Um olhar histórico e responsável sobre novembro

 

Por Dálethe Melissa, Maria Eduarda Teixeira e Maysa Sabino

 

Novembro é um mês profundamente simbólico. Enquanto o Brasil e o mundo voltam seus olhos para a COP30, que acontecerá em 2025 na cidade de Belém, no Pará, somos lembrados/as da urgência de enfrentar a crise climática que ameaça a vida em todas as suas formas. A Conferência das Partes da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP) é o maior encontro global sobre o clima, reunindo chefes de Estado, cientistas e a sociedade civil para negociar ações de combate e adaptação à crise climática. Neste ano, ao ter sua 30º edição sediada no coração da Amazônia, a COP30 carrega um peso simbólico e político, pois trata-se de um chamado para que a humanidade escute as vozes dos territórios historicamente silenciados, onde as injustiças ambientais se manifestam de forma mais cruel. Também em novembro ocorre o Dia Nacional de Zumbi1 e da Consciência Negra, um marco de memória e resistência que denuncia o racismo estrutural ainda enraizado na sociedade brasileira. Essa data nos convoca a reconhecer que a desigualdade ambiental e climática tem cor, território e classe, onde as populações negras, indígenas e periféricas continuam sendo as mais expostos à poluição, aos desastres e à exclusão. Esse processo tem nome: racismo ambiental, uma das expressões concretas do pecado estrutural que fere a Criação de Deus e nega a vida plena que o Evangelho anuncia.

 

O termo racismo ambiental foi cunhado pelo reverendo Benjamin Chavis Jr., nos Estados Unidos, na década de 1980, no contexto das mobilizações do Movimento pelos Direitos Civis. Chavis denunciou que comunidades negras e empobrecidas eram desproporcionalmente expostas a riscos ambientais por viverem próximas a depósitos de lixo químico e radioativo, bem como a indústrias altamente poluentes. Ao dar voz às populações empobrecidas e racialmente discriminadas, o reverendo da Igreja Unida de Cristo, revelou que a forma como a sociedade lida com o meio ambiente é profundamente atravessada por estruturas raciais e econômicas. O termo, então, nasce da relação entre fé, justiça e ecologia, reafirmando que a reivindicação por um ambiente saudável é também uma luta pela dignidade humana e contra todas as formas de injustiça.

 

De acordo com a pesquisadora Tania Pacheco, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense, o racismo ambiental é estabelecido por injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulnerabilizadas. Ele não se configura apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, mas inclui também ações que possuem um forte impacto racial, independentemente de sua intenção de origem2. Nos centros urbanos brasileiros, por exemplo, um dos mecanismos do racismo ambiental se manifesta na tentativa de naturalizar a pobreza e a vulnerabilidade, atribuindo-as à “raça”, quando, na verdade, são o resultado de dinâmicas históricas de exclusão de determinadas populações. Nesse sentido, populações negras residentes em favelas, periferias e áreas de risco enfrentam, além da falta de acesso a serviços básicos como água potável e saneamento, a ausência de infraestrutura adequada e moradia digna. Essa precarização estrutural compromete a qualidade de vida e as expõe de forma desproporcional a deslizamentos, inundações e outros desastres socioambientais, riscos cada vez mais intensificados pela crise ecológica e pela negligência do poder público.

 

Esses impactos encontram confirmação concreta nos dados do Censo 20223: entre pessoas que se declararam brancas no Brasil, 83,5% têm esgotamento sanitário considerado adequado, ao passo que esse percentual cai para 75% entre pessoas pretas, 68,9% entre pardas e somente 29,9% entre indígenas. No Norte do país, onde 78% da população se declara preta ou parda, apenas 46,4% têm acesso adequado ao saneamento básico. Além disso, estudos revelam que 67% das pessoas que vivem em áreas de risco ambiental no Brasil são negras, e que em toda a América Latina, as mulheres negras e indígenas estão entre as mais afetadas por eventos climáticos extremos4. Esses números confirmam, portanto, a estrutura de racismo ambiental e climático que marca o país.

