A regra de Mulligan
Por Daniel Theodoro
Outro dia saí para caminhar pelo bairro. Precisava esquecer um pouco o incômodo fardo do luto e procurar a esperança por aí. Dizem que ela desequilibrou-se da corda bamba, caiu, machucou-se, sumiu.
A busca teve início na rua de acesso ao parque aqui perto de casa. Não havia esperança na conversa entre duas senhoras vizinhas de porta, que trocavam palavras três metros distantes uma da outra, lamentavam o assustador aumento no número de mortos em decorrência da pandemia. Mais à frente, já dentro do parque, não havia esperança no olhar de quatro jovens adultos que especulavam temores a respeito da recessão econômica que virá pela frente. Também não havia esperança entre as crianças que reclamavam por conta de terem fechado o parquinho para evitar aglomerações. Triste ver um playground fechado, lá é o viveiro da humanidade, onde se aprende a amar ao próximo brincando.
Depois disso, achei melhor encerrar a busca. Quando percorria o caminho de volta, lá estava ela, a rebelde esperança no suave caminhar encurvado de um velhinho solitário puxando seu carrinho de tacos no campo de golfe ao lado do parque. Só poderia existir uma explicação para tanta esperança em um ser quasímodo: a regra de Mulligan.
O golfe é fascinante em muitos aspectos, mas uma característica lhe é exclusiva. Nenhum outro esporte tem uma regra que contempla o jogador com a possibilidade de uma segunda chance logo após a primeira tentativa sair errada. É a repetição do movimento sem receber nenhuma penalidade por isso, garantindo ao golfista a oportunidade de recomeçar.
Contam que a regra foi criada acidentalmente por um golfista canadense amador na década de 1920. Um dia, jogando com os amigos, David Mulligan errou a batida inicial. Ligeiramente irritado, sugeriu aos companheiros um “movimento de correção” para recolocá-lo na partida que acabara de começar. A ideia foi bem aceita e logo se tornou famosa entre os apreciadores do golfe, entrando para o regulamento do esporte amador definitivamente. Graças a David Mulligan, nenhuma condenação há para os que jogam mal. Basta ser humilde, reconhecer a falta de destreza, e recomeçar cheio de esperança.
Sendo assim, resta pouca dúvida de que a momentânea tristeza da frustrada tacada não se compara ao júbilo do livre acesso ao conserto. No campo de golfe, não há tempo para chorar a tristeza do erro porque há consolo na regra de Mulligan. “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”, disse o Mestre na arte da restauração.
A esperança sempre será encontrada ao lado daqueles carregam na essência a inesgotável certeza de humilde recomeço. Ela estava com o alegre velhinho no campo de golfe. Ela também estava com minha sempre sorridente vó Dora, que semana passada, aos 86 anos de idade, foi fixar residência no céu, a morada final dos esperançosos.