Opinião
- 04 de dezembro de 2009
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Fé e ciência: irmãs gêmeas ou inimigas?
Timóteo Carriker
O divórcio entre a fé e a ciência, ou entre a física e a metafísica, marcou o fim da Idade Medieval e o início do Iluminismo. Não me entenda mal. Creio que este divórcio trouxe inestimáveis benefícios para ambos os lados, mas não sem um alto preço. Assim como os divórcios são caracterizados por brigas, mal-entendidos, rotulações preconceituosas ou até xingamentos de ambos os lados, a ciência e a teologia também sofrem de grande dificuldade de comunicação. Além disso, com o amadurecimento da ciência, cresce a convicção popular de que a ela pertence o campo dos fatos enquanto à religião pertence o campo dos valores. Curiosamente, ao campo dos fatos se aplica a regra de singularidade e dogma. Isto é, a respeito de determinado fenômeno, cientificamente falando, os fatos são únicos e, uma vez estabelecidos, se tornam dogmas. O inverso ocorre na percepção do papel da religião para quem é relegado ao campo dos valores. Estes valores, não como fatos, são múltiplos e, por isso, culturalmente, não devem ser entendidos como dogmas universais, apenas ao gosto do freguês.
Digo isso a princípio apenas para ilustrar a dificuldade de intercâmbio que historicamente existe entre estes dois paradigmas. Uma parábola vai ajudar (a primeira regra da teologia é: se não souber a resposta, conte uma parábola!).
Em julho de 1979, na famosa Massachusetts Institute of Technology, em Cambridge, Massachusetts, igrejas do mundo inteiro, protestantes, católicos romanos e católicos ortodoxos, se reuniram (com o apoio do Concílio Mundial de Igrejas) para discutir o tema “Fé e ciência num mundo injusto”. O eminente astrônomo australiano Robert Hanbury Brown foi convidado para dar início à conferência com uma definição de ciência e uma interpretação da sua natureza. Dois dos seus temas eram especialmente interessantes.
Começando com uma definição clássica, ele descreveu como a “industrialização” da ciência -- sua aliança com instituições políticas e econômicas -- modificou a compreensão clássica como uma busca pela verdade objetiva e verificável. Mesmo assim, como bom cientista que é, Brown afirmou a importância da objetividade e a verificabilidade para toda tarefa científica.
Ao mesmo tempo, Brown enfatizou que os conceitos científicos são metáforas e abstrações relacionadas a uma realidade essencialmente misteriosa. Disse ainda que, dentro da própria ciência, há metáforas e abstrações diferentes que podem ser consideradas “complementares” e não antagônicas. Com base neste último ponto, ele argumentou que uma ciência devidamente modesta e a fé podem ser vistas como respostas complementares aos mistérios últimos da existência.
Depois da palestra de Brown, houve duas reações de conferencistas convidados. A primeira veio da cientista africana Matu Maathai, que era basicamente uma aprovação entusiástica da ciência, mesmo com algumas ressalvas a respeito do perigo do abuso da ciência no terceiro mundo, especialmente para o aumento de armas de destruição.
A segunda reação veio do teólogo e filósofo social brasileiro, Rubem Alves, então professor da UNICAMP, atualmente psicanalista e meu vizinho. Com um típico espírito brasileiro poético e brincalhão, Rubem Alves deu sua resposta contando a seguinte estória:
“Era uma vez um cordeiro que, amando o conhecimento objetivo, resolveu descobrir a verdade sobre os lobos. Já sabia de muitos contos ruins sobre os lobos. Eram verdadeiros? Resolveu investigar em primeira mão. Então ele escreveu uma carta para um lobo filósofo com uma pergunta simples e direta: O que é um lobo? O lobo filósofo respondeu a carta explicando o que os lobos são: seus formatos, seus tamanhos, suas cores, seus hábitos sociais, seu pensamento etc. Pensou, entretanto, que era irrelevante falar dos seus hábitos alimentícios já que tais hábitos, de acordo com a própria filosofia do lobo filósofo, não pertenciam à essência dos lobos. Pois bem, o cordeiro ficou tão impressionado com a carta que resolveu fazer uma visita na casa do seu novo amigo, o lobo. Foi somente então que aprendeu para sua infelicidade que os lobos têm uma fraqueza por churrasco de cordeiro”.
Seria fácil confundir as personagens da parábola de Rubem Alves. Poderia imaginar que, para ele, o lobo representa o cientista puro e o cordeiro, o religioso. Também não seria difícil imaginar o contrário. Porém, o próprio Rubem Alves explica: o lobo somos todos nós que pretendemos nos definir com objetividade e distância pessoal. Os lobos são os cientistas, religiosos, políticos, economistas e até professores universitários. Entretanto, o tom bastante negativo de Alves ilustra a difícil relação entre a ciência e a religião. Esta relação tênue tem uma longa história que não é possível relatar adequadamente aqui. Porém, é um relacionamento que não precisa ser -- e não é -- o único relacionamento possível. Gostaria de propor outro, não de incompatibilidade entre lobo e cordeiro, mas do desconhecimento mútuo entre dois gêmeos que são criados separadamente.
Eventualmente vemos na televisão a notícia de que dois gêmeos, ou duas gêmeas, que foram separados logo depois do nascimento se encontram décadas depois. A alegria é enorme, mas na própria reportagem se percebe que os dois já são bem diferentes, devido não só a influência de fatores psicológicos que levam quaisquer irmãos, gêmeos ou não, a terem suas próprias personalidades, mas também devido à criação em contextos totalmente diferentes. Talvez eu esteja exagerando na analogia, mas prefiro ver a fé e a ciência como irmãs gêmeas criadas separadamente. Deveriam ter mais em comum do que de fato têm, não idênticas, pela mesma razão que gêmeos idênticos não são idênticos em sua personalidade. Faço esta fantástica afirmação de que a fé, certamente a fé cristã, literalmente começa e termina com uma preocupação cosmológica, uma preocupação que normalmente relegamos à ciência. Enquanto isso, a ciência sem dúvida está fazendo perguntas cada vez mais teleológicas e estéticas, que se referem à finalidade e a beleza da realidade que se pode conhecer.
Leia a continuação deste artigo na próxima semana.
• Timóteo Carriker é teólogo, missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. É autor de A Visão Missionária na Bíblia e coordena diversos sites (acesse www.tim.carriker.com).
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O divórcio entre a fé e a ciência, ou entre a física e a metafísica, marcou o fim da Idade Medieval e o início do Iluminismo. Não me entenda mal. Creio que este divórcio trouxe inestimáveis benefícios para ambos os lados, mas não sem um alto preço. Assim como os divórcios são caracterizados por brigas, mal-entendidos, rotulações preconceituosas ou até xingamentos de ambos os lados, a ciência e a teologia também sofrem de grande dificuldade de comunicação. Além disso, com o amadurecimento da ciência, cresce a convicção popular de que a ela pertence o campo dos fatos enquanto à religião pertence o campo dos valores. Curiosamente, ao campo dos fatos se aplica a regra de singularidade e dogma. Isto é, a respeito de determinado fenômeno, cientificamente falando, os fatos são únicos e, uma vez estabelecidos, se tornam dogmas. O inverso ocorre na percepção do papel da religião para quem é relegado ao campo dos valores. Estes valores, não como fatos, são múltiplos e, por isso, culturalmente, não devem ser entendidos como dogmas universais, apenas ao gosto do freguês.
Digo isso a princípio apenas para ilustrar a dificuldade de intercâmbio que historicamente existe entre estes dois paradigmas. Uma parábola vai ajudar (a primeira regra da teologia é: se não souber a resposta, conte uma parábola!).
Em julho de 1979, na famosa Massachusetts Institute of Technology, em Cambridge, Massachusetts, igrejas do mundo inteiro, protestantes, católicos romanos e católicos ortodoxos, se reuniram (com o apoio do Concílio Mundial de Igrejas) para discutir o tema “Fé e ciência num mundo injusto”. O eminente astrônomo australiano Robert Hanbury Brown foi convidado para dar início à conferência com uma definição de ciência e uma interpretação da sua natureza. Dois dos seus temas eram especialmente interessantes.
