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Opinião

A inquietante trajetória de Ronald Sider

Por Tim Stafford
 
RONALD SIDER (1939-2022). Morreu nesta quarta-feira, 27 de julho, o teólogo e autor prolífico, conhecido carinhosamente como Ron Sider, especialmente pelo clássico “Cristãos Ricos em Tempo de Fome”, que influenciou boa parte da igreja nos anos 1970 e 1980. Nos anos 2000 veio “O Escândalo do Comportamento Evangélico”, publicado no Brasil pela Editora Ultimato.

Ultimato lamenta a morte do pastor, teólogo e também amigo de muitos brasileiros. Tim Stafford nos ajuda a entender a vida e o legado de Sider: “A chave para entender Ron Sider não é sua política. É sua teologia".

A seguir, a íntegra do artigo de Tim Stafford, publicado originalmente na edição 317, da revista Ultimato.
 
*  *  *  *  *  
 
SIDER é um profissional diversificado. Um historiador que ensina teologia, e que fala e escreve sobre política e economia. Seu currículo acadêmico é exemplar: é PhD em história da Reforma e tem artigos publicados em jornais prestigiados. Teologicamente, é um evangélico equilibrado, profundamente comprometido com a Bíblia, com uma comunicação entusiasmada do evangelho e uma fé pessoal transformadora. Politicamente, é quase um democrata -- exceto nas questões de homossexualidade e aborto.
 
Em geral, Sider não é um radical fervoroso. Ainda assim, seria difícil pensar em outro evangélico mais ferrenhamente criticado por ser “radical”.
 
Na realidade, Sider é criticado tanto pela Direita quanto pela Esquerda, principalmente quando sustenta posições evangélicas em encontros ecumênicos. “Já fui agredido duas vezes”, afirma, “na Austrália por teonomistas (que creem na aplicação das leis do Antigo Testamento nos dia de hoje), e em Minnesota, Estados Unidos, por advogados defensores da causa gay”. A maioria das críticas, no entanto, vem da Direita. David Chilton, um intelectual conservador, respondeu ao mais conhecido livro de Sider, “Cristãos Ricos em Tempo de Fome”, com o livro “Productive Christians in an Age of Guilt Manipulators” (Cristãos produtivos em uma era de manipuladores inescrupulosos).
 
Para cada nova edição do livro de Sider, Chilton lançou uma nova edição de sua crítica, chegando a ponto de reproduzir a capa de cada publicação para que a resposta parecesse uma réplica perfeita. Outro exemplo é o livro “A Generation That Knew Not Josef” (Uma geração que não conheceu Josef), de Lloyd Billingsley’s, que compara Sider aos americanos que ingenuamente promoveram o genocida Josef Stalin.
 
Sider incomoda até mesmo pessoas que não são particularmente conservadoras. A satírica revista cristã “The Wittenburg Door” chegou a acusá-lo de promover um farisaísmo legalista. Seus ataques, no entanto, não são à pessoa de Sider. Ele apresenta suas aspirações políticas e pessoais -- uma vida simples, por exemplo -- de forma bastante amistosa. “Eu vivo em uma bela casa” -- diz o sociólogo Tony Campolo. “Não tenho problemas em convidar Ron para jantar. Não acho que ele vai entrar, observar minha casa e dizer: ‘Campolo, como você pode viver desse jeito?’ Em vez de me sentir julgado por causa do lugar onde vivo, sempre me sinto fortalecido em saber para onde estou indo.
 
Ainda assim, a mensagem de Sider é desconfortável -- não importa de que forma ele a apresente. Seu “crime” é aplicar a moralidade evangélica -- pecado, arrependimento e necessidade de transformação -- a áreas pouco habituais, como política e economia. Se fosse moralista com relação ao sexo, nenhum evangélico faria objeção; porém, quando ele é moralista em relação à opulência, está sendo legalista. Se fosse taxativo diante do orçamento licencioso do Congresso, poucos se importariam; mas quando diz que a justiça de Deus requer que mudemos a estrutura tarifária da América, ele incomoda as pessoas.
 
