Apologética dos Contos de Fadas
“Crede ut Intelligas, Intellige ut Credas”
(“Creio para entender, entendo porque creio”)
Santo Agostinho
Em meu último texto, falei sobre acreditar no Papai Noel, e em outro um pouco mais antigo, sobre acreditar em fantasia no geral. Aqui resolvi trazer os argumentos para se crer na fantasia, para a plausibilidade da existência de fadas. É isso mesmoque você leu. E, não diretamente, esses argumentos para a existência da fantasia apontam para a existência de Deus.
Pode parecer coisa de doido, mas é coisa de gente bem sã. Louco é aquele que vive pela lógica, pois a lógica nos leva às mais estranhas teorias da conspiração. A lógica nos faz crer que a terra é plana, que o mundo é controlado por um grupinho de pessoas ou até mesmo que somos apenas bonequinhos nas mãos de um Deus determinista e tirano. A fantasia nos faz crer na ciência e na fé, assim como crer na soberania de Deus e em sua bondade. De certa forma, a racionalidade caminha ao lado do lúdico e não do logicismo.
O lúdico nos permite compreender a realidade da forma como ela realmente é, já a lógica faz com que a realidade se torne cinza e sem graça. Como é óbvio que a realidade não é cinza e sem Graça, prefiro ficar com quem mantém as cores da realidade, permitindo que o sol brilhe alto como é de costume, ao invés das vãs filosofias que tentam me convencer de que a matéria e a lógica são as únicas coisas que existem, sem fadas.
A plausibilidade da existência da fantasia se dá porque a fantasia esbarra na realidade e não fica apenas no espaço do fantástico. Dessa forma, podemos dizer que a fantasia é tanto imanente como transcendente, pois ao mesmo tempo em que nos fala de coisas imaginárias, nos fala também sobre verdades fantásticas. Esse mundo fantástico – e que não tem nada de tenebroso –, ou Faërie, como o Professor Tolkien costumava chamar, é um mundo possível, e mundos possíveis são o que possibilitam a existência das fadas.
Santo Anselmo, um dos grandes filósofos da idade média e Doutor da Igreja, elaborou o que ficou conhecido como argumento ontológico, que basicamente propõe que só a ideia de um deus já é prova suficiente da existência de um deus. Resumindo bastante o argumento, Anselmo dizia que um Deus como o descrito pelas Sagradas Escrituras era um Deus completamente plausível em algum outro mundo possível que não o nosso. Assim esse Deus deve, portanto, ser possível e necessário em todos os mundos possíveis, inclusive no nosso (se quiser se aprofundar mais no assunto, recomendo a leitura de Deus, a Liberdade e o Mal, do filósofo Alvin Plantinga e Proslogion, do próprio Santo Anselmo).
Em seu livro mais recente, Contra o Aborto, Francisco Razzo usa o argumento ontológico para mostrar que certos valores morais são necessários em todos os mundos possíveis, pois se Deus é necessário em todos eles, então certos atributos de Deus também devem necessariamente acompanhá-lo por todos esses mundos. Lewis entendeu perfeitamente essa ideia e a explicou em sete livros amados por muitos cristãos, As Crônicas de Nárnia. Aqueles livrinhos de crianças, diferente do que muitos imaginam, possuem uma filosofia bastante refinada por trás.
A lógica e a realidade
Nárnia é um mundo completamente possível, mesmo com suas peculiaridades que podem soar bastante estranhas para a nossa racionalidade exacerbada. Contudo, negar a existência das fadas por causa das suas peculiaridades seria o mesmo que negar o corpo humano por sua falta de lógica.
O meu querido Chesterton, em seu livro Ortodoxia, usa um exemplo que acho fantástico. Ele mostra que o corpo humano é composto de pares: dois olhos de cada lado do corpo, uma orelha de cada lado da cabeça, um cérebro dividido em duas partes, uma de cada lado do crânio, um pulmão de cada lado do peito e assim por diante, contudo, fomos agraciados com um único coração e de apenas um lado do corpo. Isso torna o nosso corpo menos lógico por ter um coração e não dois? O fato de nosso corpo não obedecer à suposta lógica dele mesmo seria prova de que ele não existe ou que é apenas uma ilusão?
A realidade é que nem tudo segue uma lógica perfeita e nem tudo é completamente compreensível ou possível de passar por crivos científicos, mas nem por isso dizemos que a realidade não existe por não seguir uma lógica compreensível – pelo menos até agora, não sei de ninguém que teve a audácia de fazer tal afirmação, mas não me surpreenderia se me deparasse com ela, afinal, é bem lógica.
Santo Anselmo, Tolkien, Lewis, Chesterton e tantos outros foram pessoas que viviam com os pés bem firmes na terra e com a cabeça nas nuvens. Eles tinham noção de que a racionalidade é necessária e de extrema importância, mas também sabiam que é a imaginação que nos permite compreender a racionalidade. Como disse Chesterton, é a Elfolândia que julga a terra e não o contrário.
O mundo das fadas é parte das possibilidades do argumento de Santo Anselmo, e, por esse motivo, o verdadeiro criador dos mundos fantásticos que conhecemos é o mesmo criador do mundo em que vivemos. Toda imaginação sempre volta para o seu imaginário inicial. Dorothy Sayers, em A Mente do Criador, mostra, assim como Tolkien sempre disse, que a Imago Dei do homem faz com que ele crie – em menor escala, claro – assim como foi criado. Isso faz com que o mundo das fadas seja materialmente real? Não, mas faz com que ele seja possível, porque algo nele é verdadeiro. E então há muita verdade mesmo naquilo que é próprio daquele universo, pois toda mentira só existe se apoiada em uma verdade.