Começando com uma definição clássica, ele descreveu como a “industrialização” da ciência -- sua aliança com instituições políticas e econômicas -- modificou a compreensão clássica como uma busca pela verdade objetiva e verificável. Mesmo assim, como bom cientista que é, Brown afirmou a importância da objetividade e a verificabilidade para toda tarefa científica.
Ao mesmo tempo, Brown enfatizou que os conceitos científicos são metáforas e abstrações relacionadas a uma realidade essencialmente misteriosa. Disse ainda que, dentro da própria ciência, há metáforas e abstrações diferentes que podem ser consideradas “complementares” e não antagônicas. Com base neste último ponto, ele argumentou que uma ciência devidamente modesta e a fé podem ser vistas como respostas complementares aos mistérios últimos da existência.
Depois da palestra de Brown, houve duas reações de conferencistas convidados. A primeira veio da cientista africana Matu Maathai, que era basicamente uma aprovação entusiástica da ciência, mesmo com algumas ressalvas a respeito do perigo do abuso da ciência no terceiro mundo, especialmente para o aumento de armas de destruição.
A segunda reação veio do teólogo e filósofo social brasileiro, Rubem Alves, então professor da UNICAMP, atualmente psicanalista e meu vizinho. Com um típico espírito brasileiro poético e brincalhão, Rubem Alves deu sua resposta contando a seguinte estória:
“Era uma vez um cordeiro que, amando o conhecimento objetivo, resolveu descobrir a verdade sobre os lobos. Já sabia de muitos contos ruins sobre os lobos. Eram verdadeiros? Resolveu investigar em primeira mão. Então ele escreveu uma carta para um lobo filósofo com uma pergunta simples e direta: O que é um lobo? O lobo filósofo respondeu a carta explicando o que os lobos são: seus formatos, seus tamanhos, suas cores, seus hábitos sociais, seu pensamento etc. Pensou, entretanto, que era irrelevante falar dos seus hábitos alimentícios já que tais hábitos, de acordo com a própria filosofia do lobo filósofo, não pertenciam à essência dos lobos. Pois bem, o cordeiro ficou tão impressionado com a carta que resolveu fazer uma visita na casa do seu novo amigo, o lobo. Foi somente então que aprendeu para sua infelicidade que os lobos têm uma fraqueza por churrasco de cordeiro”.
Seria fácil confundir as personagens da parábola de Rubem Alves. Poderia imaginar que, para ele, o lobo representa o cientista puro e o cordeiro, o religioso. Também não seria difícil imaginar o contrário. Porém, o próprio Rubem Alves explica: o lobo somos todos nós que pretendemos nos definir com objetividade e distância pessoal. Os lobos são os cientistas, religiosos, políticos, economistas e até professores universitários. Entretanto, o tom bastante negativo de Alves ilustra a difícil relação entre a ciência e a religião. Esta relação tênue tem uma longa história que não é possível relatar adequadamente aqui. Porém, é um relacionamento que não precisa ser -- e não é -- o único relacionamento possível. Gostaria de propor outro, não de incompatibilidade entre lobo e cordeiro, mas do desconhecimento mútuo entre dois gêmeos que são criados separadamente.
Eventualmente vemos na televisão a notícia de que dois gêmeos, ou duas gêmeas, que foram separados logo depois do nascimento se encontram décadas depois. A alegria é enorme, mas na própria reportagem se percebe que os dois já são bem diferentes, devido não só a influência de fatores psicológicos que levam quaisquer irmãos, gêmeos ou não, a terem suas próprias personalidades, mas também devido à criação em contextos totalmente diferentes. Talvez eu esteja exagerando na analogia, mas prefiro ver a fé e a ciência como irmãs gêmeas criadas separadamente. Deveriam ter mais em comum do que de fato têm, não idênticas, pela mesma razão que gêmeos idênticos não são idênticos em sua personalidade. Faço esta fantástica afirmação de que a fé, certamente a fé cristã, literalmente começa e termina com uma preocupação cosmológica, uma preocupação que normalmente relegamos à ciência. Enquanto isso, a ciência sem dúvida está fazendo perguntas cada vez mais teleológicas e estéticas, que se referem à finalidade e a beleza da realidade que se pode conhecer.
Leia a continuação deste artigo na próxima semana.
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