Por Maurício Avoletta Júnior

Bernanos: A Juventude do mundo só pode escolher entre duas soluções extremas: a abdicação ou a revolução.

Jornalista: Qual revolução?

Bernanos: A meu ver, só existe uma: a que se iniciou há dois mil anos, no dia do Pentecostes.”

(George Bernanos, A França Contra os Robôs)

Relutei bastante em usar a hashtag por não concordar com o movimento americano Black Lives Matter. Não há como subscrever e aprovar atos tão hediondos quanto aqueles que lutam contra. Como Cristão, não posso e não consigo aprovar movimentos que sejam física ou politicamente violentos. No entanto, como vejo que aqui em terras tupiniquins não está se criando um movimento em cima disso – ainda que muitos tenham adotado ideologicamente essa causa –, acho, sim, possível abraçá-la. Antes que alguém venha rápido comentar #TodasAsVidasImportam, saiba que não é necessário: eu concordo com você e creio que a grande maioria das pessoas, com exceção de uns poucos racistas, também concordem. Toda vida é importante, no entanto, quem está tendo sua vida ameaçada e ceifada violentamente não é o branco.

Tenho grande dificuldade em aceitar, discursivamente, essa distinção entre brancos e pretos, pois compreendo que adotá-la é aceitar o pressuposto de uma compreensão de que a humanidade é dividida em raças e não é meu caso. Não concordo com essa cosmovisão e, como cristão, tenho essa discordância como pressuposto. Como São Paulo, o apóstolo, disse à Igreja dos gálatas, “não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (3:28). Quando somos convertidos pelo Espírito Santo, nossa natureza é relativizada em Cristo. A identidade de um cristão não reside mais em seu gênero, sua raça, sua nacionalidade ou sua convicção ideológica, mas em Cristo. Em Cristo somos um e Ele passa a ser um conosco. No entanto, é verdade que isso se aplica apenas para cristãos convertidos, não para todo e qualquer cidadão, mas atentemos rapidamente ao versículo citado.

“(…) porque vós sois um em Cristo Jesus”. São Paulo nos diz que nossa natureza é relativizada em Cristo, porque, após a conversão, recebemos a identidade de Cristo e deixamos a nossa antiga de lado. O que nos definia já não é mais uma verdade, pois agora, a definição da nossa identidade vem da própria Verdade, o lógos encarnado. “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou mais eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20).

Se Cristo vive em nós, é pressuposto, portanto, que busquemos viver a vida de Cristo e, por isso, devemos amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos (Mc 12:30-1). Se devo amar o próximo como a mim mesmo e a Deus acima de todas as coisas, logo, devo amar o próximo na mesma medida que amo a mim mesmo; como amo a Deus acima tudo, devo, portanto, amar Deus no próximo. A ética cristã tem como base a renúncia de si mesmo.

“Tenham a mesma atitude demonstrado por Cristo Jesus. Embora sendo Deus, não considerou que ser igual a Deus fosse algo a que devesse se apegar. Em vez disso, esvaziou-se a si mesmo; assumiu a posição de escravo e nasceu como ser humano. Quando veio em forma humana, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz.” (Fl 2:5-8)

Ao abrirmos mão das nossas satisfações para satisfazer o nosso próximo, passamos a agir como Cristo agiu que, mesmo sendo Deus, não se colocou como Deus, mas como homem e, portanto, se limitou e se humilhou por nós. Isso, dentre outras coisas, mostra que há uma dignidade intrínseca no homem que não pode ser ignorada. Mesmo todos nós estando mortos em nossas iniquidades e pecados, ainda assim somos criaturas que foram feitas à Imagem e Semelhança de Deus. Há uma dignidade ontológica em nós que deve nos levar a honrar e respeitar todas as pessoas de igual forma. Das mais fáceis de serem amadas às mais complicadas: todos somos passíveis de redenção.

“Conhecemos algo maravilhoso sobre o homem. Entre outras coisas, conhecemos a sua origem e que ele é – ele foi feito à imagem de Deus. O homem não é maravilhoso apenas quando é ‘nascido de novo’ como cristão; ele também é maravilhoso, como Deus o fez, à sua imagem. O homem tem valor por causa de que ele era originalmente, antes da queda, de que ele é por sua criação. (…) Jamais estaremos em condições de tratar as pessoas como seres humanos, de atribuir a elas o mais alto nível de humanidade verdadeira, a menos que realmente conheçamos a sua origem – que essas pessoas são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos diz que ele criou o homem à sua Imagem. Portanto, o homem é algo maravilhoso.” (Francis Schaeffer, A Morte da Razão)

Por que “vidas negras” e não “todas as vidas” importam?

