A sabedoria brincou no caos
Se ela é a educadora da humanidade, o ensino é felicidade verdadeira
Por Julia Gomes
A pós-modernidade nos legou uma vida confortável e conectada. São fontes de informações em tempo real, leis que nos conferem direitos, e proximidade com quem está distante. Não afirmo que tudo funciona perfeitamente, muito pelo contrário; mas nós dispomos de direitos, possibilidades e informação. Porém, mesmo nascendo e vivendo nesta trama articulada, nós partilhamos nossos dramas. Aquietar o coração humano é uma tarefa árdua, basta uma leve instabilidade e a ansiedade nos toma nos braços, o medo logo se instaura. É o caos que ainda não foi totalmente sobrepujado. A tensão de vivermos o “já e ainda não” acerca do estabelecimento do reino de Cristo. Nisso, tentamos justificar nossas aflições e angústias, apelando para as dificuldades da vida adulta e a sabedoria de não levar as coisas na brincadeira. Mas será que a Sabedoria realmente leva tudo tão a sério? Ela é desprovida de diversão e leveza? Não há espaço para criação e descanso? Vejamos o que o texto bíblico tem a dizer sobre:
“Eu [Sabedoria] estava lá quando ele firmava as nuvens de cima, quando estabelecia as fontes do abismo, quando fixava ao mar os seus limites, para que as águas não transgredissem a sua ordem. Quando ele compunha os fundamentos da terra, eu estava com ele e era o seu arquiteto. Dia após dia eu era a sua alegria, divertindo-me em todo o tempo na sua presença, divertindo-me no seu mundo habitável e achando alegria junto à humanidade” (Pv 8.28-31).
Quando olhamos para este texto, é preciso ter em mente que para o hebreu, o mar simbolizava o caos1. Provérbios 8 está realizando um recorte de Gênesis 1, trazendo à mente de seu leitor a imagem da terra sem forma e vazia, onde havia um oceano que remetia ao caos primordial. Assim, os versos de sabedoria em Provérbios são uma provocação frente a seriedade do mundo num mar de desordens. A Sabedoria não está amedrontada, desesperada, ou mesmo passiva diante deste cenário. Não. Ela estava junto ao Criador no ato da Criação, se divertindo em sua presença enquanto ele colocava o mundo em ordem, tornando-o habitável. Isso é expresso nos versos 30 e 31, de modo que a palavra utilizada para “divertindo-me” no original hebraico é sachaq, que realmente significa “brincar”, “se divertir”. Essa é uma afirmação poderosa!
Ainda, segundo o Comentário Bíblico Latino-Americano1, a ordem divina se caracteriza numa dimensão lúdica, onde a sabedoria, como uma criança, converte a alegria da criação em um convite a brincar, não um processo mecânico de fabricação. “Ao criar, Deus brinca, e ao brincar, cria. É nesse sentido que se deve entender a expressão “era bom”. Tudo o que Deus criou produz admiração, assombro; é belo, é arte”. É o espaço de liberdade para a mente criativa do Criador, e isso é sábio. De modo que “Deus se faz presente na beleza que, segundo Provérbios, é exibida pela criação porque foi feita por um Deus lúdico, acompanhado de sua ajudante, que dirige o jogo e que se chama “Sabedoria”. Se ela é a educadora da humanidade, o ensino é brinquedo, felicidade verdadeira.”
Apenas com este trecho já conseguimos tirar preciosas lições para a vida. Mas a Bíblia continua a narrativa da sabedoria no mar desordenado. No Novo Testamento, Colossenses revela quem é essa criança que brincava no princípio com seu Pai. O apóstolo Paulo, sob revelação do Santo Espírito, disserta sobre a Criação a partir de Cristo, de modo que nele foram criadas todas as coisas, Ele é antes de todas as coisas e nele tudo subsiste (Cl 1.16, 17). Em Jesus estão todos os tesouros de sabedoria e conhecimento (Cl 2.3). Para ele [o apóstolo], não há sabedoria a parte de Cristo, pois ele é. Da mesma maneira que a Sabedoria em Provérbios 8 se põe presente no início e participa da obra, Colossenses afirma que Jesus estava no começo com o Pai, sendo o próprio Criador em quem reside a Sabedoria.
O desvelar da figura da Sabedoria em Provérbios expressos na pessoa do Cristo nos levam a ler a passagem de Jesus acalmando a tempestade em Mateus 8.23-27 de forma ainda mais tremenda. A verdade é que naquele momento de grandes ondas, ventos fortes num mar de caos, Jesus não estava fazendo nada inédito. Estar tranquilo num ambiente desordenado não seria novidade para o Filho de Deus. Ele estava fazendo o que sempre fez desde a Alvorada do Tempo. Ele ainda era aquela criança que brincou com seu Pai no caos, e ao brincar, trouxe ordem. E mostrou isso em primeira mão para seus discípulos acalmando a tempestade.
Veja bem, nosso Deus não é maníaco que se agrada com a desordem, antes, Ele é a própria fonte de alegria que é capaz de se alegrar, brincar, se divertir, criar e descansar no caos e apesar do caos. Como discípulos, isso deve nos desafiar e encorajar. Na prática da sabedoria está embutida uma vida em leveza. Não é desleixo, mas é viver sabendo em mente e coração que o Criador está trazendo ordem ao caos. Como filhos, isso deve nos impelir a fazer o mesmo, mas como a sabedoria, se divertir. Quantas vezes nos afligimos em excesso com nossas tempestades em copos d’água? Provérbios 8 nos chama a fazer algo ousado, talvez loucura para a exaustiva Babilônia, brincar perante o oceano caótico. E o evangelho nos exorta a descansarmos em mares agitados. Essa é a Sabedoria do Reino, do menino Deus que faz arte e terra habitável que acolhe vida – a partir de águas turbulentas.
Nota
1 PADILLA, C. René (org.). Comentário Bíblico Latino-Americano: volume único. 1. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2022.
- Julia Gomes, 22 anos, é graduanda em ciências biológicas pela UFSCar. Ama C. S. Lewis, café e a criação. @prosasprosaicas.
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