Uma ponte entre teologia e literatura, fantasia e realidade
Por Maurício Avoletta Junior
O diretor de cinema Terrence Malick inicia seu (espetacular) A Árvore da Vida (2011) com a ideia de que existem dois caminhos na vida: o da natureza e o da graça. Nós devemos decidir em qual deles vamos andar, pois um nos faz viver para nós mesmos e o outro nos faz viver para o próximo. Concordo com Malick, porém, acredito também que existam dois mundos. Sim, dois mundos!
Não, eu não estou louco, acredito que exista um mundo real: esse que conhecemos e que está cercado por uma realidade material e outra espiritual. Mas também acredito em um mundo imaginativo que seria um reflexo imperfeito de um mundo perfeito, e por vezes, talvez, um reflexo do nosso próprio mundo. Tolkien chamou de Faërie, Chesterton de Elfolândia, e você pode chamar do que quiser. Esse mundo imaginativo nada mais é do que o ponto de encontro entre a realidade e o desejo, ou seja, a fantasia.
Mas qual é a importância da fantasia? Chesterton, em seu livro Ortodoxia, entende que a fantasia é a responsável por impedir que o homem seja destruído pela lógica, e por fim, se afunde na loucura. Concordo com ele. A fantasia nos permite chegar a lugares impossíveis ou até mesmo inexistentes. Na verdade, será que esses lugares são completamente inexistentes mesmo? Bom, acredito que não. Acredito que esses lugares, embora não totalmente reais, são completamente possíveis.
Isso quer dizer que acredito em fadas, gnomos e Papai Noel? Obviamente não. Mas não me surpreenderia se existissem, afinal, como sabiamente afirmou Santo Agostinho, de todos os absurdos, acreditei no maior de todos eles. Isso quer dizer que por acreditarmos no Cristianismo, logicamente estamos suscetíveis a acreditar em toda e qualquer fantasia humana? Sim! E não… Calma, vou explicar.
Ao acreditarmos que o Cristianismo é verdadeiro, acreditamos em um Deus atemporal que sustenta toda sua criação. Acreditamos também que esse Deus, ao criar o ser humano, colocou nele sua própria Imagem e Semelhança, o que significa que temos aspectos semelhantes aos do nosso criador e que apontam para ele.
Por exemplo: Ele é o próprio amor, nós amamos; Ele é a própria esperança e nós temos esperança; Ele é o próprio criador, e nós, segundo Tolkien, somos Sub-criadores. Sendo assim, devemos entender que todas as nossas criações, assim como Platão, Aristóteles, Campbell, Girard e muitos outros já disseram antes de mim, são reflexos dos nossos desejos e anseios. Olhando de um ponto de vista mais teológico, nossas criações são reflexos de verdades.
Os monstros não existem como nos contos de fadas ou histórias de terror, eles não são verdades, mas o que sentimos quando estes aparecem, isso é verdadeiro. Assim como muitos dos personagens de ficção também não existem na vida real, mas apontam para verdades reais, como Aragorn, Frodo e Gandalf, da célebre trilogia de O Senhor dos Anéis. Separados, cada um destes três personagens tem sua devida importância para o desenrolar da história, mas juntos apontam para um personagem histórico, Cristo, que, segundo Lewis, foi o mito perfeito que se fez fato e interferiu na realidade, na própria verdade.
Cada uma das personagens de Tolkien representa um ofício real do Cristo que libertou a humanidade. Enquanto Aragorn é a figura do Rei que guia seus súditos, Gandalf é a figura do profeta que exorta o povo e Frodo o servo fiel que dá a sua vida pelos seus amigos. Embora estas três personagens sejam fictícias, elas representam verdades, fazendo com que esse mundo não seja real, mas possível, pois dialoga com a realidade. A possibilidade destes mundos é o que faz com que nos apaixonemos por eles.
Não é por acaso que livros como Harry Potter, Nárnia, O Senhor dos Anéis, A História sem Fim e tantos outros façam tanto sucesso. Essas histórias mexem com os desejos mais íntimos do ser humano. Como diria Tolkien, elas despertam a desejabilidade, e é isso que as tornam reais. Não uma realidade material, mas uma realidade metafísica.
