O desafio do papel em branco e a ditadura da cintura perfeita em 21 cm
De modo geral, folhas em branco incomodam. Poucos têm desembaraço a ponto de rabiscar nelas sem antes tropeçar em milhões de ideias. Poucos – poucos mesmo! – sabem lidar facilmente com o milagre de colocar em palavras os pensamentos. Por outro lado, muitos travam. E eu sou desses.
Quando se escreve em uma folha, a informação toma corpo em palavras, sinapses ganham força lexical, o autor torna-se legível para o mundo. Assim, somos todos sujeitos de papel, prontos para transmitir e vulneráveis ao descarte, após o uso.
Pegar uma folha em branco e colocar nela palavras que respeitem a coerência e a coesão textual é algo mágico. Tamanha é a complexidade dos eventos que antecedem o momento em que a tinta toca a folha.
O desafio de realizá-lo é grande e muitos – dentro do grupo de pessoas que tiveram acesso à educação básica – rendem-se à preguiça. Simplesmente, abrem mão de escrever porque dá trabalho. Na verdade, cometem um triste erro, afinal escrever em uma folha em branco é refinar a alma.
Um tipo de suicídio intelectual semelhante vem sendo adotado por muitas jovens chineses, nos últimos meses. Moças do país asiático baixaram o nível da conturbada relação entre o ser humano e o papel. Deixando de escrever, deram outra finalidade à folha em branco. Criaram uma competição virtual de beleza que, em breve, deve desembarcar na web brasileira. Trata-se do “desafio da folha A4”. Nele, mulheres são encorajadas a comparar suas cinturas à largura de uma folha de papel para mostrar as dimensões de um padrão de corpo perfeito.
Funciona assim: a partir de uma foto frontal, de corpo inteiro, elas seguram uma folha e mostram o tamanho da cintura cobrindo-a com o papel A4. Vence o desafio quem conseguir esconder a cintura atrás dos 21 centímetros de largura da folha sulfite. As vitoriosas fazem questão de publicar a foto na rede de microblogs Weibo, algo muito semelhante ao Twitter. O desafio de beleza se tornou viral com a hastag #A4waist e ganhou o mundo após algumas celebridades chinesas entrarem na disputa.
Em análise mais profunda, o jogo mostra que não se pode brincar com a folha em branco. Diante dela, a humanidade pode revelar seu melhor e, infelizmente, seu pior. O “desafio da folha A4” avança sobre os campos da objetificação da mulher; da supervalorização da imagem; e do problema da disfunção alimentar. Basta dizer que, ao realizarem o desafio, as jovens são colocadas diante da estúpida expectativa corporal única, a qual exercerá sobre elas uma opressão estética. Quem não couber em 21 centímetros de largura, estará fora do padrão. Reduzidas a um formato, essas mulheres aprendem que o mundo virtual supervaloriza a imagem em detrimento do conteúdo.
Embora os jovens também sofram com a ditadura do corpo, o fenômeno, que ganha proporções assustadoras na web, atinge as moças com maior intensidade. Ambos precisam descobrir que, na verdade, a folha em branco desafia a inventividade humana, convidando o sujeito para o bom exercício de conhecer-se melhor, compartilhando o saber. Restringindo-se à imagem exterior, a pessoa torna-se refém do volátil mercado da beleza estética. Se chegar a este ponto, correr-se o risco de ser descartada igual uma folha de rascunho.
• Daniel Theodoro, 32 anos. Cristão “em reforma” e membro nascido na Igreja Presbiteriana Maranata de Santo André (SP). Casado com a Fernanda. Formado em Jornalismo e estudante de Letras.
Adri
Parabéns, muito bom o seu artigo. Uma boa reflexão.
Jonatas
Grande elucubração Daniel!
Do vazio frívolo da cultura contemporânea medram imposições capitalistas, especialmente à cosmética, portanto para os que se deixaram “cingir” talvez seja apenas essa a única valia de uma folha em branco.
Que os amantes das letras resistam em “cingir-se” e deixá-la branca, que como você continuem a estimular que as pessoas reencontrem a devida utilidade de uma folha de papel.
CARLOS PAES
Parabéns !!