Sider resiste a ser tachado de político liberal e aborda questões nas quais é conservador -- homossexualismo, aborto, financiamento escolar1 e educação infantil. “Ainda assim”-- diz Campolo, que é um grande admirador de Sider, “se você quiser saber a opinião dele sobre a pena de morte, sobre El Salvador, sobre o desarmamento e o militarismo, nem precisa perguntar. Se parecer liberal, cheirar a liberal, tiver gosto de liberal, então é liberal”. Porém, ao contrário de Campolo, muitos evangélicos não acham a palavra “liberal” tão nociva assim. Há grande identificação da teologia conservadora com a política conservadora, e alguns se aborrecem ao notar posições politicamente liberais apoiadas em nome de Deus.
 
Sider sabe que essa não é uma época propícia para o liberalismo; porém, sua resistência ao rótulo vai além das tendências políticas. Ele quer que o Corpo de Cristo permaneça unido, e acha que os rótulos políticos são segregacionistas. Com bastante calma, ele conta de quando viajou até a comunidade L’Abri, na Suíça, para falar com os dois líderes que sucederam Francis Schaeffer, fundador da organização. Sider havia lido suas críticas e estava certo de que eles não o tinham compreendido bem. Depois de uma longa conversa, percebeu que eles não mudariam de ideia. Foi embora com a sensação de que eles ainda o consideravam uma pessoa perigosa, que desorientava outros cristãos. “Francis Schaeffer! Eu era tão próximo dele!” -- diz decepcionado.
 
Apesar de geralmente não levar as críticas muito a sério e de gostar de um bom debate, Sider se chateia quando pessoas que ele respeita o veem como uma ameaça para o Corpo de Cristo. Para ele, a causa principal não é a política ou a ecologia, muito menos a paz ou a vida simples. A causa principal é a igreja. Uma de suas aspirações é reunir todos os cristãos politicamente conscientes em uma sala e, partindo da Bíblia, buscar as posições comuns.
Ele acredita firmemente que todos os cristãos creem nas mesmas coisas e que suas diferenças, políticas ou de outra ordem, são superficiais. “Se realmente somos bíblicos” -- diz --, “nossos planos vão transpor essas questões”.

Raízes evangélicas

Sider e sua esposa (os dois filhos já saíram de casa, mas a filha, o genro e a neta moram temporariamente com eles) moram em um antigo duplex em um bairro de maioria negra na Filadélfia. Ele deixa claro que não vive na pobreza, e é verdade. A vizinhança é um pouco precária, mas tem tentado ganhar respeitabilidade -- não é um gueto. A mobília é antiga, mas bem conservada. Eles compram a maioria de suas roupas em brechós, mas têm telefone sem fio, secretária eletrônica e uma ótima TV. Em certo aspecto, essa vida urbana se diferencia muito das origens de Sider, em uma fazenda de quase 112 hectares em Ontário, no Canadá. Outras vezes, não parece ser tão diferente: as casas rurais da sua infância eram igualmente confortáveis, apesar de os móveis também serem antigos. Os Sider se aquecem com um fogão a lenha. A chaminé fica na cozinha e a pilha de lenha, nos fundos da casa. Sider recolhe a madeira das árvores ao redor de sua casa e ele mesmo as corta para se exercitar -- reminiscências da juventude.
 
Em tempos difíceis, Sider lembra a si mesmo que pode voltar à fazenda. “Eu amo aquilo. Sinto-me atraído pela cidade, mas ainda sou um menino da fazenda. Eu teria sido muito feliz como fazendeiro.” As melhores lembranças são de quando trabalhava com seu pai e conversavam sobre quais sementes plantar.
 
