Opinião
- 26 de janeiro de 2015
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Espiritualidade: contra ou a favor do corpo?
“Desapareceu a doença, e ele ficou limpo”. (Marcos 1.40-45)
A discussão de hoje refere-se à integridade espiritual do crente. Paulo discutirá com os cristãos coríntios o bom emprego da palavra “espiritualidade”. Quase sempre nos referimos a esta palavra pensando como os filósofos gregos, que imaginavam possível um estado de perfeição do espírito somente quando o corpo não interfere na abstração espiritual, fora do corpo e das realidades humanas. Quer dizer, o melhor estado espiritual é aquele alcançado pela mortificação do corpo.
Os monges gregos, ainda no começo da Idade Média, já diziam: “o espírito é para Deus, o corpo é para o imperador” (espírito é “nous”, e “soma” é corpo, no grego). Mas isto não corresponde ao pensamento bíblico e paulino original, por exemplo1. Nenhuma escola rabínica, no tempo bíblico apostólico, ensinaria tal coisa. Paulo foi instruído na concepção judaica, embora fosse inevitável a influência e pressões culturais do mundo helênico. O modelo de espiritualidade religiosa que prevaleceu não tem a ver com a revelação bíblica, mas sim com uma religião pagã do século 7º a.C., “Religião Órfica da Trácia”. Desde os primeiros séculos da era cristã essa concepção se tornou dominante no cristianismo, informa Renold Blank. Até para as pessoas mais simples: “o espírito é tudo, o corpo não vale nada; o espírito valoriza o corpo e a matéria degrada o espírito”. A depreciação do corpo prossegue. Equivocadamente!
Sem fugir do foco da discussão, precisamos insistir que o modelo antropológico dualista (espírito e corpo separados) tem suas raízes numa cultura alheia à do povo bíblico original, conforme refletido no Primeiro Testamento. Uma discussão mais habilitada da teologia nos levará à coragem para refinar conceitos que versam sobre o poder e a vida, e sobre o próprio corpo. A Bíblia, por sua vez, não absorve essas razões culturais e ideológicas de um cristianismo aculturado já distante das fontes apostólicas.
Não há nada mais universal que o corpo. Ele cria o mundo e tudo quanto existe se organiza a partir dele. Tudo quanto o homem criou, seus instrumentos de trabalho, sua sociedade, seus valores, suas aspirações, suas esperanças, seus mitos, sua linguagem, sua religião, suas ideologias, sua ciência, e qualquer outra coisa que se possa inventariar como surgida do homem – ficou engendrado em meio à luta pela sobrevivência do corpo. É justamente no centro, como fonte e razão de ser e existir, que está o corpo do homem. O corpo é a origem do imperativo categórico de agir. “O corpo é o lugar fantástico onde mora, adormecido, um universo inteiro”2.
Temos uma página bastante comum no evangelho de Marcos (1.40-45): Jesus não somente prega a respeito do corpo, mas também, de fato, o cura. Jesus associa palavras e atos. Suas ações trazem libertação, porém libertação integral, espiritual e corporal. Seu modo de expressar a religião professa solidariedade, compaixão, misericórdia, cuidado, amor libertador. São valores espirituais elevados muito acima da religiosidade sem sentimentos, catártica, regulamentar, desencarnada. Jesus não pratica essa religião. Ao contrário, combate o legalismo que impede a abertura para o outro, seu corpo ou a comunidade em si mesma. Para ele, amar é libertar.
Essa, pois, é a economia do corpo saudável ou doente em questão, seguramente ligada a uma determinada forma de capital, própria vida comercializada na medicina pública e privada. Sob a sensibilidade de instrumentos especiais, uma espécie de GPS que perscruta as recentes visitas médicas ou farmacológicas ao corpo dos homens, mulheres, crianças, idosos, em meio a uma paisagem social devastada pela desigualdade. Especialmente no tratamento do corpo doente. Remodelando os contornos da medicina, da cidadania da saúde, das raças e de outras formações políticas, não temos mais que decidir entre uma interpretação materialista ou espiritualista desses desenvolvimentos3. Poucas atividades são tão transparentes nas injustiças e desigualdades na sociedade moderna.
