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Opinião

A Operação Final e a banalidade do mal

Por Carlos Caldas

Operação FinalOperation Finale no original – é um filme de 2018 do diretor norte-americano Chris Weitz, disponível na rede de streaming Netflix. O filme é baseado em eventos históricos: ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o alto escalão do governo nazista, que incluía figuras como Joseph Goebbels e Heinrich Himmler, além do próprio Adolf Hitler, claro, tiraram as próprias vidas para que não fossem presos e julgados, o que aconteceu com alguns integrantes deste alto escalão, e muitos do médio, no conhecido Julgamento de Nuremberg. Mas houve um elemento do mencionado alto escalão do III Reich que nem cometeu suicídio e nem foi preso, e em torno dele corre a narrativa do filme de Weitz. Por coincidência, ele era xará de Hitler: Adolf Eichmann, o responsável pela execução da política nazista de transportar milhares de judeus para campos de concentração no leste da Europa na época da guerra. Resumindo: Eichmann foi o responsável direto pela morte de muitos milhares de judeus.
 
Em 1960, exatos quinze anos depois do fim da guerra, e por coincidência, o ano do sesquicentenário da independência da Argentina, a agência de inteligência de Israel foi informada, meio que “por acaso” que Eichmann estaria naquele país. Depois de confirmada a informação, o próprio David Ben-Gurion, o primeiro a servir como Primeiro Ministro de Israel, ordenou que uma equipe do Mossad, o legendário serviço secreto daquele país, fizesse uma operação arriscada para extrair Eichmann com vida da Argentina, para que ele fosse julgado em Israel. O conhecido e muito talentoso ator anglo-indiano Ben Kingsley faz o papel de Eichmann, o que demonstra sua versatilidade: em Missão no Mar Vermelho, de 2019, Kingsley faz o papel de um diretor do Mossad e, ainda mais impressionante, fez o papel-título em Moisés, de 1996, ou seja, em momentos diferentes de sua carreira Kingsley deu vida ao personagem mais importante do judaísmo em todos os tempos e, no extremo oposto, ao homem que queria exterminar todos os judeus do planeta (detalhe curioso no filme de 1996 é que a brasileira Sonia Braga faz o papel de Zípora, a esposa de Moisés).
 
Voltando a Operação Final: a narrativa de Weitz mostrará como Eichmann foi capturado pelo agente israelense Peter Malkin, interpretado pelo ator guatemalteco-estadunidense Oscar Isaac, que é um quase sósia do ator brasileiro Rodrigo Lombardi. Outro detalhe curioso sobre o elenco do filme, é a presença do ator israelense Lior Raz, que meio que repete seu papel de agente, o mesmo que tem na série Fauda, também disponível na Netflix.
 
Operação Final tem alguns “furos” no enredo, pois não gasta nem um segundo de sua narrativa para mostrar como Eichmann conseguiu se refugiar na Argentina, e não explica a cumplicidade da polícia local com uma espécie de célula nazista que fazia reuniões regularmente em Buenos Aires. Mas este é sempre um problema de filmes baseados em eventos históricos. Diretor e roteirista que se aventuram a encarar uma empreitada dessa natureza precisam encarar o dilema entre filme e documentário, o que não é nem um pouco fácil. Outro problema do filme é que Eichmann é apresentado como uma figura simpática. Ele praticamente se torna amigo de Malkin, o agente que o capturou. O filme sugere uma Síndrome de Estocolmo às avessas, pois ao invés do capturado se afeiçoar ao seu captor, como na versão clássica do transtorno psicológico que pode acontecer (e efetivamente acontece) em momentos de muita tensão, como um sequestro prolongado, aconteceu o contrário: o captor se afeiçoou ao capturado. Não sei se isso aconteceu durante a captura de Eichmann ou se é uma liberdade do roteirista do filme.
 
Problemas à parte, o filme toca em ponto muito sensível da trajetória humana na Terra: a banalidade do mal. Esta foi a expressão usada pela filósofa judia alemã Hannah Arendt para descrever a situação que envolveu Eichmann1. Um homem com muitos milhares de mortes na consciência alegou que fez o que fez porque estava cumprindo ordens, sem demonstrar ter qualquer sentimento de remorso ou arrependimento por causa disso.
 
O ser humano é uma criatura ambivalente, capaz de atos belos de nobreza, altruísmo e generosidade, mas igualmente capaz de atos horríveis de maldade, egoísmo e crueldade. Os teólogos reformados holandeses do Sínodo de Dordt no século XVII propuseram o princípio da depravação total do homem. Há que se entender “total” no sentido de extensão, não no sentido de profundidade. Se o ser humano fosse totalmente depravado no sentido de profundidade, deixaria de ser humano para se tornar um demônio. A totalidade da depravação é no sentido que “todos pecaram”, conforme a declaração de Paulo em Rm 3.23. Em outras palavras: a depravação humana é horizontal, e não vertical. Todos os humanos, sem exceção, pecaram. Mas quando lemos relatos a respeito do que pessoas como Hitler e Eichmann fizeram somos levados a duvidar da interpretação que fala da não profundidade e da não verticalidade da depravação humana: parece que eles foram totalmente depravados em sentido absoluto, pois não há nenhum sinal que houvesse da parte deles o menor sentimento de crise ou desconforto por terem feito o que fizeram. E não apenas os dois Adolf do governo nazista. Quantos outros líderes genocidas houve? Quantos torturadores? Quantos extermínios de povos, quantos assassinatos em massa? Desgraçadamente, exemplos não faltam. Pode-se afirmar, sem medo de exagerar, que a história da raça humana é a história da violência, seja do humano contra outro humano, seja do humano  contra o meio ambiente – sim, o ecocídio, isto é, a destruição do meio ambiente, da natureza, também é um crime e se constitui em pecado grave aos olhos do Criador. Quantas pessoas para as quais o mal é algo banal, para usar a linguagem de Arendt, uma coisa comum. Quantas pessoas para as quais matar uma criança e beber um copo d’agua está no mesmo nível.
 
Mas o mal pode ser tornar banal não apenas para humanos que se demonizaram, como Eichmann. O mal pode se tornar banal para cidadãos respeitáveis, pais de família, pessoas sérias, cumpridoras de seus deveres e que pagam seus impostos. Males menores, mas que nem por isso deixam de ser males. É muito fácil resgatar um exemplo de maldade da história, distante de nós no tempo e no espaço, ou do “outro”, que não confessa a mesma fé que professamos, ou que não é do partido político que apoiamos e dizer que ele ou ela banalizou o mal. Diante da realidade do mal moral, cada um de nós é desafiado a olhar para si e se examinar. Neste autoexame, dois extremos devem ser evitados: o da autopunição e autoflagelação, que prendem a pessoa a uma culpa sem fim, o que transforma a vida (de quem assim faz e de qualquer um que estiver ao seu redor) em um inferno, e o de banalizar o mal, considerando-o como qualquer coisa, menos o mal. A única solução para estes extremos humanos está no evangelho de Jesus Cristo, que chama o mal de mal, mas oferece perdão e recomeço.
 
Exemplos como o de Adolf Eichmann são assustadores. Mas servem para nos lembrar que Deus em Jesus Cristo nos oferece perdão, cura e libertação do mal.

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Nota
1 Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

>> Conheça o livro O Mal e a Justiça de Deus, de N. T. Wright
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 82 [ver]

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