Seu pai foi pastor da “Brethren in Christ”, uma denominação com características rurais que combina elementos das tradições anabatista, pietista e de santidade. Sider se lembra vividamente de seu conflito e culpa ao decidir partir o cabelo ao meio ou usar uma gravata -- escolhas então consideradas vãs e mundanas. Ele se converteu em um encontro de avivamento e parece ter apenas boas lembranças de sua educação na igreja. “Às vezes digo que fui santificado dezenas de vezes, mas nunca funcionou” -- diz sorrindo. “Mas aprecio muito esse lado da teologia. Acho que o tipo de facilidade com que o protestantismo em geral tolera o pecado sem esperança de mudança não tem respaldo no Novo Testamento. O Espírito Santo quer que continuemos a progredir, apesar de isso ser um processo.”
 
Ainda assim, não era fácil lidar com as expectativas perfeccionistas. Sider lembra que, quando garoto, se sentia aliviado ao ouvir seu pai praguejar quando morria uma vaca valiosa: “Então eu sabia que ele não era totalmente santificado”. Já em relação à sua piedosa mãe, ele diz que quanto a ela nunca teve tanta certeza.
 
Sider frequentou uma pequena escola rural que ficava perto de sua casa. Seu pai tinha sido o último pastor do distrito deles em Ontário -- por designação --, sem ao menos uma educação de nível médio. Ele queria que seus filhos tivessem o que não teve. Ron, o primeiro filho homem, era um estudante de destaque e ótimo atleta (hockey era seu esporte favorito). Ir para a faculdade após terminar o ensino médio parecia óbvio para ele. Orgulhoso, foi para a Universidade Luterana de Waterloo, o primeiro membro de sua família a cursar uma faculdade. Solenemente, comprou um casaco e uma pasta -- caros para seu padrão de vida -- com o nome da faculdade.
 
Waterloo era uma “antiga universidade cristã com poucos professores cristãos e muita gente secular”. Como pensava em ser professor de história no ensino médio, Sider encontrou dois mentores de destaque. O primeiro era um professor de história entusiasmado e agnóstico, que o introduziu às “principais dúvidas intelectuais que surgem em qualquer um que viveu depois do iluminismo e está por dentro dos fatos”.
 
Também o introduziu ao ativismo social, levando-o à primeira manifestação -- um protesto contra o massacre policial ocorrido em Sharpeville, na África do Sul, em 1960. Seu segundo mentor, John Warwick Montgomery, era bem diferente do primeiro. Evangélico declarado, ele não escondia sua intelectualidade nem sua crença de que a ressurreição fazia parte da história. Sider, que começara a tentar se livrar das dúvidas, viu sua fé ser fortificada e estimulada. Ao fim da graduação, uma nova esperança surgia: seguir os passos de Montgomery como um professor e apologista na universidade secular. Até o dia em que recebeu uma carta da Universidade de Yale oferecendo-lhe uma bolsa integral. Ele dobrou os joelhos, “infinitamente agradecido”. O garoto de fazenda, orgulhoso por estar na Universidade de Waterloo, estudaria com personalidades como Roland Bainton e Jaroslav Pelikan. Ele levaria a mensagem da ressurreição histórica para o mundo secular.
 
Reviravolta

Sider chegou a Yale se sentindo um caipira, sem nem mesmo saber como se vestir. Ele descreve seus melhores amigos da época como “sofisticados de Wheaton” (uma combinação de palavras que talvez não se aplique a todos os estudantes de Yale). Pela primeira vez na vida, estava longe de suas raízes e sem saber se venceria o desafio. No entanto, se saiu bem academicamente e, “ansiando por sentir a força máxima do desafio intelectual”, graduou-se na Escola de Divindade de Yale, além de se tornar PhD em história. Sua tese doutoral, sobre o reformador radical Karl Bodenstein von Karlstadt, chegou a ser publicada. Além disso, produziu artigos acadêmicos para jornais prestigiados desenvolvendo as ideias de Montgomery sobre a ressurreição historicamente crível.
 
