O que os olhos não veem
— Como você perdeu a visão?
— Antes de nascer. Nunca vi nada neste mundo.
— Quanto você pagaria para enxergar por dez minutos?
— Por dez minutos? Nem um tostão furado. Eu me tornaria uma pessoa insuportável. Ter algo e depois perder me transformaria em um revoltado.
Esse foi o diálogo entre um vendedor de amendoim e um desertor de guerra no filme “Cold Mountain” (2003). Depois da inesperada resposta, o desertor desistiu de achar no cego cumplicidade para seus desamores e sua revolta com o mundo.
A cegueira humana também causou certo impacto em José Saramago. E ele dá pistas de que se trata de algo que vai muito além da cegueira física: “Por que foi que cegamos? Não sei. Talvez um dia se chegue a conhecer a razão […]. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”.
Há várias formas de cegueira. A mais óbvia, a cegueira física, tem feito o mundo se adaptar. Há livros e placas de elevadores em braile, chão com texturas, auxiliares no metrô e sinais de trânsito com campainhas especiais. Ainda falta muito para que um cego se sinta confortável, mas já demos um passo.
E as outras cegueiras? O que temos feito com elas? A cegueira da alma, do coração, a cegueira de si e dos outros? O vendedor de amendoim nunca havia visto nem uma cor sequer. A palavra “amarelo” não significava nada para ele. Quando fico cega de mim, não percebo mais as nuances da minha alma. O que é branco? O que é marrom? O que é encardido? Confundo tudo. Fico insensível e obstinada. Meu coração endurece. E, com a dureza, cresce a revolta por não conseguir mais enxergar o belo. Torno-me justamente o que o velho não queria ser e pela mesma razão: insuportável, por ter algo e depois perder.
Um cego pode pensar que está indo para casa e acabar no abismo. Só uma pessoa que enxerga pode ajudá-lo. Ainda bem que, quando a cegueira da alma me atinge, sempre há por perto pessoas que enxergam além do que meus olhos feridos são capazes de enxergar. Elas me tiram dos emaranhados em que me meti e me colocam de volta nos trilhos.
A cegueira é uma metáfora e tanto. Além de Saramago, Jesus também percebeu isso. E quando ele, que sempre foi bom em figuras de linguagem, diz que veio trazer vista aos cegos (Lc 4.18), não está falando só da cegueira física, embora tenha curado muitos cegos. Está falando das traves que me impedem de ver quem sou. Que enganam, que oprimem, que tiram o brilho das coisas, que desbotam as cores e transformam tudo o que vejo em névoas. Talvez seja por isso que o hino que marca muitas conversões também fale de cegueira: “Oh quão cego andei e perdido vaguei”.
Depois de ser livre da cegueira completa, preciso lidar com outras distorções da vista. Preciso me livrar da miopia, do astigmatismo, da vista cansada, da fotofobia, do estrabismo de mim.
Para que eu veja as flores, mas também os espinhos. Para que eu me olhe no espelho e me admire, mas também perceba as distorções. Para que eu veja quanta beleza há por aí. Afinal, como disse Saramago, “a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.
• Paula Mazzini Mendes é formada em letras e atualmente estuda no seminário do Exército de Salvação.
Publicado originalmente na seção Altos Papos da Revista Ultimato, edição 338.