Onde a verdade e a mentira se fundem? No desejo do ser humano. Desejamos conhecer o Totalmente Outro de Karl Barth, o Logos do Evangelho de João, o grande Eu Sou de Abraão, Isaque e Jacó, o Deus da salvação de Davi e o Deus que virou a vida de Jó de cabeça para baixo.
Embora tenhamos as Escrituras Sagradas para nos guiar diante desta empreitada de conhecer o Deus que se revela, ainda temos a Imagem e Semelhança dele impressa em nós – ainda que agora embaçada devido à nossa catástrofe, a Queda –, para nos auxiliar nesta busca. Nós fomos criados para buscar a esse Deus que é ao mesmo tempo Totalmente Outro, mas também é totalmente o mesmo ontem, hoje e sempre. Nós buscamos constantemente conhecer o Deus desconhecido que se fez conhecer plenamente em Cristo, embora nós não consigamos entende-lo de forma plena.
A fantasia é nossa válvula de escape. Somos exilados em uma terra desconhecida esperando o dia em que voltaremos para nosso lar. Até lá, falaremos do que conhecemos e do que temos visto. Conhecemos o desconhecido e vimos o que ninguém mais viu. Somos reféns do paradoxo máximo da existência, que segundo Chesterton, é o próprio Cristianismo, o mito que se fez fato.
Um dia nossos contos de fadas não farão mais sentido, pois não precisaremos mais do reflexo para entender o todo. Não veremos mais como por um espelho. Um dia estaremos diante do Criador de todas as fantasias e de toda a realidade. Mas enquanto este dia não chega, continuaremos a contar histórias e subvertendo a realidade com a fantasia.
- Maurício Avoletta Junior, 22 anos. É membro da Igreja Presbiteriana do Tucuruvi (SP). Formado em Teologia pela Mackenzie, estudante de filosofia e literatura (por conta própria); apaixonado por livros, cinema e música; escravo de Cristo, um pessimista em potencial e um futuro “seja o que Deus quiser”.
Tamyres Palma Zimmer
Que texto maravilhoso. Lá no site Crentassos fizemos uma série de 3 podcasts sobre a trilogia SdA e ler seu texto me fez relembrar os programas. Muito bom mesmo.
Se puder, ouça lá nossos podcasts. 😉
Maurício Avoletta Junior
Muito obrigado pelo comentário! Fico feliz que tenha gostado =)
Já conheço o blog dos Crentassos haha mas não ouvi o podcast sobre o Senhor dos Anéis ainda. Vou ouvir lá!
Amoacy Ferreira Lima Filho
Obrigado, jovem.
Seu texto ampliou meu Cristianismo, sem que saísse dos limites bíblicos hehe
Acho que a Faërie que acabou me ajudando a sobreviver enquanto eu estava me arrastando a procura de sentido, enquanto eu ainda não tinha conhecido a Cristo…e eu ainda estou conhecendo hehe
Isso me deu uma inspiração.
É por isso que relacionar-se é tão importante. Troca de ideias e outros bons valores.
“Chesterton, em seu livro Ortodoxia, entende que a fantasia é a responsável por impedir que o homem seja destruído pela lógica, e por fim, se afunde na loucura”
Eu também concordo!
Grande abraço e Deus te abençoe!
Maurício Avoletta Junior
Fico absurdamente feliz com seu comentário. Obrigado! =)
Lucas Domingues Rocha de Oliveira
Sensacional! É por isso que gosto tanto de fantasia!
Maurício Avoletta Junior
Muito obrigado, bom saber que mais pessoas dividem gostos em comum =)
Edvaldo Tomé
Sensacional!!!
Daniele Motta
Que texto maravilhoso! Fiquei até emocionada.
Como exilados, realmente necessitamos da fantasia que reflete o Eterno. Por isso, me emocionei com As Crônicas de Nárnia, com a Trilogia Cósmica e quero me encantar com O Senhor dos Anéis ainda nesse ano!
Maravilhoso, parabéns!
Jackeline Monteiro Sousa
Um dos melhores artigos que já li aqui. Ótimas reflexões.