A ética somática e o capital têm se unido desde o nascimento. Com efeito, podendo a medicina e a seguridade colocar-se a serviço da saúde e da vida, onde a vida mesma atingiu tal importância ética; onde as tecnologias para manter a vida e incrementá-la, podem representar a si mesmas. Muito mais destacada que a corrupta corrida por lucro e ganho individual. Seria possível ao “biocapital” alcançar nossas economias de esperança, de imaginação e de cuidado com o homem e a sociedade? Nesse sentido, podemos afirmar que a ética pragmática ou positiva, enquanto consente na capitalização da vida, estando intrinsecamente ligada ao “espírito do biocapital”, expressa tanto na medicina pública quanto na medicina privada, distancia-se do evangelho do Reino de Deus.
A concepção bíblica refere-se ao ser total, que é corpo, é alma e é espírito, finalmente. E isso no Segundo Testamento, porque no Primeiro os exegetas do século 19 já haviam descoberto que a palavra “Espírito” (“pneuma”, na Septuaginta) refere-se somente ao Espírito de Deus. O hebreu não conhece outra forma de identificar o ser humano senão através do “corpo que é alma e da alma que é corpo” (“nephesh”). Para ele, corpo e alma são indissociáveis.
O ser humano é o centro da pregação de Jesus, e isto se demonstra na ordem do mundo a partir do ponto de vista daqueles que não têm o poder. Eles são o centro da vida. Por isso, quando descubro que “sou eu o centro”, homem indivisível, ser humano, desautorizo-os, e passo a ser um perigo para os comandantes do mundo. Não existe objetividade no poder. Se houvesse, não haveria problemas em permitir falar da “realidade com realismo”. Somos o que somos porque somos um corpo. Meu corpo é parte de outros corpos, na igreja, na comunidade, na sociedade, ensinou Rubem Alves.
Paulo prossegue nesta linha: “quer comam ou bebam, ou que façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus”. Não só as atividades religiosas tradicionais têm a ver com a espiritualidade concreta do corpo, mas o comum do cotidiano de cada um e de todos: “...porque nós, embora muitos, somos um só corpo” (1 Co 10.17; 10.31-11). Esse acréscimo identifica outros aspectos, como os que envolvem a comunidade, a sociedade e o crente.
Notas:
1. E.Käsemann.
2. Rubem Alves, citação: J.J.Tancara.
3. Nikolas Rose.
Leia também
Espiritualidade na prática
Para que serve a espiritualidade?
Abraçando e reabraçando a santidade do corpo e da mente
A discussão de hoje refere-se à integridade espiritual do crente. Paulo discutirá com os cristãos coríntios o bom emprego da palavra “espiritualidade”. Quase sempre nos referimos a esta palavra pensando como os filósofos gregos, que imaginavam possível um estado de perfeição do espírito somente quando o corpo não interfere na abstração espiritual, fora do corpo e das realidades humanas. Quer dizer, o melhor estado espiritual é aquele alcançado pela mortificação do corpo.
Os monges gregos, ainda no começo da Idade Média, já diziam: “o espírito é para Deus, o corpo é para o imperador” (espírito é “nous”, e “soma” é corpo, no grego). Mas isto não corresponde ao pensamento bíblico e paulino original, por exemplo1. Nenhuma escola rabínica, no tempo bíblico apostólico, ensinaria tal coisa. Paulo foi instruído na concepção judaica, embora fosse inevitável a influência e pressões culturais do mundo helênico. O modelo de espiritualidade religiosa que prevaleceu não tem a ver com a revelação bíblica, mas sim com uma religião pagã do século 7º a.C., “Religião Órfica da Trácia”. Desde os primeiros séculos da era cristã essa concepção se tornou dominante no cristianismo, informa Renold Blank. Até para as pessoas mais simples: “o espírito é tudo, o corpo não vale nada; o espírito valoriza o corpo e a matéria degrada o espírito”. A depreciação do corpo prossegue. Equivocadamente!
Sem fugir do foco da discussão, precisamos insistir que o modelo antropológico dualista (espírito e corpo separados) tem suas raízes numa cultura alheia à do povo bíblico original, conforme refletido no Primeiro Testamento. Uma discussão mais habilitada da teologia nos levará à coragem para refinar conceitos que versam sobre o poder e a vida, e sobre o próprio corpo. A Bíblia, por sua vez, não absorve essas razões culturais e ideológicas de um cristianismo aculturado já distante das fontes apostólicas.
