Por Dálethe Melissa

 

Uma rosa de plástico

pediu-me por tudo

que lhe insuflasse vida. 

 

Tentei lembrar

que ela tinha beleza

quando no ouvido

segredou-se

seu soluço de quase-rosa:

 

‘’Preciso de seiva correndo em mim

Quero perfume

que venha de minhas entranhas,

quero espinhos de verdade.

Não me conformo 

em ser faz-de-conta

em ser ilusão’’.

Rosas Para Meu Deus, Poesia 46, Dom Helder Camara 

 

Ao ler essa poesia do Irmão dos Pobres, me encontro refletindo sobre a plasticidade dos paradigmas hegemônicos de espiritualidade presentes nos corredores de tantas igrejas, responsáveis por propagar concepções de fé e missão que se antagonizam ao verdadeiro projeto de vida anunciado por Jesus de Nazaré. São paradigmas alicerçados em compreensões legalistas e moralistas da fé, em um culto à performance estética e ao desempenho ritualístico, e até mesmo em uma lógica mercantilizada e consumista da experiência religiosa. 

No campo da física, a plasticidade trata-se da propriedade de materiais sólidos de sofrerem um processo de deformação permanente, quando submetidos a cargas ou tensões que ultrapassam o seu limite elástico, não retornando assim ao seu estado original. O plástico é um exemplo de material sintético, produzido artificialmente, que demonstra essa propriedade, podendo assim ser facilmente moldado em diferentes formas. Pensando nisso, fico a me questionar: como identificar esse tipo de propriedade nas espiritualidades? Quais cargas, forças ou tensões possuem a capacidade de deformar a espiritualidade do Evangelho, tornando-a sintética e artificial?

O modelo de sociedade vigente demanda o funcionamento de múltiplas engrenagens que assegurem a manutenção de sua ordem e a reprodução de seus valores, através de aparatos culturais, econômicos e político-ideológicos. Entre essas engrenagens, também se encontram espiritualidades moldadas à imagem dos interesses desse sistema — espiritualidades que, como a rosa de plástico, foram esvaziadas de vida e essência, mas mantêm uma aparência ornamental, moldada artificialmente, que conforta, adorna e não questiona. Trata-se de uma fé domesticada, inofensiva, que se adapta — ou melhor, se deforma — às lógicas do mercado, ao individualismo neoliberal e à indiferença diante do sofrimento alheio.

Carlos Queiroz, em seu livro Em Busca da Espiritualidade: o mercado da fé e o evangelho da graça, reflete sobre os perigos e armadilhas de uma ‘’espiritualidade mercadológica’’, que promove verdadeiros negócios religiosos e experiências idolátricas baseadas no dinheiro, consumo e lucro. Ele também alerta sobre como a supervalorização de ferramentas estéticas, que convencionam arquiteturas cultuais, elementos retórico-discursivos e performances ritualísticas, mascaram espiritualidades que carecem de um compromisso ético com a defesa da vida. Estas, em meio a tantas outras, são verdadeiras forças e cargas que possuem o poder de deformar a mensagem do Evangelho, plastificando assim a vivência da fé e a prática religiosa, que passa a se expressar através de referenciais sintéticos de uma espiritualidade superficial — que pode até agradar aos olhos, mas não transforma corações e nem realidades. 

A consequência disso é a continuidade de comunidades religiosas que mais se assemelham a vitrines bem organizadas e midiatizadas, do que a espaços vivos de partilha, acolhimento e transformação. São espiritualidades que performam emoção e sacrifícios, mas não cultivam um coração quebrantado carregado de amor, afeto e sensibilidade; que exaltam ídolos sacerdotais, mas ignoram as práticas de humildade e simplicidade identificadas na vida do Nazareno; que falam em nome de Deus, mas se calam diante da injustiça; que louvam o desempenho individual, mas desprezam a experiência comunitária da fé.

Nesse cenário, a fé vai sendo gradualmente deslocada de sua vocação libertadora para uma funcionalidade estética e utilitária. Os símbolos religiosos são transformados em objetos de consumo, os púlpitos em palcos e as práticas devocionais em performances cuidadosamente roteirizadas para agradar a plateias — e usuários — cada vez mais exigentes e menos comprometidas. As redes sociais amplificam esse processo, alçando líderes religiosos à posição de influencers, onde a autoridade espiritual é medida por engajamento e conteúdos virais que anseiam por monetização, e não pela coerência entre discurso e prática. A espiritualidade, assim, se converte em marca pessoal, enquanto o Evangelho é reduzido a conteúdo de consumo rápido. Nessa lógica, o sagrado é esvaziado de sua potência transformadora, deformado da sua essência e convertido em produto de fácil digestão espiritual.

Diante disso, é urgente não nos conformarmos com uma espiritualidade semelhante às rosas de plástico, moldadas em ilusão e confeccionadas em cores artificiais que não representam vida, mas que se resignam apenas ao produto faz-de-conta comercializável. Que possamos florescer uma espiritualidade enraizada na conversão sincera e verdadeira, alicerçada no Evangelho de Jesus. Que a seiva da nossa fé seja a radicalidade amorosa, a responsabilidade comunitária e o compromisso com a justiça. Que o perfume da nossa missão seja uma vida exalada em serviço, ternura e compaixão, capaz de tocar realidades concretas e transformar dores em esperança. Uma espiritualidade que não é plastificada, mas que floresce na comunhão e no cuidado com a vida em todas as suas manifestações.

 

  • Dálethe Melissa, mais conhecida por Mel, é uma jovem recifense, estudante de Serviço Social (UFPE), que trabalha no Instituto Nós na Criação há 3 anos. É membro daIgreja Batista em Coqueiral (IBC), onde faz parte da sua Pastoral Ambiental, e também integra a Rede de Jovens Líderes daAmérica Latina e Caribe – Tearfund e o Comitê Executivo do Fórum Popular do Rio Tejipió (FORTE), se dedicando em espaços que pensam o papel da fé e a atuação das igrejas locais na luta por justiça socioambiental.

 


REVISTA ULTIMATO – LIVRA-NOS DO MAL
O mal e o Maligno existem. E precisamos recorrer a Deus, o nosso Pai, por proteção.

O que sabemos sobre o mal? A que textos bíblicos recorremos para refletir e falar do assunto? Como o mal nos afeta [e como afetamos outros com o mal] e porque pedimos para sermos livres dele? Por que os cristãos e a igreja precisam levar esse assunto a sério?

É disso que trata a matéria de capa da edição 413 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.


Saiba mais:
» Um chamado à espiritualidade encarnada, por Dálethe Melissa

» Em Busca da Espiritualidade, Carlos Queiroz

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *