Por Júlia Oliveira Gomes

Quando o chão está coberto de cinzas, o milagre embaixo da terra desperta e o Cerrado ressurge, germina e floresce. É um reavivamento natural. Das cinzas ele se ergue.

 

O fogo encanta e aterroriza os seres humanos desde os primeiros dias de nossos antepassados. Recordo-me com calor no coração das noites de fogueiras nos acampamentos da juventude, como se ali esperássemos o que Deus haveria de fazer em nosso meio, mas com um santo temor de que, como o fogo, é preciso atentar, mesmo querendo estar perto, que ele é poderoso e maior que nós.

 

De forma similar, a Bíblia discute acerca do fogo. A passagem emblemática de Êxodo 3.2 narra o encontro de Moisés com Yahweh, simbolizado por chamas que não consumiam; o profeta Isaías, em sua visão, teve seus lábios purificados por brasas para estar na presença de Deus e, então, pôde começar seu ministério em nome do Senhor. Ambos os relatos revelam a condição do servo (pecador perdoado) e sua vocação pessoal (libertador e profeta, respectivamente), bem como o caráter de Deus, Santo, mas alcançável pela Graça.

 

Entretanto, quando refletimos sobre a  relação fogo-natureza é instintivo pensar que isso não pode dar certo, afinal, fogo queima, consome, destrói. Porém, numa aula de ecologia na faculdade eu estava prestes a descobrir que com o Cerrado foi diferente. Ao contrário das florestas tropicais da Mata Atlântica e da Amazônia marcadas pelas chuvas e umidade, o Cerrado, de clima seco e quente, se desenvolveu ao longo das eras num ambiente forjado e purificado pelo fogo.¹

 

A secura do ambiente combinada ao material combustível, como capim, promove o local perfeito para queimadas.² Basta uma fagulha e o Cerrado arde em chamas. Ora, isso parece terrível! Como a vida pôde, não só resistir, mas tornar-se tão diversa e bela num ambiente hostil? A resposta reside no próprio fogo.³

 

Durante sua maturação o Cerrado foi queimado de forma natural periodicamente, de modo que o material combustível não se acumulava e os incêndios não eram letais para o ecossistema,4 antes, um estímulo, visto que algumas plantas e sementes do Cerrado florescem e germinam somente após a passagem do fogo.5 Com suas cascas grossas, troncos retorcidos e órgãos subterrâneos, essas plantas ganharam adaptações para resistir aos incêndios.6 Nós podemos chamá-las de resilientes. Elas se retorcem, mas não quebram. Queimam, mas não são consumidas. E quando o fogo passa destruindo tudo ao redor, debaixo da palha queimada as árvores esconderam seu bem mais precioso, pois sua vida depende do sucesso em suportar às chamas. Então, quando o chão está coberto de cinzas, o milagre embaixo da terra desperta e o Cerrado ressurge, germina e floresce. É um reavivamento natural. Das cinzas ele se ergue.

 

 

A história do Cerrado é belíssima, e é possível notar nuances entre o fogo que forjou esse ecossistema e o fogo que o Criador usa para forjar e purificar. Assim como o Cerrado precisou queimar ao longo de sua trajetória para tornar-se resiliente, florescer, embelezar e cumprir sua vocação ecológica sendo lar de milhares de espécies, nós necessitamos passar pelo fogo do Autor da história para crescermos, amadurecermos e exercermos nosso chamado.

 

Tal como a planta que não floresce e a semente que não germina comprometem seu futuro ao não passarem pelo fogo, por vezes, precisamos de um estímulo que nos impulsione a sair de nossas zonas de conforto, morrermos para nós mesmos a fim de germinar, crescer e florescer porque essa é a única opção, uma fagulha externa que não vem de nós mesmos – o fogo de Deus.

 

Contudo, é necessário atentar para o que o Cerrado ensina. O fogo natural não consome, antes, oferece um renascimento. Por outro lado, o fogo produzido pelos seres humanos tem destruído a história deste ecossistema e, com ele, dos organismos que ali habitam. Estudos inferiram que as chamas de causas não naturais (desmatamento) são mais quentes, destrutivas e difíceis de controlar.7 Elas extinguem ao invés de promover crescimento e resiliência.

 

Nota-se, assim, a discrepante diferença entre o fogo de Deus e o fogo humano. Um é agente vivificador, purificador, leva suas criaturas ao seu propósito, ao passo que o outro é aniquilador, de maneira que fazer o próprio fogo pode ser fatal.

 

Como Jesus nos conduz à contemplação dos lírios nos campos e das aves no céu, aprendamos com a história do Cerrado; de modo que o cristão deve submeter- se às chamas do Senhor, necessárias se queremos crescer, cumprir nosso chamado. Ele arde, mas não consome. Queima, mas não aniquila. Como a sarça ardente no deserto, em meio às chamas Deus revela sua identidade “Eu Sou” e a vocação de seu servo. Entre brasas vivas Ele chama, purifica, forja e envia. Apenas o fogo de Deus fará sua Igreja florescer.

 

Notas

  1. Coisas de Cerrado, fogo. Instituto de Biociências, UNESP Botucatu.
  2. Ibid.
  3. SOUSA, H. C. Papel do Fogo. Museu Virtual do Cerrado, Universidade de Brasília.
  4. Ibid.
  5. FIDELIS, A; et al. From ashes to flowers: a savanna sedge initiates flowers 24 h after fire. Ecology, v. 100. 2019.
  6. ARANTES, J. T. Plantas do Cerrado combinam pelo menos duas estratégias para resistir ao fogo, revela estudo. Agência FAPESP. 2023.
  7. Coisas de Cerrado, fogo. Instituto de Biociências, UNESP Botucatu.

 

  • Julia Oliveira Gomes, 21 anos, estudante de ciências biológicas pela UFSCar. Ama C. S. Lewis, café e a Criação. Instagram: @prosasprosaicas

 


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