Jacó, por causa de Esaú
Por Eliceli Bonan
Em alguns meses fará vinte anos desde que nos sentamos e conversamos pela última vez, como verdadeiros irmãos. Consegue acreditar que faz tanto tempo? Ainda lembro-me do seu sorriso do outro lado da mesa, na casa de nossos pais, na nossa última conversa amigável. A madrugada estendia-se, mas nós não queríamos dormir. Queríamos apenas estar juntos. Que saudades daquele tempo, quando éramos melhores amigos! Podia olhar em seus olhos e saber o que estava pensando. Podia saber suas preocupações, dividia contigo suas alegrias. Onde foi que nos perdemos um do outro?
Desde que nos separamos, comecei a pensar nestas cosias. Aliás, não teve um dia sequer em que não pensei em você. Vivemos tantas coisas juntos, meu irmão! Quantas histórias, quantos momentos no campo, quantas caçadas! Sim, nós sempre brigamos muito, mas éramos ligados por algo tão forte que ninguém conseguia explicar. Como pode melhores amigos tornar-se inimigos? Quando esta bagunça toda começou?
Em nossas conversas, você falava dos anseios de seu coração de homem, falava de coisas de irmão mais velho que eu não podia entender naquele momento. Agora, percebo quantas vezes você desejou que eu apenas o entendesse e escutasse. Entrava em meu quarto, sentava-se no chão e eu sabia que tinha algo para me dizer. Talvez a falha tenha sido totalmente minha. Porque lá no fundo, apesar de apreciar sua companhia, eu não o entendia. Não sei se queria entendê-lo…
A verdade é que sempre desejei ser como você. Eu o invejava. E não era só sua primogenitura. Eu queria a sua simpatia, o seu jeito com as pessoas, a sua forma de encarar a vida, a sua destreza e maestria. Queria que nosso pai olhasse para mim com o mesmo orgulho com que te olhava. Queria que ele se alegrasse de meus feitos da mesma forma como se alegrava dos seus. E onde tudo isso nos levou?
Talvez eu enxergasse em você um herói. Quando você perdeu seu lugar de herói em minha vida, não consegui encontrar outro lugar onde pudesse colocá-lo. Sabe quando você vendeu sua primogenitura? Sim, foi naquele momento que parei de ver Deus em você. Como você pode fazer aquilo? Trocar sua herança, o seu direito de Filho, por um prato de comida?
Que decepção! Que dor! Para mim, foi impossível lidar com tamanho desapontamento. E já não via mais motivos para andarmos juntos. Não podia mais ver o Senhor em você, não podia mais ver nossas semelhanças. Só via nossas diferenças gritantes. Juntei tudo isso a um julgamento negativo a seu respeito. Criei em minha mente a imagem de que permanecer perto de você seria uma ameaça para mim.
Ter feito de você meu inimigo, um amigo me disse, foi nada mais do que uma tentativa de responder perguntas sobre mim mesmo: “quem sou” e “quem não sou”. Naquele tempo, não sabia quem eu era, mas tinha certeza que você já não era mais o que eu gostaria de ser. Enchi-me de orgulho e achei-me superior. Não havia mais nada que pudéssemos compartilhar…
Afastei-me. Quando chegou a hora, tomei seu lugar, como se fosse a coisa mais certa a fazer. Mais tarde, cheio de culpa e medo, fugi de tua presença. Eu não podia mais encará-lo depois do que aconteceu. Fui para terras distantes, subi escadas, vivi sonhos, encontrei anjos, peregrinei, trabalhei duro por muitos anos, andei com Deus. Mas todas as noites, antes de dormir, meu pensamento voltava para você. Sentimentos confusos. Como entender isso de sentir tanta raiva de quem, ao mesmo tempo, sente-se tanta falta? Não sei dizer o que gritava mais forte dentro de mim: o ódio de meu inimigo ou a dor de ter perdido meu melhor amigo.
Tivemos nosso tempo, cada um no seu canto, e agora é hora de voltar. Não posso mais viver com esse conflito. Precisamos resolver isso, meu irmão! É meu momento de deixar essas terras e encarar o que tento esquecer. É meu momento de voltar para você, só por causa de você, meu querido Esaú. Mas estou com tanto medo! E todos estes pensamentos não me deixam dormir: como será reencontrá-lo? Será que irá me perdoar ou será que virá correndo até mim, com o coração cheio de ódio e intenções de me matar? Será que me reconhecerá quando nos virmos? E se ao nos encontrarmos percebermos que nos tornamos completamente estranhos um para o outro?
Nos últimos dias, enviei mensageiros, presentes, palavras agradáveis, pedidos de desculpas. Enviei bons pensamentos, parte de minhas conquistas para dividir com você. Quem sabe assim consiga abrandar seu coração antes do grande dia. Quem sabe…
Continua chovendo e eu aqui, nesta casa estranha. Comigo, trago tudo o que alcancei desde que nos separamos: mulheres, filhos, posses. De que me adianta tudo isso, se você me matar amanhã? Estou com tanto medo! Estou apavorado! Sinto-me tão sozinho!
Disseram-me que só haverá reconciliação se antes de encontrar-me contigo tiver um encontro com Deus, e outro comigo mesmo. Então, passarei mais esta noite aqui. Vou lutar com Deus até o amanhecer. Estarei face a face com Ele e sei que mudará meu nome. Irá marcar-me para sempre antes de eu continuar minha jornada.
Mas amanhã nos encontraremos… Amanhã estaremos juntos. Espero que você me perdoe.
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Eliceli Katia Bonan, 25 anos, é jornalista e missionária de JOCUM.
*Texto escrito a partir da leitura do livro de John Lederach – The Journey Toward Reconciliation (sem tradução na língua portuguesa), sobre como criamos inimigos, o processo de reconciliação e os encontros necessários para que ela aconteça. História de Esaú e Jacó: Gênesis 25-33.
Ludimila
Texto lindíssimo.
Um convite à reflexão e também fez com que me interessasse em ler o livro que o originou.
Parabéns