Não há nada mais universal que o corpo. Ele cria o mundo e tudo quanto existe se organiza a partir dele. Tudo quanto o homem criou, seus instrumentos de trabalho, sua sociedade, seus valores, suas aspirações, suas esperanças, seus mitos, sua linguagem, sua religião, suas ideologias, sua ciência, e qualquer outra coisa que se possa inventariar como surgida do homem – ficou engendrado em meio à luta pela sobrevivência do corpo. É justamente no centro, como fonte e razão de ser e existir, que está o corpo do homem. O corpo é a origem do imperativo categórico de agir. “O corpo é o lugar fantástico onde mora, adormecido, um universo inteiro”2.
Temos uma página bastante comum no evangelho de Marcos (1.40-45): Jesus não somente prega a respeito do corpo, mas também, de fato, o cura. Jesus associa palavras e atos. Suas ações trazem libertação, porém libertação integral, espiritual e corporal. Seu modo de expressar a religião professa solidariedade, compaixão, misericórdia, cuidado, amor libertador. São valores espirituais elevados muito acima da religiosidade sem sentimentos, catártica, regulamentar, desencarnada. Jesus não pratica essa religião. Ao contrário, combate o legalismo que impede a abertura para o outro, seu corpo ou a comunidade em si mesma. Para ele, amar é libertar.
Essa, pois, é a economia do corpo saudável ou doente em questão, seguramente ligada a uma determinada forma de capital, própria vida comercializada na medicina pública e privada. Sob a sensibilidade de instrumentos especiais, uma espécie de GPS que perscruta as recentes visitas médicas ou farmacológicas ao corpo dos homens, mulheres, crianças, idosos, em meio a uma paisagem social devastada pela desigualdade. Especialmente no tratamento do corpo doente. Remodelando os contornos da medicina, da cidadania da saúde, das raças e de outras formações políticas, não temos mais que decidir entre uma interpretação materialista ou espiritualista desses desenvolvimentos3. Poucas atividades são tão transparentes nas injustiças e desigualdades na sociedade moderna.
A ética somática e o capital têm se unido desde o nascimento. Com efeito, podendo a medicina e a seguridade colocar-se a serviço da saúde e da vida, onde a vida mesma atingiu tal importância ética; onde as tecnologias para manter a vida e incrementá-la, podem representar a si mesmas. Muito mais destacada que a corrupta corrida por lucro e ganho individual. Seria possível ao “biocapital” alcançar nossas economias de esperança, de imaginação e de cuidado com o homem e a sociedade? Nesse sentido, podemos afirmar que a ética pragmática ou positiva, enquanto consente na capitalização da vida, estando intrinsecamente ligada ao “espírito do biocapital”, expressa tanto na medicina pública quanto na medicina privada, distancia-se do evangelho do Reino de Deus.
A concepção bíblica refere-se ao ser total, que é corpo, é alma e é espírito, finalmente. E isso no Segundo Testamento, porque no Primeiro os exegetas do século 19 já haviam descoberto que a palavra “Espírito” (“pneuma”, na Septuaginta) refere-se somente ao Espírito de Deus. O hebreu não conhece outra forma de identificar o ser humano senão através do “corpo que é alma e da alma que é corpo” (“nephesh”). Para ele, corpo e alma são indissociáveis.
O ser humano é o centro da pregação de Jesus, e isto se demonstra na ordem do mundo a partir do ponto de vista daqueles que não têm o poder. Eles são o centro da vida. Por isso, quando descubro que “sou eu o centro”, homem indivisível, ser humano, desautorizo-os, e passo a ser um perigo para os comandantes do mundo. Não existe objetividade no poder. Se houvesse, não haveria problemas em permitir falar da “realidade com realismo”. Somos o que somos porque somos um corpo. Meu corpo é parte de outros corpos, na igreja, na comunidade, na sociedade, ensinou Rubem Alves.
Paulo prossegue nesta linha: “quer comam ou bebam, ou que façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus”. Não só as atividades religiosas tradicionais têm a ver com a espiritualidade concreta do corpo, mas o comum do cotidiano de cada um e de todos: “...porque nós, embora muitos, somos um só corpo” (1 Co 10.17; 10.31-11). Esse acréscimo identifica outros aspectos, como os que envolvem a comunidade, a sociedade e o crente.
Notas:
1. E.Käsemann.
2. Rubem Alves, citação: J.J.Tancara.
3. Nikolas Rose.
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Espiritualidade na prática
Para que serve a espiritualidade?
Abraçando e reabraçando a santidade do corpo e da mente
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
- Textos publicados: 94 [ver]
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