Por Thales Rios

São 18h30, você está cansado, com fome e voltando pra casa. Você entra no mercado e tem uma missão: comprar uns pãozinho. Você cruza os corredores ignorando os salgadinhos e chocolates. Você está focado em sua missão. Você se aproxima da padaria e se depara com a síntese da vida paulistana: uma fila.

Mas não é uma fila qualquer: é a fila do pão.

Essa fila não é igual à do caixa: não tem preferencial ou caixa rápido na fila do pão. Na fila do pão não existe velho ou jovem. Na fila do pão não existe grávida ou deficiente. Na fila do pão não existe casado ou solteiro, rico ou pobre, branco, negro, japonês. Na fila do pão não existe médica, presidente, pai de família, flamenguista, otaku ou funkeiro.

Na fila do pão não existe preferência nem privilégio. Na fila do pão tanto faz se você vai pegar 5 pães ou se vai alimentar uma multidão.

Na fila do pão todo mundo é igual.

Na fila do pão não existe identidade.

— Próximo…

Me lembro que minha primeira crise de identidade foi lá pros 11 anos de idade. Meus irmãos, todos mais velhos, já saíam pros rolês adolescentes deles e eu queria muito ir junto. Mas não: “Thales, você está muito novo pra isso”. Poxa. Só me restava então brincar ou fazer alguma coisa de criança. Mas não: “Thales, você já está muito velho pra essas coisas”. A pré-adolescência é uma preparação pro tanto que você vai se sentir perdido dali pra frente.

Essa crise de não saber o que você é move filósofos, escritores e bêbados desde que o mundo é mundo. Você é o que você come? Se sim, já fui bolacha Passatempo e pizza barata durante os anos de faculdade. Você é o que você faz? Puxa, tomara que não, eu só faço besteira. Você é o que você quer? Olha, no máximo você é o que você conseguir, esse papo de coach aí não faz muito sentido.

Minha identidade, bem como muito do que faço e penso tem uma influência grande dos meus pais e de muitas outras pessoas que passaram pela minha vida, mas não posso negar que a maior parte da minha identidade foi formada tendo meus 3 irmãos mais velhos como base. Meu jeito nerd, minha habilidade com desenho (e o fato de assistir desenhos até hoje), minha vocação pra trabalhar com adolescentes, meu bom gosto musical, minha vontade de aproveitar ao máximo futebol, natureza, videogame e X-Bacon, meu sofrimento pelo São Paulo e até minha infância obscura com corte de cabelo do Chitãozinho e Xororó tem a ver com meus irmãos. Tudo isso vem de influência direta deles durante minha infância e adolescência.

Há um tempo percebi essas coisas e tentei descobrir o que era apenas meu, o que eu fazia ou tinha que não tinha a ver com eles. A única coisa que encontrei foi a vez que deixei o cabelo crescer pra me diferenciar deles e acabei sendo confundido com uma cunhada. Acho que não deu muito certo.

Numa dessas crises de me perguntar quem eu era na fila do pão, entendi que nossa identidade é formada em cima dos mais variados pilares. Nossa identidade é formada a partir de muita coisa de onde vivemos, com quem convivemos e, pra bem ou pra mal, de muita coisa que dizem sobre nós.

Nossa identidade é formada por nós através de coisas pequenas e grandes. Sua família, seu sobrenome e as pessoas ao seu redor definem muito de quem você é. Provavelmente você se espelha nelas e faz muitas escolhas esperando o reconhecimento e atenção desse pessoal. Muitas vezes você vai tentar ser o total oposto dos seus pais – e vai falhar miseravelmente nisso.

Sua profissão define sua grana, seu status, a cor da sua roupa e, caso você também seja professor, sua voz no final do dia. Sua identidade às vezes é definida pela sua classe social ou seu bairro, e muito do que você faz, pensa e, principalmente, como olha o outro, vai ser influenciado por isso também.

Muitas vezes sua identidade é baseada em três coisas que se confundem muito por aqui: sua religião, seu time e sua visão política. Toda sua identidade pode ser totalmente moldada por sua moral religiosa, pela sua devoção a um clube e pela sua ideologia. Infelizmente é raro encontrar quem não idolatra políticos e briga feito mau torcedor durante as eleições.

Mas fora essas coisas todas mais óbvias, a nossa identidade é construída em nós a partir de mais um monte de coisas que os outros nos impõe. Os rótulos que são colocados em nós formam uma identidade muito mais forte, mesmo que se lute contra isso.

Somos rotulados pelo nosso corpo: é o gordo, é o magrelo, é o alto, é o baixinho. É o cabeludo, é o careca. É o preto, branco, sardento, espinhento, narigudo, loira burra. É sósia do goleiro Cássio (tadinho).

Somos rotulados pelo o que temos: é o rico, é o endividado, é o cara do Camaro, é o cara do Uninho. É o menino de condomínio, é o favelado, trabalhador, desempregado, empresário de sucesso, é o coach (e aí tá errado mesmo).