Sider acha uma ironia frustrante o fato de um de seus críticos conservadores, Gary North, acusá-lo de ser um existencialista que não acredita na ressurreição histórica. “Quero insistir na importância da revelação proposicional. Quero insistir na importância da razão na apologética.”
 
Durante a faculdade, Sider antecipou sua carreira de professor universitário liderando um grupo da InterVarsity, no qual ensinava sobre a ressurreição. Então veio a dramática reviravolta, embora não parecesse na época. Sider recebeu uma carta da Faculdade Messiah, uma pequena escola cristã ligada a sua denominação original. Eles estavam abrindo uma unidade no subúrbio da Filadélfia, associada à Universidade Temple, e queriam saber se ele estava interessado. “Liguei pra eles quase na mesma hora”-- recorda. Seus companheiros acharam a decisão estranha, mas ele não retrocedeu. A localização da escola supria seu senso de chamado ao ativismo social. A filiação com a Temple supria suas teorias sobre como implementar e desenvolver as ideias cristãs no meio universitário.
 
No entanto, a Messiah o afastou dos desafios seculares de uma universidade (ele chegou a se mudar ainda para mais longe, para o Seminário Leste). Em vez de publicações acadêmicas sobre história, começou a escrever para um público popular -- cristão, na verdade. Em vez de se tornar um evangelista, se tornou pastor -- assim como seu pai. Começou a aplicar seu conhecimento teológico e histórico aos problemas de justiça e pobreza, e às respostas que os cristãos deveriam dar.
 
Em Yale, ele havia se interessado por justiça social -- ajudou a organizar o registro dos eleitores e se filiou a uma associação em prol das pessoas negras. Porém, a faculdade Messiah exigia dedicação integral. Seus dois filhos frequentaram escolas suburbanas. Sua esposa -- durante o período de faculdade ele havia se casado com Arbutus Lichti, uma garota menonita do interior -- se tornou envolvida no sistema escolar da Filadélfia. Logo ela estava ajudando a organizar um grupo politicamente ativo de pais e liderando protestos na prefeitura. Ron passava o tempo escrevendo artigos, organizando seminários para pastores e promovendo a “Evangélicos por McGovern”, uma pequena organização política que começou a chamar atenção por causa de seu nome incomum. O nome era uma alusão à Declaração de Chicago de 1973, um documento não-partidário que favorecia o envolvimento de cristãos evangélicos em questões sociais e políticas. Sider se tornou o elo entre um pequeno grupo de evangélicos interessados em questões sociais e políticas -- a maioria jovens idealistas, com boa educação e interesse pela justiça social e racial e por um estilo de vida simples.
 
Um dos primeiros artigos populares que Sider escreveu foi para a revista da InterVarsity. Ele tentava abordar de forma prática um tema evangélico peculiar: como responder a um problema social -- a pobreza mundial -- por meio de escolhas pessoais e rotineiras.
 
Ele defendia uma contribuição gradativa. Sugeria que, conforme a renda crescesse, também deveria crescer a porcentagem da doação. Isso seria uma espécie de imposto quase confiscatório para os mais altos escalões, exceto pelo fato de que a ênfase estava em uma doação voluntária e de bom grado.
 
O artigo chamou a atenção e a InterVarsity Press mostrou interesse em publicar um livro sobre o assunto. Sem grandes expectativas, o lançamento aconteceu em 1977. Porém, o livro foi um sucesso de vendas e mudou a vida dos Sider.
 
Cristãos Ricos

“Cristãos Ricos em Tempo de Fome” já vendeu mais de 400 mil exemplares -- um recorde memorável, tratando-se de um livro sobre justiça social. Já foram lançadas cinco edições e continua vendendo bem.
 
O livro mostra detalhes das enormes diferenças entre o Ocidente rico e industrializado e o Terceiro Mundo. Aborda a preocupação de Deus com o pobre e sua ira contra a riqueza complacente e injusta -- um tema, como demonstra Sider, profundamente bíblico, apesar de muito negligenciado. Assim, Sider tenta analisar nossa situação contemporânea. Por que tantos passam fome, enquanto outros desfrutam de uma riqueza sem precedentes, e o que Deus espera que façamos em relação a isso?
 
É nesse ponto que Sider se torna desconfortavelmente prático, e no que tem sido mais criticado. Para ele, não é suficiente que os cristãos sejam justos na vida pessoal e generosos em suas doações. Ele discute a “estrutura do mal” -- a forma como a injustiça pode ser incorporada ao sistema, de modo que ninguém seja realmente responsável: “É assim que as coisas são”.
 
E aí está o ponto forte e o ponto fraco do livro de Sider. Por não ser um economista, ele não é muito convincente ao tocar em assuntos tão amplos como dívida externa, a estrutura do comércio mundial e aquecimento global.
 
Como escreveu o filósofo George Mavrodes logo após o lançamento de “Cristãos Ricos”, Sider parece não entender que a economia é um sistema e que você não pode simplesmente mudar uma faceta desse sistema sem gerar dezenas de outras mudanças inesperadas. A análise de Sider parte das queixas ouvidas em muitos fóruns internacionais, proferidas principalmente por economistas liberais e do Terceiro Mundo. O que ele não menciona é que elas foram respondidas pelos conservadores.
 
O longo debate prossegue mais ou menos assim: os liberais provam que o sistema de economia mundial está falido, como mostra a pobreza intolerável, e sugerem formas como o sistema poderia ser mudado. Os conservadores respondem que, se a situação já está ruim, pode ficar ainda pior se os governos tentarem intervir nos sistemas do livre-comércio. Então, os conservadores são céticos sobre uma mudança no sistema, especialmente quando ela envolve a obtenção ou a expansão de poderes governamentais. Os liberais tendem a ver os males da pobreza como uma exceção notável à regra e acusam os ricos de a permitirem; os conservadores tendem a ver o desenvolvimento econômico do Ocidente como regra e responsabilizam os pobres por não adotarem o modelo. Os argumentos tendem a ser mais técnicos desse ponto em diante. Certamente eles não são simples. Nem sempre é claro por que algumas nações se tornaram ricas e outras permanecem na miséria; também não é claro como a situação pode mudar.
 
De forma clara e talvez simplista, Sider representa o lado liberal desse debate. Nesse grupo estão também alguns evangélicos, que suspeitariam de qualquer cristão que apoiasse o ex-senador republicano Jesse Helms. No entanto, ao ir além, ao fazer dessas opiniões a base para a moralidade, ele pisa no calo de alguns. Por exemplo: “Se a Palavra de Deus é a verdade” -- afirma Sider --, “então todos nós que vivemos em nações prósperas estamos em pecado. Nós lucramos a partir de uma injustiça sistemática. Somos culpados de um grande ultraje contra Deus e contra nosso vizinho”.
Porém, e se nossa prosperidade não for baseada no roubo, e sim na criatividade nacional, no trabalho árduo e nos valores democráticos? E se a Palavra de Deus for verdadeira e a análise de Sider for falha?
 
Alguns críticos acusam Sider de ser socialista, o que certamente não é verdade. De fato, ele é a favor das tomadas locais de decisão e da concessão de autonomia de propriedade: “Fui um garoto de fazenda de Ontário e não acho que você encontrará muitos fazendeiros que queiram que o governo venha e tome conta de tudo”.
 
Uma crítica justa é que, assim como muitos americanos conservadores e liberais, ele exagera sobre o papel dos Estados Unidos no mundo. Ao se concentrar na falha dos americanos ele parece sugerir que, se não fosse por eles, o mundo não estaria faminto.
 
