Quando a injustiça se escreve em lei: por que cristãos devem resistir ao PL da Devastação?
A terra não é objeto de exploração, mas parte da aliança da vida, espaço de comunhão e de revelação
Por Dálethe Melissa
Onde andará a justiça outrora perdida?
Some a resposta na voz e na vez de quem manda
Homens com tanto poder e nenhum coração
Gente que compra e que vende a moral da nação
Pra cima, Brasil – João Alexandre
Na madrugada do dia 17 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou, por 267 votos a favor e 116 contra, o Projeto de Lei (PL) nº 2159/2021, referente à Lei Geral do Licenciamento Ambiental, conhecida por organizações e movimentos ambientalistas por “PL da Devastação”. A proposta, que agora segue para a sanção ou veto presidencial, busca flexibilizar licenças e dispensa estudos de impacto ambiental para a realização de obras no país, com a justificativa de desburocratizar, padronizar, acelerar e simplificar os procedimentos. O texto do PL havia sido aprovado no Senado Federal em maio e possui ferrenhos defensores, especialmente aqueles ligados à bancada ruralista e aos ramos da infraestrutura, mineração e energia.
O licenciamento ambiental é um instrumento legal e técnico utilizado pelos órgãos ambientais competentes para controlar, avaliar e autorizar a instalação e operação de atividades ou empreendimentos que possam causar impactos ao meio ambiente. Em termos simples, é um processo obrigatório que determina se uma obra ou atividade (como uma estrada, hidrelétrica, plantação em larga escala, mineração, etc.) pode ou não ser feita, como deve ser feita e quais medidas devem ser tomadas para evitar ou compensar os danos ambientais. O licenciamento ambiental está previsto na Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e é regulamentado por resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).
Os pontos críticos do PL envolvem a implementação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite que empreendimentos obtenham licenças de forma automática, a partir do preenchimento de um formulário autodeclaratório dos empreendedores, dispensando as análises técnicas. Dentro disso, enfraquece os órgãos ambientais e os instrumentos previstos na PNMA, responsáveis por promover o controle social, o monitoramento, a análise e a fiscalização das áreas ambientais preservadas. O texto também ameaça os povos indígenas e quilombolas, visto que o PL retira a proteção dos territórios ainda em processo de demarcação, beneficiando setores como o agronegócio e a mineração, que poderão avançar ainda mais ofensivamente sobre esses territórios, assim como isenta diversas atividades agropecuárias da exigência de licenças.
Trata-se de uma série de retrocessos que violam direitos previstos na Constituição Federal, comprometem a vida de comunidades que já são ameaçadas sistematicamente e abrem as portas para mais uma escala de devastação da natureza, em nome do “futuro” e do “desenvolvimento” — palavras utilizadas pelo presidente do Senado durante a votação em maio — de um projeto de país que se alicerça na supremacia dos interesses econômicos daqueles que se encontram historicamente no poder. Já vivenciamos um contexto de crise climática, marcado por extremos ambientais cada vez mais frequentes e intensos, que afetam com maior brutalidade as populações empobrecidas, racializadas e periféricas. Em vez de fortalecer políticas de justiça climática e de combate ao racismo ambiental, vemos iniciativas intensificando dinâmicas destrutivas, como é o caso do PL.
Muitas vezes a injustiça é arquitetada por vias “legais”, planejada em mesas de reuniões e celebrada em jantares. Isso não é de hoje e a Bíblia já denuncia essa realidade de forma negritada. O próprio profeta Miqueias já alertava: “Ai daqueles que planejam a iniquidade, dos que tramam o mal em suas camas! Ao amanhecer o executam, porque está em poder de suas mãos. Cobiçam campos e os arrebatam; casas, e as tomam; oprimem o homem e a sua casa, o homem e a sua herança.” (Mq 2.1-2).
Está nas raízes históricas da injustiça e das desigualdades estruturais do Brasil a disputa de interesses que envolvem a concentração fundiária, o avanço predatório sobre a terra e a exploração de bens naturais, para fins de acumulação de capital. O PL da Devastação, portanto, reflete com exatidão o alerta de Miqueias: o uso do poder para tomar a terra, expulsar famílias e roubar heranças. Quando leis são criadas não para garantir justiça, mas para institucionalizar o privilégio, estamos diante de uma perversão que exige denúncia profética e resistência cristã.
