Opinião
- 02 de maio de 2024
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Ana Julia, a sucuri
Somos criaturas que vieram do pó, igualmente dependentes do sopro de vida do Criador
Por Tiago Pereira
Recentemente, a notícia da morte de uma cobra se destacou nos jornais. Com mais de 6 metros de comprimento, ela era uma das maiores sucuris do mundo, monitorada pelos biólogos há muitos anos e bastante conhecida na região de Bonito, no Mato Grosso do Sul. E ela não era uma cobra qualquer. O que mais chamou atenção foi um fato bem peculiar. Sua majestade, a rainha das águas do pantanal, tinha nome e apelido: ela era Anajulia, a Vovozona.
Dar nome aos animais é uma das primeiras tarefas atribuídas ao homem na Bíblia. Essa história está presente no segundo capítulo de Gênesis, que nos mostra Deus trazendo os animais para que o homem lhes dê um nome (Gn 2:19). As ilustrações presentes em muitos materiais infantis costumam colocar Adão apontando para os animais e dizendo: “este é o hipopótamo”, “este é o avestruz”, ou ainda “vou te chamar de urso”, e assim sucessivamente, executando um trabalho que parece ser de cunho puramente taxonômico. Mas será que é isso que o texto realmente está querendo nos ensinar? O trabalho do homem ali no jardim era apenas um trabalho de organização sistemática, dando nomes às criaturas em alguma língua antiga e desconhecida?
Se o registro bíblico faz questão de nos contar essa história, ela definitivamente não é banal. Mas é preciso voltar uma página na história da criação do livro de Gênesis. No relato presente no primeiro capítulo, o homem tinha recebido uma ordem específica: dominar e subjugar a criação (Gn 1:26-28), uma ordem direta, mas talvez difícil de compreender e executar. No capítulo seguinte, então, o autor parece ter a intenção de qualificar melhor como aquela função deveria ser exercida. Quando o homem é posto no jardim do Éden, a ordem é apresentada agora com dois novos verbos: cultivar e guardar (Gn 2:15).
Entendemos então que o domínio sobre a criação deveria ser visto a partir de uma lógica de cuidado e serviço, e isso só se daria a partir de um reconhecimento das relações de interdependência entre a terra e todos os seres criados. Se a ordem de nomear os animais é dada logo em seguida, ela também precisará ser vista a partir desta ótica.
Diversos estudiosos apontam que, no contexto do Antigo Oriente Próximo, nomear alguma coisa, fosse um objeto ou pessoa, implicava uma imposição de poder e autoridade sobre ela, uma forma de exercer domínio sobre o outro. Um exemplo emblemático acontece quando Daniel e seus amigos recebem novos nomes por ordem de Nabucodonosor, rei da Babilônia, mostrando que, no mundo caído, o ato de nomear muitas vezes era exercido de forma autoritária e tirana. Mas se nomear é uma forma de dominar, também vemos que no Antigo Testamento esse ato sempre implica uma relação de proximidade e conhecimento da parte de Deus. O ato de nomeação era a base para um relacionamento, e vemos isso muitas vezes quando Deus chama seus escolhidos. Na ordem criacional, portanto, entendemos que exercer um domínio através da nomeação deveria ocorrer de acordo com a lógica divina, não humana. O intento divino nunca foi que o domínio do homem sobre as demais criaturas se desse pela exploração, abuso e opressão, mas sim por um relacionamento amoroso e responsável. O Criador, aquele que nomeia cada estrela existente no céu (Is 40:26), nos chama a participar de sua obra. Nós não criamos, mas como imagens do Criador, temos o privilégio de nomear suas criaturas.
Para cumprir a ordem de dominar, o homem precisaria se aproximar, observar e estudar. E conhecer as demais criaturas exigiria tempo e dedicação, mas também respeito aos limites, tanto os delas como os nossos. Só assim os nomes poderiam ser dados. A autoridade do homem sobre a criação seria exercida através do reconhecimento das necessidades de cada um e da percepção de que somos igualmente criaturas que vieram do pó, igualmente dependentes do sopro de vida do Criador e da terra que nos dá o alimento. Essa autoridade dentro da criação só poderia ser exercida em benefício das outras criaturas. E isso só será possível quando os humanos entenderem suas relações de interdependência e cooperação fundamental com todas as demais criaturas e com a terra.
A cobra encontrada morta no Pantanal não ganhou um nome quando foi chamada de sucuri, mas de Ana Julia. Talvez sua morte tenha sido por causas naturais, mas se ela foi morta por alguém de forma intencional e deliberada, essa pessoa não a conhecia pelo nome, e talvez ela não fosse nem uma sucuri, mas apenas uma cobra. Mas todos que a conheceram como Ana Julia exerceram um pouco desse mandato tão nobre. Cada animal nomeado, conhecido e cuidado por nós tem esse privilégio de fazer parte do jardim que nós cultivamos, e através de seus nomes nós podemos conhecer melhor o Criador.
REVISTA ULTIMATO | OS DESAFIOS ÉTICOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS
O avanço da tecnologia nas últimas décadas é maior do que em qualquer outra época da história. Tal aumento se dá em muitas frentes e, mais significativo, confere um caráter tecnológico à vida contemporânea.
Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
É disso que trata a matéria de capa da edição 407 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Natureza Sanguinária – Deus e o Problema do Sofrimento Animal, Michael J. Murray
» O Mundo Perdido de Adão e Eva – O debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, John Walton
» Mordomia responsável, por René Padilla
Por Tiago Pereira
Recentemente, a notícia da morte de uma cobra se destacou nos jornais. Com mais de 6 metros de comprimento, ela era uma das maiores sucuris do mundo, monitorada pelos biólogos há muitos anos e bastante conhecida na região de Bonito, no Mato Grosso do Sul. E ela não era uma cobra qualquer. O que mais chamou atenção foi um fato bem peculiar. Sua majestade, a rainha das águas do pantanal, tinha nome e apelido: ela era Anajulia, a Vovozona.
Dar nome aos animais é uma das primeiras tarefas atribuídas ao homem na Bíblia. Essa história está presente no segundo capítulo de Gênesis, que nos mostra Deus trazendo os animais para que o homem lhes dê um nome (Gn 2:19). As ilustrações presentes em muitos materiais infantis costumam colocar Adão apontando para os animais e dizendo: “este é o hipopótamo”, “este é o avestruz”, ou ainda “vou te chamar de urso”, e assim sucessivamente, executando um trabalho que parece ser de cunho puramente taxonômico. Mas será que é isso que o texto realmente está querendo nos ensinar? O trabalho do homem ali no jardim era apenas um trabalho de organização sistemática, dando nomes às criaturas em alguma língua antiga e desconhecida?
Se o registro bíblico faz questão de nos contar essa história, ela definitivamente não é banal. Mas é preciso voltar uma página na história da criação do livro de Gênesis. No relato presente no primeiro capítulo, o homem tinha recebido uma ordem específica: dominar e subjugar a criação (Gn 1:26-28), uma ordem direta, mas talvez difícil de compreender e executar. No capítulo seguinte, então, o autor parece ter a intenção de qualificar melhor como aquela função deveria ser exercida. Quando o homem é posto no jardim do Éden, a ordem é apresentada agora com dois novos verbos: cultivar e guardar (Gn 2:15).
Entendemos então que o domínio sobre a criação deveria ser visto a partir de uma lógica de cuidado e serviço, e isso só se daria a partir de um reconhecimento das relações de interdependência entre a terra e todos os seres criados. Se a ordem de nomear os animais é dada logo em seguida, ela também precisará ser vista a partir desta ótica.
Diversos estudiosos apontam que, no contexto do Antigo Oriente Próximo, nomear alguma coisa, fosse um objeto ou pessoa, implicava uma imposição de poder e autoridade sobre ela, uma forma de exercer domínio sobre o outro. Um exemplo emblemático acontece quando Daniel e seus amigos recebem novos nomes por ordem de Nabucodonosor, rei da Babilônia, mostrando que, no mundo caído, o ato de nomear muitas vezes era exercido de forma autoritária e tirana. Mas se nomear é uma forma de dominar, também vemos que no Antigo Testamento esse ato sempre implica uma relação de proximidade e conhecimento da parte de Deus. O ato de nomeação era a base para um relacionamento, e vemos isso muitas vezes quando Deus chama seus escolhidos. Na ordem criacional, portanto, entendemos que exercer um domínio através da nomeação deveria ocorrer de acordo com a lógica divina, não humana. O intento divino nunca foi que o domínio do homem sobre as demais criaturas se desse pela exploração, abuso e opressão, mas sim por um relacionamento amoroso e responsável. O Criador, aquele que nomeia cada estrela existente no céu (Is 40:26), nos chama a participar de sua obra. Nós não criamos, mas como imagens do Criador, temos o privilégio de nomear suas criaturas.
Para cumprir a ordem de dominar, o homem precisaria se aproximar, observar e estudar. E conhecer as demais criaturas exigiria tempo e dedicação, mas também respeito aos limites, tanto os delas como os nossos. Só assim os nomes poderiam ser dados. A autoridade do homem sobre a criação seria exercida através do reconhecimento das necessidades de cada um e da percepção de que somos igualmente criaturas que vieram do pó, igualmente dependentes do sopro de vida do Criador e da terra que nos dá o alimento. Essa autoridade dentro da criação só poderia ser exercida em benefício das outras criaturas. E isso só será possível quando os humanos entenderem suas relações de interdependência e cooperação fundamental com todas as demais criaturas e com a terra.
A cobra encontrada morta no Pantanal não ganhou um nome quando foi chamada de sucuri, mas de Ana Julia. Talvez sua morte tenha sido por causas naturais, mas se ela foi morta por alguém de forma intencional e deliberada, essa pessoa não a conhecia pelo nome, e talvez ela não fosse nem uma sucuri, mas apenas uma cobra. Mas todos que a conheceram como Ana Julia exerceram um pouco desse mandato tão nobre. Cada animal nomeado, conhecido e cuidado por nós tem esse privilégio de fazer parte do jardim que nós cultivamos, e através de seus nomes nós podemos conhecer melhor o Criador.
- Tiago Pereira é biólogo formado pela Universidade Federal de Viçosa, mestre e doutor em Botânica também pela UFV, com pós-doutorado em Biologia Molecular e Filogeografia. Atualmente, faz parte da equipe de trabalho da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) como coordenador nacional dos Grupos de Estudo. É membro da igreja presbiteriana, casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.
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Quais são os desafios trazidos por esse avanço? A ética cristã é suficiente para responder aos aspectos relacionados às novas tecnologias? Como a igreja pode atuar nesse cenário tão desafiador?
É disso que trata a matéria de capa da edição 407 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
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