Não limitemos Deus – Impressões sobre os simbolismos em A Cabana
Por Rafaela Senfft
Cheguei com certo atraso para registrar minhas impressões sobre A Cabana (2017), este filme que gerou tanta polêmica entre os cristãos. Foram muitos textos levantando as heresias apresentadas na narrativa, que tem como personagem principal Mack, um homem atormentado após o assassinato de sua filha mais nova. Não li o livro, na época eu era um poço de preconceitos e subestimava esse tipo de literatura.
Eu tinha uma arrogância intelectual muito forte e só me permitia ler autores doutores em teologia, apologética e filosofia, e por aí vai… Mas Deus em suas infinitas misericórdias fez um trabalho de cura e libertação em meu coração me livrando desse tipo de pré-conceito, abrindo meu coração para o simples. Só ganhei com isso, fiquei muito mais sensível ao Espírito Santo e recebi muito mais de Deus, pois Ele se revela pra quem quer e como quer.
Não vou me estender sobre esse processo de cura, mas mencioná-lo é fundamental para muitas pessoas que me conhecem e se escandalizarão por eu ter assistido A Cabana e ter achado inspirador. Espero que Deus também lhes tire as amarras. Eu sei que não podemos fazer isso pelos próprios esforços, pois nosso pecado só nos sabota e nos endurece. Enfim…
Depois de ler várias críticas e comentários de cristãos de várias denominações sobre o filme, observei dois tipos de reações: aqueles que passaram o filme inteiro como caçadores de heresias e aqueles que conseguiram reter algo de belo, verdadeiro e bom através das metáforas e simbolismos.
Pela graça de Deus, diferente de outrora, pude me encontrar na segunda categoria, e ganhei muito com isso. Claro que pode haver algumas escorregadas, mas pra quem está com sede de Deus, essas supostas heresias passam por irrelevantes diante de uma infinidade de coisas boas que o filme apresenta (“Não trateis com desdém as profecias, mas, examinai todas as evidências, retende o que é bom” 1Te 5:20,21). Por isso quero colocar aqui alguns pontos que me chamaram atenção, me tocaram profundamente e me levaram a uma reflexão sensível sobre Deus.
A figura de Deus
Pra começar, me lembrei de que muitas pessoas criticaram o fato de Deus ser apresentado em forma de mulher, mas na narrativa isso tem um contexto muito mais valioso do que a discussão sobre essa representação ser lícita ou não. O personagem principal tinha problemas com a figura paterna e no filme Deus se mostra não invasivo, respeitando o estágio da alma do homem a quem se revelara.
Essa foi uma das coisas que mais me fez refletir, pois creio nessa delicadeza de Deus quando se relaciona com a gente. Ele sabe em que estágio cada um se encontra e seu toque respeita estas estruturas. Toda mudança vai sendo construída com respeito e amor, como no processo de cura de Mack, personagem principal, na narrativa de A Cabana. Quando ele supera o problema com o pai terreno, Deus aparece como homem para outra tarefa, denotando o vigor de masculinidade exigido para a ocasião. Seria a tarefa mais difícil da vida de Mack, mas também a mais libertadora e curativa.
A figura do Espírito Santo
O Espírito Santo aparece como uma mulher oriental. Para além das críticas teológicas de plausibilidade, podemos tentar aprender com as metáforas, essa linguagem que traduz o sobrenatural em simbolismos, e de tanta criatividade. Penso que Deus é tão criativo que ele não pouparia elementos para falar com a gente, e se pudermos abrir nosso coração para Sua simplicidade e Seu poder, podemos aprender e ser muito mais sensíveis para vê-lo em todas as coisas.
Pense comigo nos simbolismos para uma pessoa oriental: os orientais nos remetem a pessoas calmas, pacientes, que aprimoram técnicas milenares, que desenvolveram as mais primorosas técnicas de jardinagem, que apesar de fornecerem tanta tecnologia ainda trazem aquela atmosfera de reverência e persistência.
Portando, nada mal para representar o Espírito Santo, que é a pessoa da trindade que consola o ser humano, representado por uma mão feminina, leve e singular que acaricia suavemente e que coleciona lágrimas em um recipiente de cristal. Isso é lindo e maternal! Os poderes sensíveis dessas metáforas me enredaram em refletir que existe alguém que se importa com cada lágrima que cai dos meus olhos, e isto é muito melhor do que ficar caçando heresias.
Na cadeira do juiz
Outra cena que acho ser a mais importante pra nossa reflexão é a do encontro com a sabedoria e a proposta que ela faz a Mack, de se sentar na cadeira do juiz e julgar quem ele acha que é digno ou indigno de salvação. Essa parte é um belo soco no estômago do crente, pois nos assentamos na cadeira do juiz o tempo todo, julgado as pessoas, falando mal de igrejas, subestimando denominações, condenando pessoas ao inferno. É aí onde é revelada nossa deficiência em perdoar e rapidez em levantar as falhas dos outros. Graças a Deus, Ele mesmo não faz dessa forma.
Interessante foi como um dia após ter tido essa reflexão, li no noticiário que Suzanne von Richthofen, famosa por encomendar o assassinato dos pais por conta da herança, e havia se convertido e estava querendo se tornar missionária. Eu já estava habitualmente criticando tal atitude e tirando minhas óbvias conclusões, até que me lembrei dessa parte do filme. Lá eu estava, me assentando na cadeira do juiz, determinando o que era justo ou não. Mas aí pensei: E se Deus quiser que ela seja missionária? E se Deus a salvar? Gente, isso foi surpreendente pra mim, que sempre tenho meus julgamentos na ponta da língua! O filme pode ter x, y ou z heresias, mas só essa reflexão pra mim já valeu o ano.
