres da Bíblia com a palavra, Elben Magalhães Lenz César
» A Grande História - Um Convite para Professores Cristãos, Rick Hove, Heather Holleman
Por Lidice Meyer Pinto Ribeiro
Não foi uma única vez que uma tradução tendenciosa trouxe prejuízos para a compreensão do papel das mulheres na Bíblia. Somada a leitura desatenta e a representações artísticas equivocadas, a tradução para o português de textos tanto do Antigo como o do Novo Testamento vem perpetuando uma tradição misógina sobre as mulheres bíblicas.
Foi assim com Madalena, que de testemunha principal da ressurreição de Jesus passou para a memória popular como uma prostituta arrependida, apesar de em nenhuma parte da Bíblia ela ser caracterizada como uma prostituta. Foi assim com Bateseba, que de mulher violentada sexualmente pelo poder abusivo e cobiça de um rei foi transformada pelas novelas e filmes em sedutora despudorada. A mesma tradição de desvalorização do protagonismo feminino pode ser vista na história de outra mulher da corte real de Davi: Abisague.
Sua história está registrada em 1 Reis 1-2. Tradicionalmente Abisague é vista como uma bela jovem trazida para “aquecer a cama” de um rei Davi velho e decrépito. Apesar da aparente conotação sexual da história, o texto ressalta que “o rei não a possuiu” (1 Rs 1.4). Mas a Antropologia Bíblica revela que Abisague era muito mais que uma concubina real responsável por aquecer o rei em seus últimos dias de vida.
O termo em hebraico encontrado em 1 Reis 1.2,4 – sokenet - traduzido nos dois versículos como “cuidado” acaba por gerar em nossas mentes a imagem de uma jovem cuidadora de idosos que exerce também o papel de concubina. É curioso, porém, que quando o mesmo termo ocorre no gênero masculino - soken - como em Isaías 22.15, os tradutores optem por usar “administrador do palácio real” para sua tradução.
Quando nos voltamos para as culturas semíticas que conviveram com o antigo Israel bíblico, descobrimos que a existência de tanto homens como mulheres atuando como administradores nos palácios reais era corriqueira. As tabuletas de barro encontradas em Nunzi, antiga Mesopotâmia, datadas da idade do Bronze trazem o termo šakin biti para os administradores de propriedades. Os Assírios utilizavam šakintu para as mulheres que administravam o palácio da rainha e šakinu para os homens que administravam o palácio do rei. Documentos em acádio do século 10 a 12 a.C. nomeiam mais de vinte locais que possuíam šakintus (mulheres administradoras). Na importante cidade cananéia de Ugarit foram encontradas diversas tabuletas em que mostram que os sakinu serviam como testemunhas em negociações reais e questões jurídicas. Alguns textos indicam que os sakinu e as sakintus eram chamados quando o rei não estava apto para desempenhar condignamente suas funções reais. Estas evidências linguísticas indicam que os termos em hebraico sokenet e soken possuiriam a mesma origem cultural dos termos sakintu e sakinu, sendo estes, portanto, melhor traduzidos como administradora e administrador.
Lendo a história de Abisague sob esta nova perpectiva compreendemos melhor por que a Bíblia destaca a sua presença durante a audiência de Bateseba e o profeta Natã com o rei Davi para advogar a escolha de Salomão como sucessor ao trono (1 Rs 1.15). Abisague estava no recinto para atuar como uma sokenet, sendo uma testemunha com autoridade jurídica reconhecida para atestar o juramento de Davi (1 Rs 1.29-30). Abisague não era uma simples “aquecedora de cama”! Ela era uma administradora dos negócios de um rei debilitado pela idade avançada. Sua presença junto ao leito de Davi não tinha conotação sexual, mas demonstrava seu cuidado constante, mesmo nos momentos mais íntimos do rei. Este seu conhecimento profundo dos negócios de Estado foi também a razão pela qual Adonias, que desejava o trono de Davi, tenta casar-se com Abisague (1 Rs 2.13-25).
Apesar de seu protagonismo em um momento crucial do reino de Israel, quando a sucessão ao trono estava ameaçada, a importância de Abisague foi sistematicamente diminuída nos textos rabínicos pós-exílio e nas traduções bíblicas. De administradora real e testemunha jurídica Abisague foi reduzida a uma serva responsável por aquecer a cama do rei com seu corpo. O desconhecimento cultural de sucessivos tradutores do texto bíblico acabou por perpetuar esta visão misógina, desmerecendo mais uma vez o protagonismo de uma mulher na história do Israel bíblico.
Os estudos de antropologia bíblica são relevantes pois ao contextualizar culturalmente os textos da Escritura Sagrada, entre outros resultados, vêm resgatar a voz há tanto silenciada de Abisague, Bateseba, Madalena e tantas outras mulheres da Bíblia.
Saiba mais:
» A Missão da Mulher, Paul Tournier
» Deixem que Elas Mesmas Falem – As mulheres da Bíblia com a palavra, Elben Magalhães Lenz César
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Lidice Meyer P. Ribeiro é doutora em Antropologia e professora na Universidade Lusófona, Portugal.
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