Imagens e reflexos
Ficou um pouco confuso, né? Calma, vou tentar explicar. Um dos maiores Padres da Igreja, Santo Agostinho, se preocupou em falar sobre o mal, e ao fazer isso percebeu que o mal não é algo físico, mas uma atitude, nada mais nada menos do que a corrupção. C. S. Lewis, quando pensou sobre o assunto, disse que o mal é um parasita que depende do bem para existir, e é exatamente nesse ponto que quero chegar. Como cristãos, acreditamos – ao menos deveríamos – em uma verdade absoluta, que é o próprio Deus. Por esse motivo, há apenas uma única verdade e o resto é no máximo verdadeiro, pois apenas esbarra na verdade, mas não a contém. Assim, os contos de fadas não são verdade, mas verdadeiros, pois esbarram – isso quando não trombam de frente – com a própria verdade.
A terra das fadas é apenas um reflexo. Aponta para um ideal de vida e de esperança. Assim como os Santos apontam para Cristo, os contos de fadas também apontam para uma verdade. Fadas são possíveis porque refletem a realidade dos anjos. Monstros são possíveis porque refletem a realidade dos nossos medos. Elfos são possíveis porque refletem a realidade da pureza. O “felizes para sempre” é possível porque reflete a realidade da nossa Esperança.
Em seu ensaio Sobre Histórias de Fadas, o Professor Tolkien disse algo que resume o que tentei falar aqui: “O Evangelium não ab-rogou as lendas; ele as consagrou, em especial o ‘final feliz’. O cristão ainda precisa trabalhar, com a mente e com o corpo, sofrer, ter esperança e morrer; mas agora pode perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito, que pode ser redimido. É tão grande a generosidade com que foi tratado que talvez agora possa, razoavelmente, ousar imaginar que na Fantasia poderá de fato ajudar o desabrochamento e o múltiplo enriquecimento da criação. Todas as histórias poderão tornar-se verdade; e, no entanto, finalmente redimidas, poderão ser tão semelhantes e dessemelhantes às formas que lhes damos quanto o Homem, finalmente redimido, será semelhante e dessemelhante ao decaído que conhecemos”.
As fadas não são realidades materiais, são apenas possibilidades. No entanto, não devemos nunca ignorar as possibilidades, pois conhecemos alguém que nos mostrou diversas vezes que não conhecemos nada a respeito da realidade, quem dirá das possibilidades…
O absurdo e a beleza
Nunca se esqueça do que disse Santo Agostinho: de todos os absurdos, cri no maior de todos eles, e o maior absurdo lógico que existe não é a existência de uma fada ou de um dragão, mas a encarnação do Verbo de Deus. Curiosamente, as pessoas acham menos lógica a existência das fadas do que a auto-humilhação de Deus. O paradoxo está diante de nós e dizemos crer nele com todas as nossas forças, mas negamos qualquer coisa que fuja da realidade e da lógica. Dizemos aceitar o maior paradoxo de todos, mas negamos a possibilidade das fadas… Será que realmente entendemos a profundidade da nossa fé?
Santo Agostinho nos deixou uma máxima que creio que deva ser recuperada, principalmente por nós, protestantes: Crede ut Intelligas, Intellige ut Credas (creio para entender, entendo porque creio). Só entendemos a realidade depois que cremos no criador de todas as realidades. Só aceitamos a possibilidade do mundo das fadas quando cremos na existência do criador e consumador da nossa fé, o único capaz de criar seres humanos. E fadas.
Nossa lógica fez com que deixássemos de enxergar a beleza na criação, mas fadas existem para nos ajudar a recuperar essa beleza. Existe beleza na tragédia, no sofrimento, na alegria, na felicidade, na realidade e no mundo das fadas. Existe sentido para a vida e existe sentido para a existência de todas as coisas, ainda que muitas vezes a lógica nos diga o contrário. Quanto mais vejo as pessoas se afundarem em um logicismo tóxico e anti-cristão, mais a fala de Chesterton ecoa na minha cabeça: o mundo não perecerá por falta de maravilhas, mas por falta de se maravilhar.
Cristo redimiu com ele todas as coisas, por isso não temos para onde fugir dele. Como disse o Salmista, se subo aos céus Tu lá estás, se faço minha cama no abismo, lá também estás… Ele se manifesta na Terra das Fadas também!
• Maurício Avoletta Junior, 22 anos. É membro da Igreja Presbiteriana do Tucuruvi (SP). Formado em Teologia pela Mackenzie, estudante de filosofia e literatura (por conta própria); apaixonado por livros, cinema e música; escravo de Cristo, um pessimista em potencial e um futuro “seja o que Deus quiser”.
Relly Amaral
Parabéns pela maturidade, criatividade , fantasia e pureza do texto !!! Ultimato, um oásis no deserto intelectual que se torno a Igreja.
Continuem assim, guerreiros, lúdicos porque pensam ( a estultícia gosta de por medo) !
Abraços!!!!
Roberto
parei de ler em “a lógica nos faz pensar que a terra é plana” pqp