Opinião
- 27 de dezembro de 2021
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Breaking Bad – ações têm consequências
Por Carlos Caldas
Atenção: contém spoiler
Breaking Bad é uma muito bem-sucedida série televisiva produzida por Vince Gilligan, autor de Arquivo-X, uma série de ficção científica que também fez muito sucesso. Apesar de não ser recente, pois foi veiculada entre 2008 e 2013 (a série ainda está disponível no canal de streaming Netflix), considerando o alcance e o sucesso que obteve, e, muito mais importante, considerando as discussões éticas, existenciais e espirituais que suscita, vale a pena tecer alguns comentários a respeito. Pode ser que alguem pense que não faz sentido no final de 2021 falar de uma série de 2013. Afinal, oito anos já se passaram... Mas quem foi que disse que tudo que não é de hoje perdeu o valor? C. S. Lewis, com a lucidez e a objetividade que lhe eram peculiares, em um ensaio delicioso no qual defende a importância da leitura de obras antigas, argumenta contra o raciocínio ingênuo que faz com que se considere tudo que é antigo como ruim, e tudo que é “de hoje” como sendo automaticamente bom1.
Mas o que há em Breaking Bad que justifique comentários a respeito anos depois de ter sido veiculada? É o que pretendemos apresentar neste pequenino texto. Antes de mais nada, o que significa breaking bad? Trata-se uma expressão idiomática típica do sul dos Estados Unidos que não tem correspondente direto em português. A expressão é usada para se referir a uma situação em que limites (de qualquer tipo) são rompidos, quando se faz algo absolutamente inesperado, para dizer o mínimo. Talvez “chutar o pau da barraca” seja no português brasileiro contemporâneo o que mais se aproxima em sentido da expressão breaking bad. E é exatamente isso que a narrativa de Gilligan apresenta.
Em cinco temporadas somos apresentados ao drama de Walter White (interpretado por Bryan Cranston), um cidadão na casa dos cinquenta que mora em Albuquerque, no Estado do Novo México, sudoeste dos Estados Unidos. Ele tem dois empregos: além de ser professor de química no ensino médio, trabalha também em um lava jato. Walter é casado com Skyler, que é contadora. O casal tem um filho adolescente, Walter Junior, que tem paralisia cerebral (é muito positivo o fator de inclusão, pois RJ Mitte, o jovem ator que vive Walter Junior, tem um caso leve da mesma condição de seu personagem). Walter “Pai” é diagnosticado com um câncer de pulmão mais ou menos na mesma época que Skyler fica grávida pela segunda vez. A perspectiva é que ele tem cerca de apenas seis meses de vida, ou seja, talvez nem venha a conhecer o/a segundo/a filho/a. A situação é muito complicada em todos, absolutamente todos, os sentidos. É aí que por acaso Walter descobre que a metanfetamina é uma droga muito consumida, e, consequentemente, muito lucrativa. Pensando em deixar uma condição melhor para a esposa e os filhos, Walter parte para o breaking bad que dá título à série, e toma uma decisão inusitada: resolve usar seus conhecimentos de química para fabricar a droga e vendê-la. Para a venda do produto, contará com a ajuda de Jesse Pinkman (Aaron Paul), um ex-aluno que é ao mesmo tempo usuário e traficante em escala micro. Este é o enredo básico da trama, que se desenrolará por capítulos e capítulos em uma sequência de acontecimentos que são ao mesmo tempo verossímeis e inverossímeis, alternando situações reais e surreais. Se por um lado o enredo da série é muito bem amarrado, por outro ao lado tem situações que não aconteceriam jamais na vida real, e que só foram inseridas para alimentar sua sequência narrativa. Mas um ponto positivo na trama desenvolvida por Gilligan é o fato que, diferente de outras séries que eram lançadas e tinham continuações dependendo do sucesso ou não junto ao público, Breaking Bad é uma história com início, meio e fim, que não dependeu dos humores dos telespectadores para ser “esticada” ao máximo.