Se Sider falha ao analisar a estrutura do mal, aí está também seu ponto forte. Ele demonstra pouco dogmatismo sobre qualquer solução econômica provável. O que faz é defender insistentemente a posição de que a economia global não é apenas uma discussão técnica, mas uma batalha entre o bem e o mal. Ele continua nos lembrando que algumas pessoas são tão pobres que estão literalmente morrendo de fome, enquanto nós, seus vizinhos, vivemos no luxo. A pobreza é uma questão moral; é uma questão com a qual Deus se importa profundamente. Se não sabemos como mudar a situação, pelo menos devemos -- precisamos -- tentar aprender. Sider demonstra uma urgência moral que falta em muitas análises. A forma como ele acrescenta o pecado à linguagem sobre pobreza mundial é uma contribuição unicamente evangélica. Se isso irrita outras pessoas, ele não se importa. Seus irmãos e irmãs estão famintos.
 
Nova geração

“Gostaria de levantar uma questão” -- diz Ron Sider. Ele está em uma pequena cidade do Estado de Nebraska, numa manhã de outubro, de terno azul claro, sem gravata, falando para cerca de cem pastores da Aliança Evangélica que se reuniram para seu retiro anual. “Em um raio de 160 quilômetros de onde moram, quantos de vocês conhecem pelo menos cinco congregações que estão trabalhando tanto com evangelismo quanto com questões sociais em sua comunidade local, e fazendo isso de uma forma que vocês admiram?” Ninguém levanta a mão. Sider repete a pergunta, pedindo que eles digam pelo menos três congregações. Quando pergunta por apenas uma congregação, alguns levantam a mão.
 
“Quantos de vocês acham que Jesus Cristo quer que sua igreja seja entusiasmada tanto com evangelismo quanto com trabalho social?” Todos levantam as mãos.
 
Então ele conta de Mark, um jovem sul-africano que “tinha medo de se tornar cristão porque perderia sua paixão por justiça”. Sider o convenceu de que sua paixão cresceria se ele seguisse a Jesus. Ele descreve como “andou pela sala cantando louvores ao Senhor” depois de orar com Mark. Será que não existem outras pessoas como Mark, que gostariam de vir até Jesus, mas hesitam porque nunca viram os cristãos manifestando suas preocupações com justiça? -- Sider pergunta. Será que a falta de ação social na igreja esteja, de fato, impedindo o evangelismo?
 
Sider conta de quando compareceu ao encontro do Conselho Nacional de Igrejas, onde eram oferecidos dezenas de workshops sobre paz, ecologia, pobreza e injustiça, mas nenhum sobre evangelismo. “Eu disse a eles: ‘Como vocês podem ser tão parciais?’ Nós evangélicos temos sido parciais, e estamos trabalhando para corrigir isso”. Ele afirma que não pode imaginar um encontro de evangélicos como esse em que não há um único workshop sobre questões sociais. “Como os líderes de igrejas liberais podem ser tão cegos?”
 
Por meio de um duro discurso, Sider roga por uma igreja onde tanto o evangelismo quanto a ação social ajam simbioticamente -- o evangelismo possibilitando a mudança de vida necessária para apoiar a mudança social e a ação social manifestando as boas novas do evangelho de forma que atraia os que estão de fora.
 
Sider está cada vez mais dedicado a falar e escrever sobre a igreja. Não que ele tenha perdido o interesse pela política; ele ainda vê a “estrutura do mal” por trás de grande parte da pobreza e da injustiça no mundo e está atento ao que acontece em Washington. A organização Evangélicos pela Ação Social, que ele fundou há 31 anos e ainda lidera, tem como foco a publicação da revista “Prism”, a promoção de evangelismo e ação social em igrejas locais por meio da rede Word & Deed, e a educação de cristãos em políticas públicas. No entanto, o grupo tem apenas 3.200 membros.
 
