Opinião
- 08 de abril de 2016
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A microcefalia e a força da vida na fraqueza
A experiência da hospitalidade radical aos filhos
Partindo da visão bíblica, somos ensinados que filhos são bênçãos de Deus e promovem profundas transformações de perspectiva, independente do tempo de duração na qual esta relação entre pais e filhos ocorre. Filhos promovem aprofundamento e extensão da comunidade do amor que Deus idealizou. A família, seja ela nuclear ou comunidade, será o ambiente no qual podem se desenvolver, aprofundando seu caráter para a vida e o serviço a Deus.
Em uma época na qual palavras como “felicidade”, “sucesso”, “auto-realização” norteiam a maneira pela as pessoas balizam suas vidas, se relacionam, trabalham e desenvolvem, os esforços tendem a se voltarem para um caminho de individualismo. Concepções autocentradas de conceitos como autonomia e liberdade estão tão arraigados no modo de vida contemporâneo que não temos encontrado espaço para refletir acerca do que maternidade e paternidade realmente representam como desafio e possibilidade.
Receber uma criança é o caminho de abandonar um estilo de vida individualista e permitir que a vida seja transformada de maneiras sobre as quais não se tem controle. Uma das razões pelas quais as pessoas já não têm enxergado filhos como presentes, mas como fardos, é a indisponibilidade de reorganizar vida e prioridades. Temem os efeitos e mudanças que podem causar em seus planos de realização pessoal e relacionamentos.
A sociedade de consumo tem ditado as regras e esta forma de enxergar a vida está impregnada em nossa maneira de pensar e tomar decisões. Os filhos podem ser vistos apenas como mais uma “tarefa a cumprir” na lista da vida adulta e seu desenvolvimento. Podem ser vistos apenas como uma meta na direção da realização pessoal assim como uma carreira bem sucedida, o carro do ano e o novo apartamento. Este contexto é espaço para que adultos considerem o fato de ter um filho como um direito na jornada da vida e não mais reconhecerem o amplo significado da maternidade e paternidade. Isto pode ser exemplificado com o crescente processo de escolha na separação de material genético e social, a amplificação de motivos pelos quais as crianças são concebidas e a compreensão da procriação apenas como reprodução, o que faz com que as crianças sejam vistas como produtos que podem ser manipulados com valores atribuídos.
Uma vez que os pais enxergam filhos com um olhar mercadológico na economia da vida, recai sobre eles a expectativa de um retorno do tempo e dinheiro investidos. Esta realidade transforma o conceito de filhos como presentes e os transforma apenas em fardos ou investimentos. Sob esta perspectiva, a maternidade e a paternidade responsável inclui estar consciente acerca de tudo o que significa trazer uma criança ao mundo, criando intencionalmente um contexto que permite o desenvolvimento dos filhos, sem reduzir ou ignorar os desafios reais que isso trará.
A maternidade e a paternidade de uma criança, com mais ou menos limitações, é a experiência da hospitalidade radical: assumir um compromisso de amor com alguém que não se conhece, por mais que se idealize. É na jornada que se dá a relação. É possibilidade de exercitar as virtudes cristãs no relacionamento como a misericórdia, paciência, perdão, humildade e tantas outras, num contínuo processo de crescimento mútuo. Este processo pode se aprofundar tanto no contexto mais específico da família quanto na família estendida, que é a comunidade cristã.
A comunidade cristã: crescendo no solo sagrado da vulnerabilidade
A comunidade cristã tem papel fundamental neste contexto. Ela estimula a reflexão sobre o que é ser humano à luz do paradigma Bíblico, incluindo vulnerabilidades físicas, emocionais e sociais. Cabe à comunidade também conhecer as questões bioéticas que se apresentam, promover possibilidades de relacionamento e oferecer amparo nas dificuldades. É na comunidade que as relações de afeto se aprofundam e na qual somos desafiados a viver na dependência de Deus e no amor ao próximo, para além de nossas limitações intelectuais, físicas, emocionais, sociais. Somos aperfeiçoados em nossas fraquezas, na relação com Deus e com o próximo.
A comunidade cristã tem em sua história uma longa tradição de serviços prestados no cuidado ao enfermo, ao pobre, ao fragilizado, e de tantas maneiras. Mas ainda encontramos desconforto em reconhecer e incluir o que apresenta suas fragilidades e deficiências físicas e emocionais como parte integrante do corpo de Cristo que tem muito a nos oferecer e abençoar. Como integrantes de um só corpo, quando sirvo ao que expõe sua fragilidade, também sou desafiado em minhas próprias debilidades. Sou comunidade com ele e nesta relação de afeto e crescimento somos moldados de maneira profunda sobre o significado da vida e o caráter relacional de Deus.
Seguimos juntos na direção das possíveis curas físicas e emocionais, mas nossas relações nos aprofundam em amor no “enquanto isso” e nos fortalecemos ao viver com nossas limitações. A diversidade da comunidade permite que sejamos forma visível de expressão da Graça de Deus uns aos outros. Dietrich Bonhoeffer afirma que “toda comunidade cristã precisa saber que a eliminação do frágil é a morte de uma comunidade”.2 Na vida comunitária e no compartilhar de nossas fragilidades, somos desafiados a lutar contra o orgulho, o ódio, a indiferença, a soberba e o individualismo. Enquanto Corpo de Cristo, somos encorajados a crescer em fé, esperança e amor, caminhando de maneira respeitosa no solo sagrado de nossas vulnerabilidades mútuas, de modo a cultivar um estilo de vida que encarna o amor de Deus.
Conclusão: Cristo escolheu a fragilidade
Somos constantemente tentados a abandonar aquilo que nos traz sofrimento, principalmente nossas deficiências indesejadas. Negamos ou encobrimos nossas falhas, nos esquivando da dor e da consciência das limitações. Porém, na perspectiva cristã, Deus nos ama e nos sustenta na vulnerabilidade, e assim somos inspirados a acolher o sofrimento como graça. Participamos dos sofrimentos de Cristo à luz da glória que há de ser revelada e reconhecemos os sinais da força de Deus na nossa fraqueza enquanto aguardamos a completa restauração.
A fé cristã continua afirmando um Deus da autolimitação, que renuncia seu poder. Um Deus que se encarna no espaço e no tempo, se esvazia da glória, e que ama o fraco a ponto de se encarnar para estar perto e sentir a sua dor. Para cuidar de alguém é preciso sentir com o outro, e o nosso Deus sabe o que é padecer. Se a dignidade humana aparece mais clara na sua debilidade, como na criança e no idoso, Cristo escolheu nascer como um vulnerável em uma família pobre da periferia do Império Romano. Jesus se apresenta ao mundo como uma criança sem lugar que espera ser cuidada. Em resposta ao evangelho, acolhemos os pequeninos em suas deficiências, afirmando que até mesmo Deus escolheu a fragilidade e espera nossa resposta de amor.
Stanley Hauerwas afirma que os cristãos não colocam sua esperança em seus filhos; pelo contrário, seus filhos são sinal da sua esperança. Ao corajosamente dizer sim à vida em toda sua vulnerabilidade, mesmo diante da dor e incertezas, os cristãos afirmam a convicção de que Deus não abandonou este mundo. É o amor de Deus derramado por meio do Espírito de Jesus que sustenta nossas frágeis iniciativas de cuidado. Porque confiamos Nele, encontramos força na fraqueza e respondemos com fé, amor e esperança para acolher a vulnerabilidade e as deficiências de uma nova vida.
• Davi Chang Ribeiro Lin é psicólogo clínico, mestre em Teologia pelo Regent College (Canadá) e doutorando em Teologia (FAJE). É pastor na Comunidade Evangélica do Castelo, em Belo Horizonte (MG).
• Karen Bomilcar é psicóloga clínica hospitalar, mestre em Teologia e Estudos Interdisciplinares pelo Regent College (Canadá). Atualmente reside em São Paulo (SP) onde serve no discipulado e cuidado pastoral de pessoas de diversas comunidades cristãs.
Notas:
1. Sarah Williams, “The Shaming of the Strong: the Challenge of an unborn life”
2. Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão, p. 98.
* DOSSIÊ é uma nova seção do Portal Ultimato em que damos espaço para textos mais longos, com aprofundamento maior de questões.
Foto: Mila P / Freeimages.com
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