 

No meio rural, o racismo ambiental deixa marcas igualmente estruturantes. Comunidades remanescentes de quilombos, povos originários e agricultores familiares são frequentemente excluídos de políticas públicas e acesso justo à terra, sendo atravessados pela contaminação dos solos e rios por fertilizantes, agrotóxicos e mercúrio, provenientes do agronegócio e da mineração. Destaca-se que a perda da biodiversidade,  as mudanças nos regimes de chuva e a contaminação dos ambientes de vida comprometem não apenas a vida material, mas as identidades culturais e os modos de viver desses povos. Por isso, torna-se imperativa a luta por justiça climática e a compreensão de que o racismo ambiental se manifesta como pecado estrutural, que nega o direito à terra e ao ambiente sadio, perpetuando a exclusão histórica daqueles que são alvo do amor e da vida plena anunciada por Jesus. A natureza é uma dádiva de Deus, lugar de comunhão, e negá-la a uns é profanar a justiça do Criador. A Igreja de Cristo, movida pela fé e pela compaixão, é chamada a ser voz profética junto aos povos historicamente vulnerabilizados, denunciando as estruturas de morte e anunciando uma nova vida, pois o nosso Deus não faz acepção de pessoas (Atos 10.34), nem de territórios.

 

Diante desse cenário, a COP30 chega ao Brasil cercada de expectativas, especialmente pela possibilidade de uma participação popular ampliada, já que, nos últimos anos, o evento foi sediado em países autoritários. Destaca-se que é preciso olhar para a COP com senso crítico, pois, apesar de sua importância, o espaço tem sido progressivamente capturado por grandes corporações e instituições financeiras que buscam lucrar com a própria crise que ajudaram a criar. Nesse sentido, a participação da sociedade civil será crucial para fortalecer os movimentos de denúncia e cobrança. Durante a Cúpula dos Povos – evento paralelo organizado por movimentos sociais – espera-se a presença de mais de 10 mil pessoas na marcha global que acontecerá em 15 de novembro, em Belém. No início deste ano, representantes dos Povos Indígenas e dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil e da Bacia Amazônica, divulgaram uma declaração política durante um encontro regional preparatório5. E ao longo dos últimos meses, várias igrejas e movimentos cristãos estiveram envolvidos em articulações, eventos e ações que pautaram o papel profético da nossa fé na defesa da Terra, na denúncia do racismo ambiental e na luta por justiça climática.

 

A fé cristã sempre se sustentou em grandes promessas. No Antigo Testamento, enquanto Deus está na sua missão de reconciliar toda a Criação, ele estabelece a figura dos profetas para denunciar as injustiças geradas pelas nações. No Novo Testamento, por meio de Jesus, a mensagem é de que o Espírito Santo que habitou Nele, agora está em nós e por isso devemos ser como Ele foi (Romanos 8). Mas quem foi Jesus, senão um profeta? Se Jesus foi profeta e nós devemos ser como Ele, então nosso dever também não seria sermos profetas e denunciar as injustiças? A Igreja brasileira possui um perfil que é predominantemente feminino, negro, jovem e pertencente a classes sociais mais baixas6, ou seja, a população diretamente afetada pelo colapso climático e o racismo ambiental. A justiça climática e a equidade racial são, então, assuntos urgentes para estarem na agenda dos nossos cultos e estudos bíblicos.

 

Ao lermos João 10:10, costumamos compreender o desejo por vida plena de forma individual. No entanto, o Reino de Deus é coletivo. Se almejamos viver o “ano agradável do Senhor”, proclamado por Jesus (Lucas 4:18-19), precisamos recordar a profundidade do texto de Levítico 25, onde Deus anuncia o tempo de liberação, reparação e descanso para o povo e a Terra. Esse tempo foi concretizado pelo Cristo encarnado, que representa a verdadeira libertação do cativeiro do pecado e o caminho para a restauração das relações rompidas. Reviver esse espírito jubilar, hoje, envolve lutar por um mundo em que a justiça climática e a equidade racial sejam expressão viva do Evangelho. O versículo 13, por exemplo, determina que “cada um retornará à sua propriedade”, e o versículo 24 reforça que “a terra não será vendida definitivamente, pois ela pertence ao Senhor”. Esses mandamentos ecoam, hoje, no clamor pela demarcação e proteção dos territórios indígenas e tradicionais, lembrando-nos de que a terra não é mercadoria, mas dádiva de Deus. Já o versículo 17 exorta: “não explorem uns aos outros, mas temam o seu Deus”, apontando para a necessidade de relações livres da exploração e da lógica do lucro. E, nos versículos 11 e 12, a própria terra é convocada a descansar e ser libertada, ensinando-nos que a Criação também possui direito à restauração. Assim, a salvação anunciada por Cristo é espiritual, social, ecológica e biológica, ou seja, um chamado à libertação e à justiça reparadora em todas as dimensões.

 

Portanto, é urgente vincularmos a nossa fé à luta por justiça climática e o combate ao racismo ambiental, o que envolve conhecer e se engajar nas atividades promovidas por grupos7 que já estão nesta caminhada e, nesse tempo, orar diariamente pela COP 30 e por nossos irmãos e irmãs que estarão lá. Você pode fazer isso com o Guia de Oração, com temas e versículos inspiradores e motivos de oração.

 

Que Deus te abençoe!

 

Notas
1. A denominação completa “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra” foi instituída pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, que reconhece oficialmente o dia 20 de novembro como momento de celebração e reflexão sobre a luta do povo negro, tomando Zumbi dos Palmares como figura histórica representativa dessa resistência. Referência: BRASIL. Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 2011.
2.  HERCULANO, Selene; PACHECO, Tânia. Racismo ambiental, o que é isso. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006.
3. CONECTA DIREITOS HUMANOS. O que o Censo de 2022 revela sobre racismo ambiental. 2024, Disponível em: conectas.org/noticias/o-que-o-censo-2022-revela-sobre-racismo-ambiental/#:~:text=Falta de acesso a saneamento,pela disposição inadequada de resíduos.
4. OXFAM BRASIL. Mulheres negras e a crise climática: entenda essa relação. 2025. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/mulheres-negras-e-a-crise-climatica-entenda-essa-relacao/#:~:text=Dados%20mostram%20que%2067%25%20das,ind%C3%ADgenas%20(ACNUR%2C%202023).
5. Declaração na Íntegra: https://apiboficial.org/files/2025/05/PORT-DECLARACAO-Encontro-Regional-APIB-CNPCT-G9.pdf
6. A partir da análise do Censo 2024 do IBGE.
7. Movimento Nós na Criação (@nos.nacriacao), Movimento Negro Evangélico (@mnebrasil) e Renovar nosso Mundo (@renovarnossomundo); acessar e se inspirar em igrejas que desenvolvem projetos socioambientais e de cunho racial como a Igreja Batista em Coqueiral (@ibcoqueiral) e a Igreja Presbiteriana da Aliança em Salvador (@igrejadaaliancasalvador); integrar redes temáticas como a Rede de Jovens Latinoamericana (@red_juvenil_latam).

 

Dálethe Melissa, mais conhecida por Mel, é uma jovem recifense, estudante de Serviço Social (UFPE), que trabalha no Instituto Nós na Criação há 3 anos. É membro daIgreja Batista em Coqueiral (IBC), onde faz parte da sua Pastoral Ambiental, e também integra a Rede de Jovens Líderes daAmérica Latina e Caribe – Tearfund e o Comitê Executivo do Fórum Popular do Rio Tejipió (FORTE), se dedicando em espaços que pensam o papel da fé e a atuação das igrejas locais na luta por justiça socioambiental.

Maria Eduarda Teixeira, assistente Social, pós-graduanda em Fé e Política (CEFEP/PUC-RIO) e pós-graduanda em Controle Social e Monitoramento de Políticas Públicas (UNICAP). Membro da Igreja Batista em Coqueiral e integrante da Rede de Jovens Líderes América Latina e Caribe – Tearfund.

Maysa Sabino, graduada em ciências biológicas e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Participante do Projeto Acácias – Movimento Negro Evangélico, que tem como objetivo a formação de lideranças negras pelo clima. Monitora na Escola Comunitária de Adaptação Climática (ECAC). Membro da Igreja Batista em Coqueiral e atuante na luta contra o racismo ambiental urbano.

 

Imagem: Zaire Ominira Nunes dos Santos. Fotos públicas.

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