Opinião
- 20 de dezembro de 2021
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A mensagem cristã é de carne e osso
Por Bernardo Cho
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida. A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada. Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Escrevemos estas coisas para que a nossa alegria seja completa. – 1 João 1.1-4
Nunca tivemos acesso a meios tão variados de transmissão de ideias e informações. Contudo, embora quase todos os habitantes da terra enxerguem esse fenômeno com grande entusiasmo, qualquer pessoa que se ocupa em proclamar o evangelho deve se perguntar o que de fato está em jogo para a mensagem cristã quando nos rendemos cegamente a essa revolução comunicativa. Será que a única diferença entre pregar a Cristo e falar de qualquer outro assunto (por exemplo, política, culinária ou finanças) é o conteúdo, não importando o meio de comunicação que utilizamos, desde que a ideia e a informação que queremos transmitir cheguem até nosso público?
O Natal nos oferece recursos fundamentais para refletirmos sobre essa questão, já que esta data nos recorda de um dos eventos mais importantes da história: a encarnação – o momento em que o próprio Deus entrou no enredo da salvação para cumprir seus planos redentivos e, assim, comunicar o cerne de seu caráter de uma vez por todas ao seu povo.
O autor de 1 João 1.1-4 proclamava a mensagem cristã em um contexto onde circulavam algumas ideias e informações falsas acerca de Jesus. Tais ideias e informações eram falsas, porém, não somente em termos de conteúdo, mas também em sua contradição do meio de comunicação escolhido por Deus para se revelar definitivamente à humanidade. João supervisionava igrejas na Ásia Menor, sobre as quais certos padrões de pensamento oriundos da cultura helenística exerciam grande influência. Alguns gregos acreditavam que o mundo material era qualitativamente inferior à “dimensão invisível” das coisas, o que não raro encorajava uma postura de menosprezo pela realidade visível, material, física. Nesse ambiente, então, algumas décadas após a chegada do evangelho naquela região, certas pessoas passaram a acomodar a mensagem cristã à ideia de que o que importava de verdade era o “etéreo” – ou, na linguagem que muitos hoje ainda teimam em empregar, o “mundo espiritual”. Afinal, a mensagem de um Deus que se fez ser humano, visível, material, físico, para nos salvar por meio de seu próprio sangue, era absurda demais para aquelas mentes ocupadas com especulações metafísicas.
Como resultado, perto do final do primeiro século, João deparou com versões embrionárias de uma heresia que veio a ser depois denominada docetismo. O termo “docetismo” vem do grego dókēsis, que significa “aparência”, e no cerne do que os hereges dos dias de João pregavam estava a ideia de que a humanidade de Jesus, principalmente seus sofrimentos, aconteceram somente na “aparência”. Ou seja, a única coisa que importava eram os ensinamentos “espirituais” de Jesus, enquanto sua existência humana não passava de uma ilusão de ótica. (Suspeito que esses hereges, se vivessem em nosso tempo, seriam grandes entusiastas da “construção” de igrejas no metaverso.) E, como resultado de seu desprezo pela encarnação, esse grupo passou a pregar, primeiro, que o evangelho se resumia a um conteúdo que apenas os “ungidos” recebiam por meio de experiências subjetivas, como se o “mundo espiritual” transferisse ideias e informações sobre Jesus por uma espécie de download, e, segundo, que a qualidade das relações dos crentes tinha valor secundário na caminhada cristã. Isso explica por que, em 1 João, o autor inspirado insiste que qualquer doutrina que não esteja centralizada na encarnação é em essência anticristã (1Jo 2.18-25; 5.1-12), que a verdadeira “unção” é aquela que deriva do ensino apostólico (1Jo 2.26-27), e que quem não ama a comunidade da fé sequer conhece a Deus (1Jo 3.11-20; 4.7-21).
É por isso que João inicia sua carta dizendo que a mensagem cristã está necessariamente ancorada no evento histórico em que Deus se revelou a nós, em carne e osso, na pessoa de Jesus. Porque a Palavra da Vida não é um conteúdo abstrato que Deus transmitiu à humanidade por algum método impessoal de comunicação, mas uma realidade que se fez visível no semblante de seu Filho: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida” (1Jo 1.1). A mensagem cristã, em outras palavras, envolve, sim, a transmissão de ideias e informações, mas ela é muito mais que ideias e informações: ela diz respeito a uma pessoa que viveu no tempo e no espaço, entre seu povo. O prólogo do Evangelho de João vai na mesma direção: “a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós” (Jo 1.14).
Assim, para João, tão essencial quanto anunciar o conteúdo do evangelho é afirmar o meio de comunicação que Deus usou para transmitir essa mensagem à humanidade. Ou melhor: porque a mensagem cristã diz respeito a uma pessoa que viveu entre seus discípulos, o conteúdo da mensagem cristã diz respeito também à forma como essa mensagem foi transmitida por Deus. Parte fundamental do evangelho é que, em vez de ter sido assistido pela tela de um dispositivo eletrônico, ele foi contemplado, observado e até mesmo apalpado na vida real por aqueles que encontraram Jesus. O evangelho – a comunicação final de Deus – aconteceu em uma vida que foi vivida: “A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada” (1.2).
À luz disso, é necessário enfatizar que a encarnação tem força normativa à nossa proclamação. O Natal nos lembra de que a mensagem cristã não é um mero conjunto de ideias ou informações que pode ser ensinado além das “aparências” – muito menos aprendido em sua totalidade – pelo WhatsApp, pelo Youtube, ou pelo Instagram. É impossível viver o discipulado de maneira completa por EAD, por lives ou por qualquer outra espécie de interação virtual. Da mesma maneira que só pode haver vida eterna aos crentes porque Deus se materializou na pessoa de Jesus, nossa proclamação jamais pode estar divorciada do imperativo de encarnarmos o evangelho. Pregar a palavra de Deus envolve a transmissão de ideais e informações, mas já que essas ideias e informações dizem respeito a uma pessoa, a palavra de Deus só é transmitida fielmente quando ela é acompanhada de vidas que exemplificam o evangelho. Essa é a razão de João colocar toda a ênfase da comunicação da Palavra da Vida no contexto da comunidade da fé: “Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.” (1.3). O evangelho bíblico sempre desemboca em uma vida encarnada de discipulado, em comunidade, na comunhão com a Trindade e com os redimidos pelo sangue de Cristo.
Dessa maneira, a igreja pode até se apropriar dos muitos meios lícitos de transmissão do evangelho disponíveis hoje. Mas a igreja, que não por mera coincidência é também chamada de corpo de Cristo, jamais deve se esquecer de que ela é o meio de comunicação das verdades de Deus. O apóstolo Paulo, autor de grande parte das cartas que compõem o Novo Testamento, explica que é mediante a igreja que “a multiforme sabedoria de Deus” se torna “conhecida dos poderes e autoridades nas regiões celestiais” (Ef 3.10). E o mesmo Paulo exorta seus leitores a serem seus imitadores, assim como ele é de Cristo (cf. 1Co 11.1). Ninguém discute a importância das epístolas paulinas como veículos de comunicação do pensamento apostólico. No entanto, o paradigma máximo da proclamação da mensagem cristã é a encarnação. O Criador do universo se comunicou em carne e osso. Que sua graça nos ajude a proclamá-lo seguindo o exemplo que ele mesmo deixou.
• Bernardo Cho é PhD em Linguagem, Literatura e Teologia do Novo Testamento pela Universidade de Edimburgo, professor de Novo Testamento e coordenador dos Estudos Doutorais em Ministério no Seminário Teológico Servo de Cristo, e pastor da igreja Presbiteriana do Caminho.
Leia mais:
» A encarnação de Cristo, por C. S. Lewis
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida. A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada. Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Escrevemos estas coisas para que a nossa alegria seja completa. – 1 João 1.1-4
Nunca tivemos acesso a meios tão variados de transmissão de ideias e informações. Contudo, embora quase todos os habitantes da terra enxerguem esse fenômeno com grande entusiasmo, qualquer pessoa que se ocupa em proclamar o evangelho deve se perguntar o que de fato está em jogo para a mensagem cristã quando nos rendemos cegamente a essa revolução comunicativa. Será que a única diferença entre pregar a Cristo e falar de qualquer outro assunto (por exemplo, política, culinária ou finanças) é o conteúdo, não importando o meio de comunicação que utilizamos, desde que a ideia e a informação que queremos transmitir cheguem até nosso público?
O Natal nos oferece recursos fundamentais para refletirmos sobre essa questão, já que esta data nos recorda de um dos eventos mais importantes da história: a encarnação – o momento em que o próprio Deus entrou no enredo da salvação para cumprir seus planos redentivos e, assim, comunicar o cerne de seu caráter de uma vez por todas ao seu povo.
O autor de 1 João 1.1-4 proclamava a mensagem cristã em um contexto onde circulavam algumas ideias e informações falsas acerca de Jesus. Tais ideias e informações eram falsas, porém, não somente em termos de conteúdo, mas também em sua contradição do meio de comunicação escolhido por Deus para se revelar definitivamente à humanidade. João supervisionava igrejas na Ásia Menor, sobre as quais certos padrões de pensamento oriundos da cultura helenística exerciam grande influência. Alguns gregos acreditavam que o mundo material era qualitativamente inferior à “dimensão invisível” das coisas, o que não raro encorajava uma postura de menosprezo pela realidade visível, material, física. Nesse ambiente, então, algumas décadas após a chegada do evangelho naquela região, certas pessoas passaram a acomodar a mensagem cristã à ideia de que o que importava de verdade era o “etéreo” – ou, na linguagem que muitos hoje ainda teimam em empregar, o “mundo espiritual”. Afinal, a mensagem de um Deus que se fez ser humano, visível, material, físico, para nos salvar por meio de seu próprio sangue, era absurda demais para aquelas mentes ocupadas com especulações metafísicas.