Outra questão de peso no filme é o tema do perdão, muito forte na construção da cura. O fato de Mack perdoar o pior inimigo de sua vida é a parte crucial de seu processo de cura. Ele deixa Deus enterrar seu passado numa cerimônia linda, cheia de cuidados e beleza, e a partir daí é um novo homem. Sem falar na alegria do filme, que mostra Deus feliz, dançando, fazendo pão, ouvindo boa música, mostra Jesus se divertindo com Mack, fazendo-o andar e correr sobre as águas. Cenas lindas e impactantes, cheias de leveza; metáforas muito bem construídas.
O valor dos simbolismos
Como artista plástica, vejo suma importância nos simbolismos, porque são recursos visuais e poéticos para tratar de coisas indizíveis. Se pudermos nos dar uma chance de aprender com eles, podemos ter uma vida bem divertida com Deus, porque Ele os usa o tempo inteiro.
Proponho aos leitores que abram o coração e não limitem Deus num recipiente hermético, ele é cheio de nuances. Ele ama a diversidade. Criou cerca de 500 mil espécies de borboletas, aproximadamente 20 mil espécies de aves, 25 mil espécies de orquídeas e você ainda acha que Ele tem limites para se revelar a seu povo?
Deus respeita e ama a nossa individualidade, Ele nos fez seres individuais e diferentes. Não precisamos tentar ser iguais aos outros porque só este ou aquele tipo de pessoa agrada a Deus, ou porque Deus só fala daquela ou desta forma e por aí vamos… criando paredes para aprisionar Deus.
Estamos cheios de religiosidade, discussões e conflitos teológicos a respeito de Deus, e enquanto isso estamos perdendo a leveza da vida e a oportunidade de deixar Deus ser Deus em nossas vidas. Que saiamos da cadeira do juiz que não pertence a nenhum ser humano! Precisamos cultivar mais amor, mais afeição em nosso meio e buscar mais do Espírito Santo. Ler bons livros, ouvir boa música, ser alegres em Cristo e buscar a leveza e a criatividade de Deus!
- Rafaela Senfft é artista plástica formada pela Escola Guignard/UEMG, onde é professora de História da Arte Ocidental no curso de extensão. É membro de CIVA (Christian in Visual Arts) e congrega na Igreja Esperança, em BH.
Carla Denancy
Rafaela Senfft finalmente uma critica que eu assino embaixo. Penso exatamente assim, e me sinto tão irritada com as pessoas que fazem criticas e mais criticas ao filme, que nem parei pra debater. Mas lendo seu texto não consegui ficar quieta.
Parabéns !! Penso assim!! Quero sempre ver Deus no simples e no criativo!!!
Jessika Monteiro
Ainda não vi o filme, mas já sei que esse foi o texto mais lúcido que li sobre ele. Cabe olhar sempre pelo viés da sensibilidade e da simplicidade. Só os simples conseguem ver a Deus com clareza e cotidianamente. Eu prefiro assim… prefiro me despir de toda hermeneutica e só contempla-Lo.
Nilson Junior
Cara Jéssica, entendi o seu ponto, mas é impossível “só contemplá-lo”, abrindo mão da hermenêutica. Ela sempre está ali. Boa ou má, precisa ou imprecisão, fiel ou infiel, humanista ou bíblica, ela sempre está ali.
Cris Paes Leme
Você não se atrasou, apenas não teve pressa de nos trazer positivas impressões sobre a história (filme). Nada como poder respirar e nos posicionar diante de fatos sem pressões e exigências intelectuais. Mais vale a calmaria tão possível quando estamos na presença do Espírito Santo. Como é precioso ouvi-lo para que conheçamos mais do Paio. Parabéns pelo artigo.
CARLOS PAES
Ótimo texto !!
Gostaria de pedir a irmã que escrevesse um texto sobre seu processo de cura da arrogância intelectual.
Rafaela Senfft
Oi Carlos, obrigada! Quero escrever sim, valeu pela sugestão. Provavelmente que seja ppublicado por aqui mesmo, pela Ultimato. graça e paz!
Ana Flavia Smith
Excelente reflexão!
Paulo de Oliveira Junior
Rafaela Senfft, sou pastor batista. Confesso que por puro preconceito não li o livro e assisti ao filme de tanto uma adolescente me importunar e o assisti somente para criticar e fazer aquela exegese para acabar com o filme. Mas, ao final, salvo algumas coisas que realmente não cremos, a simbologia geral realmente é libertadora.
Deus apresentar-se na figura feminina, ainda mais na única pessoa que lhe acolhia quando as pessoas do sexo masculino que deveriam representar Deus lhe feriram… foi muito bom.
O Jesus brincalhão, correndo… fantástico.
Concordo com você. Parabéns pela reflexão.
MÁRCIO EVERSON
Parabéns !!! Foi a cegueira da interpretação literal de alguns trechos da Bíblia que levaram os judeus a negarem o messias ! Parabéns pela visão sensível de entender a verdadeira mensagem que estava pro trás das metáforas do filme!
Silmara Batista
Quem determina as vias por onde iremos caminhar? Deus se desfaz daquilo que lhe é próprio para se formatar a cultura? Ou a cultura se desfaz daquilo que lhe é próprio para se formatar a Deus? Quem tem o domínio uma vez que Cristo já se revelou?