Se somos todos passíveis de redenção; se em Cristo temos nossa natureza relativizada à sua própria Imagem e, portanto, somos levados a agir como o próprio Cristo, por que deveríamos, então, abraçar uma causa que, ao invés de focar no fato de que todas as vidas importam, foca apenas em vidas negras? Bom, embora não pareça, a reposta é bastante simples – simples, não simplista.

Os dois grandes mandamentos que Cristo resume toda a lei, nos apresentam, como já disse, uma nova ética baseada em Deus e no próximo. É uma ética que gosto de chamar de iconoclasta, pois destrói nosso maior ídolo: nós mesmos. Entre os cristãos, devemos ser levados a enxergar nossos irmãos como cristos, ou, como prefere C. S. Lewis, como ‘cristinhos’, os pequenos Cristos. Contudo, entre a sociedade secular devemos enxergar as pessoas como Cristo as enxerga: com dignidade. Nossa natureza é relativizada em Cristo, portanto, fora dele, permanecemos segundo os padrões da sociedade.

É um fato que morrem mais pretos do que brancos e isso se dá por conta de processos históricos que, embora eu não concorde com o termo, muitos chamam de dívida. De fato, não há uma dívida a ser paga. As pessoas responsáveis pelos erros que causaram as consequências sociais que sofremos hoje já morreram e não têm mais condições de pagar por seus erros. O que pode e deve ser feito, é estancar a ferida aberta e procurar sara-la. Como faremos isso? Não tenho uma resposta definitiva e nem penso que alguém já a tenha. É necessário debate e labor intelectual; é necessário pé no chão e vivência para entender o que as pessoas negras passam para, a partir disso, buscar uma solução para esse problema.

Nós, cristãos, por sermos pequenos Cristos, necessitamos lutar pelo bem da sociedade, mas tenha algo em mente: o verbo lutar não é sinônimo de militar. Não é todo o cristão que tem o dever de ir às ruas e protestar. Participar de movimentos populares não é o único – nem penso que seja o melhor – modo de fazer a diferença. Tenha certeza, ONGs de bairro e pequenas Igrejas fazem um melhor trabalho para estancar a ferida deixada pelo racismo do que muitos movimentos populares e era exatamente essa a minha preocupação em utilizar publicamente a hashtag #VidasNegrasImportam. Não faço parte de nenhum movimento e não me vejo participando de movimento algum, mas entendo que, diante dos acontecimentos recentes, manifestar-se em favor de uma luta que ainda está longe de acabar, é necessário.

E depois?

A manifestação de apoio a uma causa por meio da internet não resolve o problema e, na verdade, apenas ajuda a satisfazer o ego das pessoas para poderem dizer que são politicamente ativas. Mas e depois que essa onda passar? Bom, depois que ela passar, outras ondas virão e deveremos julgar, segundo as Escrituras e a Tradição da Igreja, se é lícito a um cristão apoiá-las. No entanto, a luta contra o racismo e a violência permanecerá. Não na internet, mas em nosso dia-a-dia. Mudanças pequenas em nossa postura e com as pessoas que convivem conosco serão as reais mudanças. Não será uma lei ou uma política pública que resolverá o problema. Pelo contrário, entendo que a coerção do Estado apenas acirrará os ânimos daqueles que precisam de uma justificativa para perpetuarem suas sandices ideológicas. Se a sociedade não fizer sua parte e, em especial os cristãos, nada irá mudar. Permaneceremos os mesmos de sempre.

Em tempo: não pense que estou defendendo que um dia viveremos em uma sociedade perfeita. Não é isso. Aliás, como cristão, sou levado a crer que essa sociedade só existirá no dia que Nosso Senhor voltar gloriosamente. Porém, creio que devemos viver como reflexos do Reino vindouro e, por isso, é nosso dever tentar estabelecer a ética que nos foi ensinada, ainda que estejamos em um mundo caído e fadado ao fim. Somos peregrinos nesta terra e estamos caminhando para a Nova Jerusalém, para a Cidade de Deus. Embora inda não estejamos lá, já somos cidadãos dessa gloriosa cidade e devemos viver segundo seus padrões. Assim como Cristo, será através dessa ética que mostraremos que, de fato, passamos por um processo de metanóia que nos fez deixar de existir como a sociedade dizia que éramos, e passamos a existir como Cristo é.

Sim, todas as vidas importam, mas, por hora, é necessário lembrar que vidas negras importam e que vamos defende-las.

  • Maurício Avoletta Junior, 25 anos. Congrega na Igreja Batista Fonte de Sicar (SP). Formado em Teologia pela Mackenzie, estudante de filosofia e literatura (por conta própria); apaixonado por livros, cinema e música; escravo de Cristo, um pessimista em potencial e um futuro “seja o que Deus quiser”.

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