Como resultado, perto do final do primeiro século, João deparou com versões embrionárias de uma heresia que veio a ser depois denominada docetismo. O termo “docetismo” vem do grego dókēsis, que significa “aparência”, e no cerne do que os hereges dos dias de João pregavam estava a ideia de que a humanidade de Jesus, principalmente seus sofrimentos, aconteceram somente na “aparência”. Ou seja, a única coisa que importava eram os ensinamentos “espirituais” de Jesus, enquanto sua existência humana não passava de uma ilusão de ótica. (Suspeito que esses hereges, se vivessem em nosso tempo, seriam grandes entusiastas da “construção” de igrejas no metaverso.) E, como resultado de seu desprezo pela encarnação, esse grupo passou a pregar, primeiro, que o evangelho se resumia a um conteúdo que apenas os “ungidos” recebiam por meio de experiências subjetivas, como se o “mundo espiritual” transferisse ideias e informações sobre Jesus por uma espécie de download, e, segundo, que a qualidade das relações dos crentes tinha valor secundário na caminhada cristã. Isso explica por que, em 1 João, o autor inspirado insiste que qualquer doutrina que não esteja centralizada na encarnação é em essência anticristã (1Jo 2.18-25; 5.1-12), que a verdadeira “unção” é aquela que deriva do ensino apostólico (1Jo 2.26-27), e que quem não ama a comunidade da fé sequer conhece a Deus (1Jo 3.11-20; 4.7-21).
É por isso que João inicia sua carta dizendo que a mensagem cristã está necessariamente ancorada no evento histórico em que Deus se revelou a nós, em carne e osso, na pessoa de Jesus. Porque a Palavra da Vida não é um conteúdo abstrato que Deus transmitiu à humanidade por algum método impessoal de comunicação, mas uma realidade que se fez visível no semblante de seu Filho: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida” (1Jo 1.1). A mensagem cristã, em outras palavras, envolve, sim, a transmissão de ideias e informações, mas ela é muito mais que ideias e informações: ela diz respeito a uma pessoa que viveu no tempo e no espaço, entre seu povo. O prólogo do Evangelho de João vai na mesma direção: “a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós” (Jo 1.14).
Assim, para João, tão essencial quanto anunciar o conteúdo do evangelho é afirmar o meio de comunicação que Deus usou para transmitir essa mensagem à humanidade. Ou melhor: porque a mensagem cristã diz respeito a uma pessoa que viveu entre seus discípulos, o conteúdo da mensagem cristã diz respeito também à forma como essa mensagem foi transmitida por Deus. Parte fundamental do evangelho é que, em vez de ter sido assistido pela tela de um dispositivo eletrônico, ele foi contemplado, observado e até mesmo apalpado na vida real por aqueles que encontraram Jesus. O evangelho – a comunicação final de Deus – aconteceu em uma vida que foi vivida: “A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada” (1.2).
À luz disso, é necessário enfatizar que a encarnação tem força normativa à nossa proclamação. O Natal nos lembra de que a mensagem cristã não é um mero conjunto de ideias ou informações que pode ser ensinado além das “aparências” – muito menos aprendido em sua totalidade – pelo WhatsApp, pelo Youtube, ou pelo Instagram. É impossível viver o discipulado de maneira completa por EAD, por lives ou por qualquer outra espécie de interação virtual. Da mesma maneira que só pode haver vida eterna aos crentes porque Deus se materializou na pessoa de Jesus, nossa proclamação jamais pode estar divorciada do imperativo de encarnarmos o evangelho. Pregar a palavra de Deus envolve a transmissão de ideais e informações, mas já que essas ideias e informações dizem respeito a uma pessoa, a palavra de Deus só é transmitida fielmente quando ela é acompanhada de vidas que exemplificam o evangelho. Essa é a razão de João colocar toda a ênfase da comunicação da Palavra da Vida no contexto da comunidade da fé: “Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.” (1.3). O evangelho bíblico sempre desemboca em uma vida encarnada de discipulado, em comunidade, na comunhão com a Trindade e com os redimidos pelo sangue de Cristo.
Portanto, neste período em que celebramos o Natal enquanto ao mesmo tempo navegamos essa explosão de novas tecnologias de comunicação, é vital que jamais deixemos de ancorar a proclamação da mensagem cristã na encarnação. O evangelho nunca deve ser reduzido a um conteúdo que pode ser transmitido instantaneamente pelas redes virtuais. O evangelho é uma pessoa que caminhou na Palestina dois milênios atrás e que continua a se fazer conhecido conforme sua graça trabalha na vida daqueles que o seguem. É este ponto, então, que o Natal nos encoraja a nunca perder de vista: o meio de comunicação definitivo de Deus foi, e continua a ser, a encarnação. Deus se comunicou de uma vez por todas em Jesus – na vida que ele viveu, na morte que ele sofreu e na ressurreição que ele recebeu. E Deus continua a se comunicar por meio daqueles que seguem a Jesus, que é a Palavra encarnada.
• Bernardo Cho é PhD em Linguagem, Literatura e Teologia do Novo Testamento pela Universidade de Edimburgo, professor de Novo Testamento e coordenador dos Estudos Doutorais em Ministério no Seminário Teológico Servo de Cristo, e pastor da igreja Presbiteriana do Caminho.
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» A encarnação de Cristo, por C. S. Lewis
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