Somos rotulados pelos nossos relacionamentos: futebolzinho dos Solteiros vs Casados. Divorciados ficam de fora do futebol (e ficam de lado nas igrejas). Viúvas abandonadas desde sempre. Passou dos 20 e não tá namorando? É o que ficou pra titio.

Somos rotulados pelas nossas doenças: ninguém sabe quem era Antônio Francisco Lisboa, mas todo mundo concorda que o Aleijadinho foi o maior escultor do Brasil. Tem gente que lembra mais da AIDS do Freddie Mercury do que de Bohemian Rhapsody. Somos rotulados de depressivos, impotentes e loucos.

Somos rotulados pelos nosso pecados, e às vezes de coisas que nem nos dominam e representam mais: é o mentiroso, é o tarado, é o bêbado, é o vagabundo, drogado, preguiçoso, ladrão.

E pior que isso, somos muitas vezes rotulados pelos pecados dos outros, coisas das quais não temos culpa alguma: é o filho da prostituta, é o filho do suicida, é o irmão do traficante, é a moça estuprada, é o corno, é o filho do presidiário, é o amigo do caloteiro, é a mãe do maconheiro.

A nossa identidade nem sempre é justa e raramente mostra quem realmente somos.

Eu demorei muito pra entender que eu era mais do que tudo que diziam que eu era. Mas demorei ainda mais pra entender que eu era muito menos do que eu dizia ser.

No meu primeiro dia de aula na FLAM (que é uma faculdade de teologia incrível e cheia de gente incrível) estava todo mundo se apresentando, dizendo da onde era, idade e essas coisas. Estava todo mundo falando sobre sua identidade, e isso sempre foi meio complicado pra mim.

Nome? Ok, essa era fácil. Thales.
Idade? Tive que fazer contas, mas era 29 (eu acho).
Cidade? Vixi. São João da Boa Vista, interiorrr de São Paulo, ali na divisa com MG, 100 km à leste de onde o Judas perdeu as botas.

E aí a pior pergunta pra mim: o que você faz? Mano. Comecei a falar que fiz faculdade de Design, que trabalhava como freelancer na área, mas também no comércio da minha família, e que dava aulas de desenho, que organizava acampamentos, que atuava na MPC, que ajudava em uma igreja pequena, que sei lá mais o que. Falei um monte de coisas tentando me definir e no final nem sabia quem eu era mais.

Todo mundo ficou confuso, eu fiquei confuso.

— Próximo…

A moça do meu lado começou a se apresentar: “Oi, eu sou uma filha amada de Deus, meu nome é Fulana, sou de sei lá da onde e estou trabalhando com tal coisa no momento”.

Ela gastou menos de 30 segundos pra se definir e eu, em menos tempo, defini bem quem era ela ali: a crente chata.

“Filha amada de Deus”. Grandes coisa, todos somos, do que você tá se gabando aí?

Mas aquilo que a moça falou ficou ruminando na minha cabeça por um tempo. Um dia, muito antes disso, Jesus me disse que ele era o Filho Amado do Pai, e que era pra eu grudar nele de tal forma que o Pai me adotaria como filho também. Um dia eu entendi que, por causa de Jesus, eu era um filho amado de Deus também. Não porque pedi, não porque me esforcei e muito menos porque mereci. Mas por graça e por amor.

E aí eu entendi.

Daqui uns anos minha juventude vai ficar na memória, e aí quem sou eu? Se eu for demitido ou não puder mais trabalhar, quem sou eu? Se eu perder meus movimentos num acidente, quem sou eu? Se minha namorada me largar, quem sou eu? Se eu perder minha visão, se eu perder minha mãe, se eu perder meu dinheiro, se eu perder sanidade, se eu perder meu humor, se a internet acabar, se o São Paulo for rebaixado (nunca vai acontecer, mas vamos imaginar), se todo mundo me abandonar, se eu for preso, se eu for deportado, se eu ficar gordo e careca, se me tirarem tudo que tenho baseado minha identidade, o que sobra?

Quem sou eu na fila do pão?

Sou um filho amado de Deus.

Isso é o que sobra. Isso é o que deveria bastar.

De uns tempos pra cá comecei a construir minha identidade não mais em cima do que faço, do que tenho ou do que dizem sobre mim. Não sou mais um professor, empresário ou designer. Não sou mais o filho dos meus pais, não sou mais o irmão dos meus irmãos e nem o namorado da garota mais linda desse Brasil (não conheci outros países ainda pra subir ela de categoria). Não sou mais um são-paulino, piadista ou nerd.

Minhas habilidades não me definem mais pois elas são apenas ferramentas. Meus pecados não me definem mais pois eles foram perdoados. Minhas feridas não me definem mais pois elas foram curadas.

Quem me define é quem me chamou pelo nome e me deu uma nova identidade: “você é meu filhão. Todo torto e desastrado. Todo besta. Cheio de dons que te dei, cheio de defeitos que estou consertando. Por onde você for você é meu, eu te amo e isso deve bastar”.

E aí: quem é você na fila do pão?

  • Thales Rios tem 30 anos, é designer gráfico, professor de EBD e tenta ser engraçado escrevendo para o blog Thales de Muleta.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *