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Opinião

A alegria das coisas corrigidas

Por N. T. Wright
 
Quando pronunciamos a palavra “justiça”, que emoções lhe vêm à mente? Muitas pessoas hoje, quando solicitadas a fazer associações de palavras com “justiça”, podem pensar na atmosfera severa de um tribunal ou na satisfação sombria que se obtém quando um criminoso cruel, que arruinou a vida das pessoas, é finalmente pego e punido.
 
E hoje há conotações mais sombrias quando as pessoas usam a palavra “justiça” para sinalizar “revolução”, provocando outros a responder que isso é apenas marxismo ateu, totalmente oposto à mensagem cristã de espiritualidade, oração e salvação.
 
Mas a Bíblia nada sabe desse falso “ou um, ou outro”. Nela, a palavra “justiça” está intimamente ligada a “resgate” ou “salvação”, e, assim, ela deveria suscitar a emoção da alegria
Pense nos Salmos. Muitos dizem a mesma coisa. 
 
Regozijem-se os céus e exulte a terra! Ressoe o mar e tudo o que nele existe! Regozijem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta, cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com a sua fidelidade! (Salmos 96.11-13).
 
Pense em Isaías também, incluindo a passagem messiânica no capítulo 11. Deus equipa o Rei vindouro com seu próprio Espírito de “sabedoria” e “inteligência” [v. 2], para que ele julgue “com retidão os necessitados” e “com justiça” tome decisões em favor dos pobres”. 
Isso introduz a surpreendente profecia de uma nova criação que abolirá as hostilidades tradicionais no reino animal: o lobo viverá com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará” [v. 6]. Eles não vão ferir ou destruir, declara YHWH, porque “a terra se encherá do conhecimento do Senhor [YHWH], como as águas cobrem o mar” [v. 9].
 
Uma profecia semelhante vem mais tarde, no capítulo 65 [de Isaías], dentro da promessa de “novos céus e nova terra” [v. 17]. Novamente, há uma sensação não apenas de espanto, mas de alegria. Não é difícil perceber o porquê.
 
Suponha que você morasse em uma vila no antigo Israel. A vida comunitária traz muitos problemas, disputas, aparentes injustiças. Pessoas ricas e poderosas podem facilmente explorar os pobres, as viúvas e os órfãos que não têm ninguém para defendê-los. Mas, de vez em quando, o juiz aparece em seu circuito regular. E as pessoas que foram oprimidas, roubadas e lesadas em seus direitos ou privadas de seu sustento anseiam por esse momento em que as coisas finalmente serão corrigidas! A comunidade inteira dará um suspiro de alívio. Justiça implica resgate, celebração, alegria.
 
Essa visão bíblica emerge novamente no majestoso Salmo 72, que fala profusamente sobre o Rei vindouro. Celebra o domínio dele sobre o mundo inteiro não porque ele é um poderoso guerreiro ou o construtor de grandes cidades, mas porque faz justiça aos pobres, às viúvas e aos oprimidos. O salmista louva a Deus pelo governo deste Rei:
Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, o único que realiza feitos maravilhosos. Bendito seja o seu glorioso nome para sempre; encha-se toda a terra da sua glória. Amém e amém. (Salmos 72.18-19)
 

Esses são apenas snapshots [instantâneos] do quadro bíblico subjacente. Eles nos dão uma pista não apenas do que as pessoas vão pensar e sentir quando o Deus criador finalmente corrigir tudo, mas também da estrutura teológica dentro da qual tudo isso faz sentido. 
 
O Deus da Bíblia não age à distância. Ele não dá instruções de longe enquanto mantém as próprias mãos limpas. Parece que sua razão para fazer este mundo em primeiro lugar foi porque ele queria, e ainda quer, e pretende torná-lo seu próprio lar. Ele quer encher toda a criação com sua glória, seu amor e seu poder. Essa ideia de Deus vindo habitar com as pessoas neste mundo é o que vemos (por exemplo) no tabernáculo do deserto e no templo de Salomão. É o que nos é prometido no final de Apocalipse: “Vejam!, diz João:  ‘Agora a morada de Deus está com os seres humanos!’” (Ap 21.3, NTLH).
 
Muitas pessoas no cristianismo ocidental ignoraram totalmente este tema, em grande parte porque lhes tem sido ensinado de modo rotineiro, ou apenas assumido, que o ponto da fé bíblica é que, no fim, iremos deixar este mundo e ir morar com Deus no céu, além do espaço e tempo, onde se presume ser seu lar. Mas a Bíblia conta uma história diferente, e é por isso que a justiça é uma prioridade. Deus quer habitar com seu povo; e, visto que ele é o Criador, tem posto as coisas em movimento para que possam ser corrigidas tanto quanto possível antes de sua vinda final, quando ele completará o trabalho. E Deus fará esse trabalho de “julgamento” e “justiça” não porque ele é um moralista severo, ansioso para atacar e punir as pessoas que saem da linha, mas porque ele é o Criador bom e sábio que anseia ver o seu mundo refletindo e, finalmente, incorporando sua própria glória.
 
O Salmo 72 tem uma ênfase particular que não devemos ignorar. No Antigo Testamento, vemos que o templo – e, antes disso, o tabernáculo do deserto – foi projetado como um pequeno modelo de trabalho de toda a criação.
 
O primeiro capítulo de Gênesis descreve um mundo que consiste em céu e terra juntos; em outras palavras, um templo. Quando Salomão construiu o templo de Jerusalém, a glória de YHWH veio e encheu aquele lugar. Já o Salmo [72] diz que o Rei vindouro fará justiça – ele resgatará os pobres, as viúvas e os órfãos [v. 2, 4, 12-14] – para que a glória de Deus encha “toda a terra” [v. 19]. 
 
Essa é a promessa maior para a qual o templo estava apontando. Por meio da obra do Rei vindouro, Deus corrigirá o mundo inteiro. Ele fará o que podemos chamar de “justiça restaurativa”, a fim de vir e torná-lo seu lar glorioso. O Rei constrói o templo para que a glória de Deus habite no meio do povo; o Rei faz justiça aos pobres e oprimidos para que a glória de Deus possa inundar o mundo inteiro. Não admira que a promessa bíblica de justiça seja também a promessa de alegria.
 
  • N. T. Wright é um dos principais estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Bispo anglicano, professor e pesquisador do Novo Testamento e do cristianismo primitivo na Universidade de St. Andrews, na Escócia, ele é um defensor importante de visões tradicionais sobre questões teológicas, incluindo a ressurreição corporal e a segunda vinda de Cristo. Autor de diversos livros, entre os quais Simplesmente Cristão, Eu Creio. E Agora? e Surpreendido pela Esperança (publicados pela Editora Ultimato), bem como dos comentários Evangelhos para Todos, Paulo para Todos e Cartas para Todos (publicados pela Thomas Nelson Brasil).
 
>> Trecho retirado do capítulo “Discipulado e justiça”, de N. T. Wright, publicado no livro Discipulado e Transformação.


 

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