Desde o início, o chamado de Deus para a humanidade é para cultivar e guardar a terra (Gn 2.15). Mais do que um comando para o cuidado, esse versículo aponta para uma relação de coexistência harmônica e interdependente entre tudo o que foi criado. A terra não é objeto de exploração, mas parte da aliança da vida, sendo abençoada e santificada por Deus como espaço de comunhão e revelação. Essa perspectiva é ainda mais profunda quando lemos Colossenses 1.16-17, que afirma: “Pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra. […] Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste”. A criação inteira, então, não é um cenário neutro, passivo ou uma posse utilitária, mas habitação da presença divina, expressão viva do amor de Deus. Quando destruímos o que ele criou, ou quando permitimos que leis injustas legitimem o desmatamento e a expulsão de comunidades, estamos também violando a presença sagrada que habita e sustenta todas as coisas. O compromisso cristão, então, não é apenas moral ou ético, mas é profundamente teológico: defender a terra, a dignidade dos povos, os biomas e ecossistemas é defender a manifestação de Deus no mundo, assim como dar continuidade à missão de reconciliação que nos foi confiada em Cristo (2Co 5.18-19), que envolve não apenas a restauração das relações entre pessoas, mas sim entre todas as coisas criadas. Isso implica curar feridas deixadas pela exploração, defender direitos e buscar formas de vida que reflitam a paz e a justiça do Reino de Deus, o que não é possível alcançar em uma terra devastada.
O mês de julho foi marcado por atos unificados a nível nacional em diversas cidades do país, composto por organizações, movimentos e comunidades que se colocam contra a aprovação e sanção do PL, que se colocam em defesa da vida na sua integralidade. Esse texto é um chamado. Um chamado para que nós, como cristãos e cristãs, nos recusemos a viver uma fé desinformada e descomprometida. Conhecer o que está em jogo, como os projetos de lei em curso, os interesses por trás e os impactos para os mais vulnerabilizados, é parte do nosso testemunho. Não há neutralidade possível e que o nosso silêncio não seja cúmplice, mas que a nossa voz, presença e orações se somem à resistência daqueles que lutam, esperam e anunciam outro modo de viver, mais justo e mais fiel à vontade de Deus. Nas referências você pode conhecer mais sobre o PL, saber quais os/as deputados/as que votaram a favor e acessar perfis cristãos que pode acompanhar atualizações a respeito do assunto.
Que Deus te abençoe e te preencha de coragem, sensibilidade e forças.
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No site PL da Devastação você pode saber mais detalhes do PL e encontrar meios de pressionar a Presidência da República para o veto.
Perfis que atuam na temática socioambiental e em defesa da Criação de Deus:
- Movimento Nós na Criação
- Movimento Renovar Nosso Mundo
- Iniciativa Inter-religiosa pelas Florestas Tropicais
CHAGAS, Rodrigo. PL da Devastação, que dispensa agronegócio de licenciamento ambiental, é aprovado na Câmara. 17 jul 2025. Brasil de Fato. Disponível aqui.
PAZ, Dindara. Como o PL da Devastação destrói a Política Nacional de Meio Ambiente. Alma Preta. 8 jun 2025. Disponível aqui.
WWF BRASIL. Aprovação do PL da Devastação pelo Senado é inconstitucional e pode gerar retrocessos ambientais irreversíveis. 22 maio 2025. Disponível em aqui.
Dálethe Melissa, mais conhecida por Mel, é uma jovem recifense, estudante de Serviço Social (UFPE), que trabalha no Instituto Nós na Criação há 3 anos. É membro daIgreja Batista em Coqueiral (IBC), onde faz parte da sua Pastoral Ambiental, e também integra a Rede de Jovens Líderes daAmérica Latina e Caribe – Tearfund e o Comitê Executivo do Fórum Popular do Rio Tejipió (FORTE), se dedicando em espaços que pensam o papel da fé e a atuação das igrejas locais na luta por justiça socioambiental.
Imagem: Pixabay.
