A Santa Ifigênia, o Waze e o Cosmos
“Você pega reto aqui na avenida, passou um, dois, três faróis, vira à esquerda, mas não na esquerda mais fechada da bifurcação, na outra, depois segue reto, vai passar três Assembleias de Deus, na quarta você entra na rua do lado direito, pega a faixa da esquerda, sobe na terceira rua à esquerda, depois direita, faz o retorno no balão, passou a faixa de pedestres apagada você volta pelo viaduto na faixa do meio, pega no farol à esquerda, sobe a quinta rua à direita e quando vir uma casa com portão preto e um vira-lata de poodle com labrador caramelo você anda mais uns duzentos metros e pergunta num posto ali do outro lado da rua que eles te ajudam. Não tem como errar.”
Tem como errar sim.
Invejo as pessoas que tem senso de direção e entendem essas coordenadas que os frentistas dão quando a gente tá perdido e para pra pedir informação. Eu me perco tanto dirigindo em lugares desconhecidos (e em conhecidos também, não vou mentir) que costumo dividir minha história motorística em AW e DW: Antes do Waze e Depois do Waze. É tão reconfortante você não fazer a mínima ideia de como chegar num lugar e ouvir “Vire à direita em 50 metros. Depois: na rotatória, pegue a terceira saída.” (e espero que você também tenha lido essa parte dando as pausinhas na frase igual à moça do GPS).
Essa história de ser perdido não começou aos 18 anos com minha carteira de motorista. Eu era aquela criança lesada que se perdia da mãe no supermercado, que ia no banheiro do shopping e depois não sabia voltar, e que na praia passava 10 minutos no mar e meia hora procurando o guarda-sol da família toda vez que ia dar um mergulho. Geralmente nesses momentos de perdição eu acabava encontrando o caminho de volta sem grandes problemas, mas teve uma vez em especial que eu realmente entrei em desespero.
Estava em São Paulo, na região da Santa Ifigênia (maior centro de muamba eletrônica do Brasil) e meu pai, crente de que com uns 12 anos eu já tinha responsabilidade na vida, me mandou ir ao carro buscar alguma coisa pra ele: “Lembra onde está o carro, né? Segunda rua à direita, depois anda 3 quarteirões. Não tem como errar.”. Tinha como errar sim.
Não faço a mínima ideia de quantas ruas e quarteirões andei, mas eu, menino nerd do interior, estava tão vislumbrado com aquele tanto de lojas de computadores, e videogames, e bancas de CDs piratas, e controles de Playstation, e fita de Gameboy, e chaveiro de Pokebola e “… eita. Onde eu tô?”. Andei mais ou pouco procurando o carro, mas lá tinha um monte de carros. Voltei procurando a rua da loja onde meu pai estava, mas lá tinha um monte de ruas com um monte de lojas. E um monte de gente. E um monte de mendigos. E, por mais idiota que soe, eu realmente pensei que não ia mais encontrar meu pai, que minha mãe ia parar na Praça da Sé com uma foto minha e eu ia virar morador de rua porque nasci sem noção espacial.
Não sei por quanto tempo fiquei perdido procurando meu pai, mas mais tarde ele me encontrou no meio daquele monte de gente, me abraçou e eu chorei de alívio feito uma criança com metade da minha idade.
Se perder não é legal.
Pela longa estrada da vida onde o poeta nos diz que a gente vai correndo e realmente não pode parar, não é incomum se perder e se perceber muito longe da onde realmente deveria estar. Seja a paisagem nos distraindo, a preocupação com quem está no retrovisor ou apenas alguém apontando o caminho errado mesmo, sempre tendemos a passar reto naquele ponto em que a vida precisa de uma mudança de direção. Às vezes é a carreira profissional que faz se perder da família. Às vezes é a falsa alegria dos comerciais que faz se perder de uma alegria verdadeira e gratuita. Às vezes é o medo disfarçado de segurança que faz se perder de novas experiências. Às vezes é a internet que faz se perder do mundo real. Às vezes é a inveja, é a bagunça, é a vergonha, a procrastinação, o remorso, o passado, o trauma, o conformismo, indiferença, maldade, falta de fé.
São essas coisas e outras tantas que nos desviam para a larga estrada da zona de conforto e nos afastam cada vez mais do que realmente importa.
Nos perdemos na verdade porque nosso piloto automático está configurado para um grande e absurdo plano de fuga.
Num dia desses, depois de tentar fugir deliberadamente de coisas que realmente importam pra mim, estávamos montando uma fogueira num acampamento e procurando algum pontinho azul no céu que nos desse esperança de uma noite sem chuva. A previsão do tempo já havia alertado e olhar pra cima apenas confirmou: só se via 50 tons de cinza nublado quase chovendo. Exercitei minha falta de fé cobrindo a fogueira com uma lona, fomos jantar e quando voltamos pra acender a fogueira nos surpreendemos pois, sem cair um pingo, já não se via uma única nuvem no céu. Enquanto a fogueira queimava, parei pra olhar pro alto e realmente não me lembro de ter visto tantas estrelas assim na vida. Talvez eu nunca tivesse reparado o quão grande isso tudo é. Talvez eu nunca tivesse me achado tão pequeno assim. Como de costume, comecei a viajar.
O Universo é realmente algo enorme e se a gente acha que a Terra é grande é porque a gente é realmente muito minúsculo mesmo. Deste cantinho da nossa galáxia eu estava contemplando um pequeno pedaço de um todo tão grande, mas tão grande que me fez me sentir menor que o nada.
E como é fácil se perder na grandiosidade do Universo sendo tão insignificante e frívolo.
Naquela noite, reafirmei pra mim mesmo que sou pó, mas fui relembrado que eu, um nada perdido no espaço, sem capacidade alguma de voltar com minhas próprias pernas, estava de repente no exato lugar onde deveria estar, não porque acertei o caminho, mas porque fui encontrado e guiado até lá.
Do lado daquela fogueira, sob o vasto manto estelar que me cobria, eu, que sou um cisco cósmico senti o Pai me abraçando e me aquecendo, como quem diz “Ei, olha como o Cosmos é lindo. Ei, você é parte disso tudo que eu criei.”.
Eu, um pontinho insignificante do Universo, de repente sou importante para alguém que é maior que o próprio Universo.
A verdade é que todos nós iniciamos esta curta viagem terrena já na contramão e nossa natureza nos faz querer fugir cada vez pra mais longe, até o ponto em que já não fazemos a mínima ideia de onde fomos parar.
Mas a boa notícia é que tanto faz como ou quanto você se perdeu. Nada disso importa.
Basta reconhecer estar perdido para finalmente ser encontrado.
• Thales Rios tem 27 anos, é designer gráfico, professor de EBD e tenta ser engraçado escrevendo para o blog Thales de Muleta.