Walter White mergulha cada vez em uma espiral descendente, como os círculos do inferno de Dante, em que a cada volta se está em um nível inferior ao anterior. A narrativa mostra uma situação que não tem como não ser percebida: o par de personagens Walter-Jesse apresenta uma situação “espelhada”, por assim dizer. Jesse é um garoto problema, pois mesmo sendo proveniente de uma família estável, é usuário de drogas, não é bom estudante, não tem emprego fixo, e seus amigos são como ele. Walter por sua vez é um respeitável pai de família, sério e trabalhador. Mas pouco a pouco a narrativa de Gilligan mostra como Jesse tem um caráter nobre e um coração bondoso, enquanto Walter, é insensível e inescrupuloso. As aparências enganam. Nem tudo é o que parece. Gilligan conseguiu ser habilidoso o bastante ao criar um roteiro que leva os espectadores a, no início, não concordar com as decisões tomadas por Walter, mas para minimamente, entender suas motivações. Afinal, tudo que ele faz é pensando na segurança financeira de sua família depois de sua morte, que se aproxima. Aos poucos vemos como Walter se transforma em um monstro, um ser repelente moralmente, que faz coisas horríveis e vai progressivamente trilhar caminhos sem se deixar guiar pela bússola moral que um dia teve. C. S. Lewis será citado mais uma vez: ele afirmou que quanto pior uma pessoa se torna, menos consciência ela tem de sua própria maldade. É exatamente o que acontece com Walter. Percebe-se que em vez de sentir remorso ou arrependimento (no início de sua trajetória Walter até demonstra que se sente mal por ter feito algumas das coisas que fez), ele sente prazer. No último episódio ele assume para sua esposa que fez tudo que fez por ele mesmo, pois passou a gostar de tudo aquilo, sentiu-se poderoso ao quebrar a lei e não ser descoberto.
Se nos primeiros episódios pode-se, como afirmado, minimamente entender a razão pela qual Walter se enveredou por caminhos tão tortuosos, aos poucos suas atitudes vão fazendo com que se sinta raiva dele. O caminho de Walter faz lembrar o que disse um dos antigos poetas de Israel: “um abismo chama outro abismo” (Sl 42.7), ou seja, uma situação caótica que gera outra situação caótica, uma confusão que desemboca em outra confusão. Faz lembrar também a recomendação paulina: “Aquele pois, que pensa estar em pé, veja que não caia” (1 Co 10.12). A arte (televisiva, no caso de Breaking Bad), longe de ser somente mero entretenimento escapista, nos serve de alerta: qualquer um de nós pode se transformar em um Walter White.
As ações de Walter fizeram com que de fato ele conseguisse muito dinheiro, mas pagou um preço altíssimo por isso, pois por fim, quando descoberto, perdeu o respeito do próprio filho. Não apenas isso, pois na verdade ele perdeu tudo que tinha.
Ações trazem consequências. Afirmação óbvia, mas com frequência, esquecida. Viver é fazer escolhas, optar por uma coisa em detrimento de outra, escolher uma direção e não outra. Cada escolha feita trará consequências. Algumas serão boas, outras nem tanto. Somos criaturas moralmente responsáveis. A grande lição da vida é aprender a assumir as consequências das atitudes tomadas, sem transferir responsabilidade para terceiros. Mais cedo ou mais tarde cada um de nós se verá em uma situação que, ainda que não extrema como a de Walter White, nos fará pensar em qual caminho escolheremos andar. Um dos antigos sábios de Israel disse que há caminho que parece direito, mas que no final resultará em morte (cf. Pv. 14.12).
Que tenhamos sabedoria para tomar nossas decisões, e coragem para assumir as consequências que estas decisões trarão, para nós mesmos e para quem está ao nosso redor.
Nota
1. “Sobre a leitura de livros antigos” é um dos capítulos de Deus no Banco dos Réus, coletânea de ensaios de Lewis publicada postumamente (1970). Há uma edição em português, lançada pela Thomas Nelson Brasil em 2018.