Os anos parecem ter dado a Sider mais humildade para respostas simples. No Conselho Mundial de Igrejas, em Seul, Coreia, ele se desmotivou ao ver que os delegados estavam mais interessados em culpar o Ocidente pela pobreza do Terceiro Mundo do que em entender como os coreanos conseguiram tirar o país da pobreza. Na terceira edição de seu livro, ele afirma: “Na primeira edição, eu disse que o mal social é mais prejudicial às pessoas do que o mal pessoal. Talvez isso seja verdade no Terceiro Mundo; porém, não creio mais que seja verdade na América do Norte nem na Europa Ocidental”. Para ele, a cultura da promiscuidade e do divórcio parecem ser mais significantes do que nunca. Ele diz que “Tim LaHaye exagera no simplismo, mas está certo ao dizer que o humanismo secular está empurrando a religião para fora das questões publicas”. Sider talvez não tenha se tornado mais conservador, mas certamente encontrou pontos de concordância com suas críticas conservadoras. Isso, de certa forma, o deixa sozinho.
 
Segundo o lado radical do evangelicalismo, representado por revistas como “Sojourners” e “The Other Side”, ele é muito cauteloso. Ainda assim, parece ser abominável para os ativistas conservadores, que dominam a política evangélica.
 
A chave para entender Ron Sider, no entanto, não é sua política. É sua teologia. Diferente da direita religiosa, que tem sido bem mais reativa, o envolvimento político de Sider sempre foi proativo. Ao ler a Bíblia, ele viu que Deus se importa com as questões políticas e sociais, bem como com a piedade pessoal. Assim, encara suas atividades em termos de aplicar a Bíblia à vida.
 
A santidade de Sider está impregnada em sua alma, o que significa que no fundo ele não é um ativista, alguém que dirá com desdém: “É assim que as coisas são”. Quando encontra o mal em sua alma, luta contra ele; quando o vê no mundo, invoca os céus para confrontá-lo. O mal que ele vê não se origina no humanismo secular. É parte da antiga batalha humana entre o bem e o mal, o egoísmo e a generosidade -- não é uma luta entre Republicanos e Democratas. Para Sider, o envolvimento político faz parte do discipulado, e ele jamais desistirá.
 
É útil lembrar também que Sider é jogador de hockey. Ele é um pacifista, mas alguém que se sente confortável manejando um machado e um taco. Ele gosta de pescar, mas os amigos que o acompanham dizem que seu propósito não é admirar a natureza; ele vai para pegar os peixes. A persistência faz parte de Sider; sua secretária conta que as duas operações de hérnia pelas quais ele passou em 1990 provocaram grandes mudanças: foi a primeira vez que ela o viu andando devagar. Em mais de trinta anos de trabalho incessante, ele ajudou os evangélicos a terem em mente a pobreza mundial. Se continuar saudável, ainda o veremos manejando seu machado por muitos anos.
  • Tim Stafford é um escritor sênior do Christianity Today. Entre seus muitos livros estão Knowing the Face of God, As Our Years Increase, The Student Bible (com Philip Yancey), uma trilogia de ficção histórica (The Stamp of Glory, Sisters, The Law of Love), Never Mind the Joneses e Love, Sex and the Whole Person. Ele e sua esposa, Popie, moram em Santa Rosa, Califórnia.
 
Traduzido por Paula Mazzini Mendes. Publicado originalmente como matéria de capa da revista “Christianity Today” em abril de 1992.

Nota
1. Uma espécie de bolsa-escola americana. O governo concede financiamento para que as famílias mantenham seus filhos em escolas de sua preferência, em vez de obrigar o usuário a utilizar um determinado serviço público (N.T.).

SAUDADES DA IGREJA – COMO É BOM E AGRADÁVEL QUANDO O POVO DE DEUS SE JUNTA | REVISTA ULTIMATO

Está claro para todos que a pandemia alterou muitos aspectos da sociedade. O impacto dessas mudanças chega às igrejas, denominações e organizações paraeclesiásticas de diferentes maneiras. Retornar às reuniões presenciais será um desafio! Exigirá esforço e ânimo para vencer as dificuldades internas (dentro de nós) e as externas. Para muitas lideranças pastorais o contexto é desanimador. Há pastores emocionalmente esgotados. Liderar neste contexto complexo de mudança é uma prova cheia de obstáculos.

É disso que trata a matéria de capa da edição 394 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.

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