Opinião
- 11 de setembro de 2020
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A Bíblia e as raízes míticas do racismo
Por Quéfren de Moura
Ao longo da história, a narrativa de Noé e a maldição de Cam foi usada para legitimar a escravidão e o racismo. Biblicamente, essa interpretação não se justifica. Trata-se de uma leitura colonialista, incorreta e com fins de sustentar ideologicamente a dominação.
O racismo é um conjunto de teorias, crenças e práticas que pressupõem ou estabelecem uma hierarquização entre as chamadas “raças” (ou etnias). Ele se fundamenta sobre o direito de uma (considerada pura e/ou superior) dominar outras (vistas como inferiores). Além disso, segundo o antropólogo e professor aposentado da Universidade de São Paulo, Kabengele Munanga, especialista nas questões de racismo, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais, “o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas”.
É importante lembrar que “raça” não é uma categoria biológica, científica ou genética, mas um conceito sociologicamente construído, o qual, segundo Munanga, está “carregado de ideologia (...) e esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação”. Para o sociólogo Clóvis Moura, “O racismo é uma ideologia deliberadamente montada para justificar a dominação de um grupo sobre outro”. Isso significa que ele subjuga, humilha, desdenha, despoja, usurpa direitos e violenta, em nome do poder. Assim, trata-se de algo perverso e violento — e totalmente contrário aos valores que a Palavra de Deus ensina.
Apesar disso, uma das origens míticas do racismo vem justamente de uma narrativa bíblica, tomada e interpretada como o motivo da inferioridade dos negros. Trata-se da passagem de Gênesis 9.20-29.
Ali, depois do dilúvio, Noé se embriaga e fica nu em sua tenda. O texto hebraico é pouco claro, mas Cam, filho de Noé, aparece e “vê” a nudez do pai. Na Bíblia hebraica, ver a nudez pode ser um eufemismo para uma ação com conotação sexual (cf. Lv 18.6-19; 20.11), o que, nessa situação, refletiria uma grave desonra ao pai e a sua desautorização como líder do beit av, ou seja, da família. Quando Cam conta o ocorrido aos irmãos, depreende-se que, como filho mais novo (Gn 9.24) — e, portanto, que não herdaria a linhagem do pai nem seria o futuro patriarca —, ele busca tirar de Noé sua autoridade patrilocal. Os outros dois irmãos, por sua vez, protegem e respeitam a figura paterna, desviando dele seu olhar e cobrindo sua nudez. Ao saber do que aconteceu, Noé amaldiçoa Cam, dizendo a ele: “Maldito seja Canaã; seja servo dos servos para os seus irmãos”. A maldição proferida por Noé se dirige ao filho de Cam, ou seja, à sua linhagem e descendência.
Ao longo da história, essa narrativa foi usada para legitimar a escravidão e o racismo, ao se afirmar que os negros teriam vindo da linhagem de Cam e, por isso, seriam herdeiros da maldição do servilismo. Biblicamente, essa interpretação não se sustenta. Trata-se de uma leitura colonialista, incorreta e com fins de justificar ideologicamente a dominação.
O racismo corresponde à descaracterização do ser. Ele exclui, em vez de agregar. É o oposto do propósito divino para a humanidade, que foi feita para existir em comunhão (Gn 2.18). Além disso, o racismo homogeneíza, desumaniza, reifica. Mas, na Bíblia, essa univocidade não está nos planos de Deus. Ela foi, sim, um plano humano, uma estratégia de poder e dominação, bem-retratada no episódio da torre de Babel. Nessa narrativa, inclusive, assim que descobre o desejo de poder das pessoas, as quais se uniram para construir uma torre que elevasse o nome delas e as tornasse célebres, Deus confunde e mistura seus idiomas, frustrando seus planos — permitindo, assim, a construção de identidades e etnicidades plurais.