> Conheça também Engolidos Pela Cultura Pop - Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã, de Steve Turner.
Atenção: contém spoiler
Breaking Bad é uma muito bem-sucedida série televisiva produzida por Vince Gilligan, autor de Arquivo-X, uma série de ficção científica que também fez muito sucesso. Apesar de não ser recente, pois foi veiculada entre 2008 e 2013 (a série ainda está disponível no canal de streaming Netflix), considerando o alcance e o sucesso que obteve, e, muito mais importante, considerando as discussões éticas, existenciais e espirituais que suscita, vale a pena tecer alguns comentários a respeito. Pode ser que alguem pense que não faz sentido no final de 2021 falar de uma série de 2013. Afinal, oito anos já se passaram... Mas quem foi que disse que tudo que não é de hoje perdeu o valor? C. S. Lewis, com a lucidez e a objetividade que lhe eram peculiares, em um ensaio delicioso no qual defende a importância da leitura de obras antigas, argumenta contra o raciocínio ingênuo que faz com que se considere tudo que é antigo como ruim, e tudo que é “de hoje” como sendo automaticamente bom1.
Mas o que há em Breaking Bad que justifique comentários a respeito anos depois de ter sido veiculada? É o que pretendemos apresentar neste pequenino texto. Antes de mais nada, o que significa breaking bad? Trata-se uma expressão idiomática típica do sul dos Estados Unidos que não tem correspondente direto em português. A expressão é usada para se referir a uma situação em que limites (de qualquer tipo) são rompidos, quando se faz algo absolutamente inesperado, para dizer o mínimo. Talvez “chutar o pau da barraca” seja no português brasileiro contemporâneo o que mais se aproxima em sentido da expressão breaking bad. E é exatamente isso que a narrativa de Gilligan apresenta.
Em cinco temporadas somos apresentados ao drama de Walter White (interpretado por Bryan Cranston), um cidadão na casa dos cinquenta que mora em Albuquerque, no Estado do Novo México, sudoeste dos Estados Unidos. Ele tem dois empregos: além de ser professor de química no ensino médio, trabalha também em um lava jato. Walter é casado com Skyler, que é contadora. O casal tem um filho adolescente, Walter Junior, que tem paralisia cerebral (é muito positivo o fator de inclusão, pois RJ Mitte, o jovem ator que vive Walter Junior, tem um caso leve da mesma condição de seu personagem). Walter “Pai” é diagnosticado com um câncer de pulmão mais ou menos na mesma época que Skyler fica grávida pela segunda vez. A perspectiva é que ele tem cerca de apenas seis meses de vida, ou seja, talvez nem venha a conhecer o/a segundo/a filho/a. A situação é muito complicada em todos, absolutamente todos, os sentidos. É aí que por acaso Walter descobre que a metanfetamina é uma droga muito consumida, e, consequentemente, muito lucrativa. Pensando em deixar uma condição melhor para a esposa e os filhos, Walter parte para o breaking bad que dá título à série, e toma uma decisão inusitada: resolve usar seus conhecimentos de química para fabricar a droga e vendê-la. Para a venda do produto, contará com a ajuda de Jesse Pinkman (Aaron Paul), um ex-aluno que é ao mesmo tempo usuário e traficante em escala micro. Este é o enredo básico da trama, que se desenrolará por capítulos e capítulos em uma sequência de acontecimentos que são ao mesmo tempo verossímeis e inverossímeis, alternando situações reais e surreais. Se por um lado o enredo da série é muito bem amarrado, por outro ao lado tem situações que não aconteceriam jamais na vida real, e que só foram inseridas para alimentar sua sequência narrativa. Mas um ponto positivo na trama desenvolvida por Gilligan é o fato que, diferente de outras séries que eram lançadas e tinham continuações dependendo do sucesso ou não junto ao público, Breaking Bad é uma história com início, meio e fim, que não dependeu dos humores dos telespectadores para ser “esticada” ao máximo.
