Perdida no caminho
Onde quer que tenhamos deixamos cair nossa criatividade, Cristo quer recuperá-la para o Pai. Podemos estar certos de que, quando Paulo disse aos colossenses (Cl 1.20) que, em Cristo, Deus estava reconciliando com ele todas as coisas, eram “todas” as coisas mesmo — incluindo as artes. Cristãos de várias gerações têm sido constrangidos com o dilema do que podem ou não realizar, apoiar ou consumir nos campos da música, das artes plásticas (pintura, escultura), do teatro, da dança, da literatura e do cinema.
Diante da dúvida honesta, muitos — dos legalistas aos piedosos — preferem lançar as artes num limbo de indefinição ou até no inferno. Não significa que deixamos de cantar, dançar, encenar ou escrever. Porém, restringimos tudo à esfera da igreja, aos temas sacros e ao objetivo da proclamação literal do evangelho. Quem nunca ouviu uma música feia ou assistiu a uma peça cafona na igreja e abriu mão da beleza sob a alegação de que essa arte eclesiástica não precisa necessariamente ser bela, mas cumprir a função de falar de Jesus? De fato, o cristianismo contemporâneo divorciou as artes da beleza, e esta da adoração. A ideia de que as expressões artísticas podem simplesmente refletir e adorar a um Deus que é belo e adorável foi perdida. Paulo nos dá uma pista de onde caiu nossa dimensão estética da vida: “Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que, como se ainda pertencessem a ele, vocês se submetem a regras: ‘Não manuseie!’, ‘Não prove!’, ‘Não toque!’?” (Cl 2.20-21).
Uma hermenêutica religiosa da Bíblia nos faz parafrasear o apóstolo: “não ouça isso”, “não leia aquilo”, “não assista àquilo outro”. Elaboramos mandamentos humanos com o — até certo ponto legítimo — medo de adorar ao diabo ou construir ídolos. Perdemos as artes no caminho da religiosidade. Porém, parece que essa geração começa a gritar, embora espaçadamente, que a beleza é de Deus, que tudo que é bom e admirável pertence à esfera da sua criação. Muitos já não concebem um céu onde a única expressão das artes será um grande coro cantando as últimas músicas do “mercado gospel”. Será muito bom quando uma cosmovisão cristã tomar as rédeas das sete artes e, mesmo em discursos indiretos ou subliminares, enxergarmos a beleza e a essência do cristianismo. Poderemos ler poemas, cantar músicas, admirar quadros, assistir peças e dizer: “Por trás disso há um cristão e os pressupostos das sagradas escrituras”. Deus é o Senhor das artes e o criador das habilidades artísticas — basta ler Êxodo 31.1-5:
Disse então o Senhor a Moisés: ‘Eu escolhi Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, e o enchi do Espírito de Deus, dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística para desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze, para talhar e esculpir pedras, para entalhar madeira e executar todo tipo de obra artesanal’.
As artes nunca foram um problema em si na relação do homem com o seu Criador. Quem se divorciou de Deus foi o homem e o seu coração tornou-se mau e autossuficiente. Com isso, a expressão criativa que brota de um coração mau tornou-se também anti-Deus. Francis Schaeffer já havia diagnosticado que o divórcio entre a cristandade e a cultura tinha sido uma tragédia na Europa e na América do Norte do século 20. Esse mal avançou para o hemisfério sul e por aqui as artes também se tornaram um monopólio secular. A conservadora separação entre ambiente sagrado e profano pôs as artes para fora da igreja e muitas pessoas foram atrás delas, ou seja, afastaram-se de uma instituição incapaz de dialogar com a cultura. Passou da hora de os cristãos vislumbrarem nas artes o triunfo de Cristo sobre o pecado, tornando-as de novo obras de gente que vê beleza e esperança na vida. Louvado seja o Jesus que volta no caminho para recuperar o que a ele pertence e que displicentemente deixamos ficar para trás.
*Artigo publicado na seção “Altos Papos” da edição nº 324 da revista Ultimato.
• André Luiz de A. Freitas, 26 anos, é jornalista e líder de jovens da Igreja Batista Memorial da Tijuca, no Rio de Janeiro.
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