Um outro texto importante, que ilustra o pensamento bíblico e nos ajuda a refletir sobre questões sociais contemporâneas, como a violência e o racismo, é o de Gênesis 4. Nele, Deus indaga Caim sobre o paradeiro de seu irmão Abel, no episódio do primeiro fratricídio da Bíblia. Caim responde a Deus, de forma bastante insolente: “Acaso sou eu o guardador do meu irmão?” (Gn 4.9). A resposta de Deus, em elipse na narrativa, porém evidente ao longo da história de Israel, perpassa e reverbera em toda a Bíblia. E é a mesma para Caim e para cada um de nós: Sim! Você (e cada ser humano) é responsável pelo seu irmão! O sangue derramado de cada irmão clamará sempre da terra. A dor de cada um dos pequeninos chegará até Deus, e isso será requerido de nós.
Já no Novo Testamento, os princípios do amor, da compaixão e da solidariedade, além da igualdade e do respeito ao próximo, se evidenciam, tanto nas falas e histórias de Jesus quanto na literatura do primeiro século. Jesus ensinou, não uma, mas várias vezes, que o fundamento da existência é o amor (Mt 5.43-44; Jo 15.12). O apóstolo Paulo escreveu que, mesmo que tudo passe, o amor permanece (1Co 13.13). E esse amor é relacional. Ele precisa ser experimentado e vivenciado na relação com o próximo. O amor, que não é apenas sentimento, mas solidariedade, amparo e justiça social, propicia a igualdade e a dignidade humana.
Num momento emblemático, registrado em Mateus 25.31-46, Jesus fala de um grande julgamento futuro, quando serão postos em foco e pesados o acolhimento e a solidariedade de cada ser humano para com os necessitados, as pessoas exploradas, que tiveram fome e sede, que estavam nuas, que eram estrangeiras ou não possuíam abrigo: “Então os justos perguntarão: ‘Quando foi que vimos o senhor com fome e lhe demos de comer? Ou com sede e lhe demos de beber? E quando foi que vimos o senhor como forasteiro e o hospedamos? Ou nu e o vestimos? E quando foi que vimos o senhor enfermo ou preso e fomos visitá-lo?’ O Rei, respondendo, lhes dirá: ‘Em verdade lhes digo que, sempre que o fizeram a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram’” (Mt 25.37-40).
Em sua Carta aos Gálatas, o apóstolo Paulo escreveu: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus” (Gl 3.28). As distinções que engendram desigualdade e violência, para Paulo, são artificiais, e em Cristo, elas se esvaem — o que permite que experimentemos, de fato, o que é ser irmãos. Essas deveriam ser as marcas da fé cristã.
Respeitar e amparar as pessoas que sofrem e lutar para que a dor delas seja sanada é o papel do justo. Pensando no racismo, trata-se de não o perpetrar. Mas, mais do que isso, há um chamado a combatê-lo! Ignorar sua existência e seus impactos, negligenciando nosso papel na construção de uma sociedade igualitária, é incoerente com o caráter de um cristão. Se queremos nos parecer com Jesus, é necessário assumir para nós a responsabilidade legada por ele, de defesa daquele que é oprimido. Não é uma opção. Não é uma escolha. É uma missão, que precisa permear toda a nossa vida.
>> Leia também o primeiro artigo – O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo? – e o próximo – A Bíblia e a luta contra o racismo hoje.
>> Leia também o primeiro artigo – O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo? – e o próximo – A Bíblia e a luta contra o racismo hoje.
• Quéfren de Moura é doutoranda em Letras (Estudos Críticos da Bíblia Hebraica) na Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Letras (Estudos da Tradução) e graduada em História e Comunicação Social pela USP. Desde 2011, colabora com a Sociedade Bíblica do Brasil nas áreas de tradução e publicações, atuando como revisora de textos e consultora de traduções em preparação. Atualmente, também apoia projetos de tradução para línguas indígenas e de sinais.
>> Confira a nova edição da revista Ultimato: Racismo – A Bíblia, a igreja e uma conversa que nasce da dor
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