Walter White mergulha cada vez em uma espiral descendente, como os círculos do inferno de Dante, em que a cada volta se está em um nível inferior ao anterior. A narrativa mostra uma situação que não tem como não ser percebida: o par de personagens Walter-Jesse apresenta uma situação “espelhada”, por assim dizer. Jesse é um garoto problema, pois mesmo sendo proveniente de uma família estável, é usuário de drogas, não é bom estudante, não tem emprego fixo, e seus amigos são como ele. Walter por sua vez é um respeitável pai de família, sério e trabalhador. Mas pouco a pouco a narrativa de Gilligan mostra como Jesse tem um caráter nobre e um coração bondoso, enquanto Walter, é insensível e inescrupuloso. As aparências enganam. Nem tudo é o que parece. Gilligan conseguiu ser habilidoso o bastante ao criar um roteiro que leva os espectadores a, no início, não concordar com as decisões tomadas por Walter, mas para minimamente, entender suas motivações. Afinal, tudo que ele faz é pensando na segurança financeira de sua família depois de sua morte, que se aproxima. Aos poucos vemos como Walter se transforma em um monstro, um ser repelente moralmente, que faz coisas horríveis e vai progressivamente trilhar caminhos sem se deixar guiar pela bússola moral que um dia teve. C. S. Lewis será citado mais uma vez: ele afirmou que quanto pior uma pessoa se torna, menos consciência ela tem de sua própria maldade. É exatamente o que acontece com Walter. Percebe-se que em vez de sentir remorso ou arrependimento (no início de sua trajetória Walter até demonstra que se sente mal por ter feito algumas das coisas que fez), ele sente prazer. No último episódio ele assume para sua esposa que fez tudo que fez por ele mesmo, pois passou a gostar de tudo aquilo, sentiu-se poderoso ao quebrar a lei e não ser descoberto.
Se nos primeiros episódios pode-se, como afirmado, minimamente entender a razão pela qual Walter se enveredou por caminhos tão tortuosos, aos poucos suas atitudes vão fazendo com que se sinta raiva dele. O caminho de Walter faz lembrar o que disse um dos antigos poetas de Israel: “um abismo chama outro abismo” (Sl 42.7), ou seja, uma situação caótica que gera outra situação caótica, uma confusão que desemboca em outra confusão. Faz lembrar também a recomendação paulina: “Aquele pois, que pensa estar em pé, veja que não caia” (1 Co 10.12). A arte (televisiva, no caso de Breaking Bad), longe de ser somente mero entretenimento escapista, nos serve de alerta: qualquer um de nós pode se transformar em um Walter White.
As ações de Walter fizeram com que de fato ele conseguisse muito dinheiro, mas pagou um preço altíssimo por isso, pois por fim, quando descoberto, perdeu o respeito do próprio filho. Não apenas isso, pois na verdade ele perdeu tudo que tinha.
Ações trazem consequências. Afirmação óbvia, mas com frequência, esquecida. Viver é fazer escolhas, optar por uma coisa em detrimento de outra, escolher uma direção e não outra. Cada escolha feita trará consequências. Algumas serão boas, outras nem tanto. Somos criaturas moralmente responsáveis. A grande lição da vida é aprender a assumir as consequências das atitudes tomadas, sem transferir responsabilidade para terceiros. Mais cedo ou mais tarde cada um de nós se verá em uma situação que, ainda que não extrema como a de Walter White, nos fará pensar em qual caminho escolheremos andar. Um dos antigos sábios de Israel disse que há caminho que parece direito, mas que no final resultará em morte (cf. Pv. 14.12).
Que tenhamos sabedoria para tomar nossas decisões, e coragem para assumir as consequências que estas decisões trarão, para nós mesmos e para quem está ao nosso redor.
Nota
1. “Sobre a leitura de livros antigos” é um dos capítulos de Deus no Banco dos Réus, coletânea de ensaios de Lewis publicada postumamente (1970). Há uma edição em português, lançada pela Thomas Nelson Brasil em 2018.
> Conheça também Engolidos Pela Cultura Pop - Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã, de Steve Turner.
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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